Painel encontrado no por�o de uma casa em Ouro Preto, que provavelmente abrigou uma senzala: raro registro da �frica (foto: Fred Bottrel/EM/D.A Press - 16/10/2019)
� com o objeto que est� estampado nesta p�gina que o escritor e jornalista Laurentino Gomes abre o segundo volume do livro “Escravid�o”. “A partir do s�culo 18, a escravid�o se tornou t�o banal e corriqueira que utilizo essa balan�a para mostrar como ela era um item da vida cotidiana no Brasil col�nia”, afirma.
O autor descreve com detalhes o objeto que conheceu no Sesi Museu de Artes e Of�cios, em Belo Horizonte. “A balan�a de pesar escravos foi cuidadosamente trabalhada em ferro e bronze por um art�fice, com ornamentos e monogramas gravados em alto-relevo, incluindo a data da fabrica��o – 1767 – e o selo do rei de Portugal, como se fosse uma joia de uso pessoal e n�o um rude instrumento do tr�fico negreiro”.
Com lan�amento nesta ter�a-feira (22/06), “Escravid�o – Da corrida do ouro em Minas Gerais at� a chegada da corte de dom Jo�o ao Brasil” (Globo Livros) concentra sua narrativa no s�culo que representou o auge do tr�fico negreiro no Atl�ntico, motivado pela descoberta de ouro e diamantes em territ�rio mineiro.
Prol�fico em n�meros e dados, Gomes destaca que at� 1693, ano da descoberta oficial de ouro, n�o havia negros em Minas. Em 1780, quando a capitania de Minas Gerais era a mais populosa do Brasil, havia 174 mil escravos em uma popula��o de 394 mil habitantes. E dos 220 mil restantes, dois ter�os eram negros forros, ou seja, que tinham alcan�ado a pr�pria liberdade.
A heran�a est� em toda parte, como destaca o cap�tulo “�fricas brasileiras”. Ele � aberto com a descoberta, em 2017, no por�o de um sobrado da Rua Direita, em Ouro Preto, de um mural de cenas africanas, datado da segunda metade do s�culo 18 ou in�cio do 19, conforme revelou reportagem do Estado de Minas.
“N�o se consegue entender todos os grandes eventos pol�ticos, econ�micos, militares, sociais da hist�ria brasileira sem observar a escravid�o. Como fomos no passado e como somos hoje, tudo est� profundamente vinculado �s ra�zes africanas. Elas s�o um fio condutor que nos constituem como povo brasileiro”, continua o autor.
Gomes evita a narrativa cronol�gica e vai, por meio de temas, apresentando todos os elementos que est�o em jogo. Descobrimos que a corrida do ouro em Minas elevou o custo da vida a patamares absurdos – um par de meias de seda custava 28,8 gramas de ouro em 1703, o que equivaleria a R$ 8.957 nos dias de hoje; um quilo de manteiga,7,2 gramas de ouro ou R$ 2.239 em 2021; enquanto um “crioulo” (express�o da �poca que denominava um escravo nascido no Brasil) era negociado a 1.790 gramas do mineral, equivalentes a R$ 556.690.
� uma hist�ria que fala de corrup��o, contrabando, nepotismo, abuso de autoridade, viol�ncia, temas urgentes tantos s�culos depois. Trata de figuras p�blicas, mas relata hist�rias privadas, como a do casal Alexandre Correia e Maria Correia de Andrade, que viveu em S�o Jo�o del-Rei. Eles chegaram da �frica como cativos na primeira metade do s�culo 18. Conseguiram sua independ�ncia, constitu�ram fam�lia e acumularam bens – o que equivale a R$ 1,7 milh�o em valores atuais, a� inclu�das terras e 12 escravos.
“Quando voc� costura todos os temas, v� como o retrato do Brasil e da escravid�o s�o profundamente vinculados”, afirma o autor em entrevista ao EM.
A balan�a de pesar escravos, no Sesi Museu de Artes e Of�cios, cujo simbolismo o autor destaca: "Como se fosse uma joia de uso pessoal e n�o um rude instrumento do tr�fico negreiro"
Para a pesquisa do primeiro volume o senhor viajou para fora, �frica e Europa. Para este livro, o senhor foi para dentro do Brasil. Que pa�s o senhor (re)descobriu nesta jornada?
Me defrontei com duas realidades muito opostas, mas ambas muito ligadas � heran�a da escravid�o. A primeira � uma riqueza cultural muito bonita. Participei da Festa de Nossa Senhora do Ros�rio, em Diamantina, em outubro de 2019, visitei quilombos na Para�ba, participei de sess�es em terreiros de candombl� na Bahia.
Existe uma �frica brasileira lind�ssima que se expressa com muita intensidade e est� relativamente preservada no interior, nas festas, cultos, maneira de falar, uma coisa muito genu�na. Mas tamb�m encontrei outra �frica brasileira assustadora, das periferias violentas, insalubres, sem seguran�a p�blica, abandonadas pelo Estado, cuja popula��o na maioria � descendente de ex-escravos.
Sua pesquisa, de alguma maneira, derrubou mitos?
Sim. Algumas coisas me surpreenderam ao longo do caminho. O papel das mulheres � muito mais importante do que se imagina. Elas mudaram a face do escravismo brasileiro e foram jogadas nas sombras, como se fossem meros agentes secund�rios. Em algumas vezes, como no caso de Chica da Silva, a mulher esteve � frente. Liderou quilombos, criou fam�lias, foi rainha de entidades religiosas. Mas tamb�m fez alian�as com senhores de escravos.
Muitas mulheres passaram a vida no anonimato, outras viraram donas de engenho, mas tamb�m donas de escravos. Isso mostra que a escravid�o � um assunto complexo, n�o � algo monocrom�tico. A escravid�o, a partir do s�culo 18, se tornou banal, corriqueira, de maneira que mesmo pessoas escravizadas, t�o logo conseguiam conquistar a liberdade, se tornavam donas de escravos.
O sistema de escravid�o � muito mais rico e desafiador do que eu imaginava. No Brasil da �poca, os dois principais itens de riqueza eram a propriedade da terra e a posse de escravos. Qualquer pessoa, para ter alguma proje��o na sociedade colonial, tinha de ser dona de terra e escravos.
Al�m de personagens conhecidos da historiografia brasileira, o senhor tamb�m acompanha an�nimos, caso daquele que chama “her�i invis�vel”, possivelmente um descendente de africanos escravizados que teria sido o descobridor do ouro em Minas Gerais no final do s�culo 17. Existe farta documenta��o sobre a escravid�o?
H� duas coisas que precisam ser ressaltadas. Existe um mito de que, depois da Proclama��o da Rep�blica (1889), Rui Barbosa mandou destruir documentos sobre a escravid�o, o que dificultaria a pesquisa. De fato, Rui Barbosa, como ministro da Fazenda, mandou destruir documentos alfandeg�rios, como tributos de compra e venda, por exemplo. Mas sobrou uma vast�ssima documenta��o, como certid�es de nascimento, invent�rios, escrituras de compra e venda, an�ncios de fuga e captura de escravos.
Isso tudo est� espalhado em milhares de cart�rios e par�quias no Brasil inteiro. A documenta��o sobre a escravid�o � muito vasta e tem resultado em uma produ��o acad�mica espetacular. Mas � preciso ter muito cuidado porque a documenta��o, em geral, reflete o olhar do branco. O caso mais t�pico � o do Quilombo dos Palmares. Toda a documenta��o existente � branca, vem das expedi��es militares que foram enviadas para combat�-lo. N�o existe um �nico relato, um olhar negro sobre Palmares. Isso distorce muito e recai na cria��o de mitos, no papel do pr�prio Zumbi como l�der republicano abolicionista.
Ou seja, � preciso cuidado nas leituras.
E tamb�m distanciamento e discernimento. Embora a documenta��o exista, h� um vi�s de, �s vezes, por distorc�-la. H� muitas narrativas que se contradizem. Se voc� ler “Casa grande & senzala” (de Gilberto Freyre), � o olhar branco. O que transparece ali � uma escravid�o branda, patriarcal, quase boazinha, que teria resultado em uma democracia racial no Brasil. Mas quando l� Abdias do Nascimento, a vis�o muda por completo. Ele fala de um genoc�dio negro no Brasil, diz que a escravid�o no pa�s foi t�o violenta quanto em qualquer outro territ�rio escravista, pois ainda acarretou o exterm�nio da mem�ria da cultura negra. � interessante confrontar as duas vis�es e explic�-las para o leitor. Mas n�o d� para tomar partido.
Como foi, para o senhor, escrever sobre escravid�o no momento em que negros s�o assassinados por brancos – seja nas ruas, como nos EUA, ou no estacionamento do supermercado, como no Brasil?
Isso tudo refor�a em mim a convic��o de que a s�rie chega em boa hora, de que escravid�o n�o � assunto de museu, � uma realidade concreta no Brasil de hoje. O legado da escravid�o aparece todos os dias nas redes sociais e nos notici�rios. N�o � que imitamos uma onda de comportamento iniciada nos EUA (com a morte de George Floyd, em maio de 2020, que suscitou um movimento global antirracismo). Existe um massacre em andamento.
Na semana em que lancei o primeiro volume de “Escravid�o”, em 2019, um garoto negro roubou uma barra de chocolate em um supermercado e foi espancado com chicote por dois seguran�as. Dois anos depois, as not�cias se repetem. Isso mostra o quanto a escravid�o � ainda uma ferida aberta, que d�i todos os dias. Os livros podem ajudar na reflex�o de como somos, como agimos. De todos os passivos hist�ricos, o maior � o da escravid�o, que resultou em um Brasil violento. Para usar uma imagem forte, um pus de ferida aberta.
(foto: GLOBO LIVROS/DIVULGA��O)
“ESCRAVID�O – VOLUME 2
Da corrida do ouro em Minas Gerais at� a chegada da corte de dom Jo�o ao Brasil”