Trabalhador em Huainei, na China, o maior exportador da economia mundial (foto: AFP)
Nos anos mais duros da ditadura militar – em que a censura � imprensa exibia a sua face tamb�m por meio de muitas receitas culin�rias –, o “Pasquim”, emblem�tico seman�rio de humor, autoproclamou-se um jornal “de oposi��o � ditadura grega”. Assim burlou censores. Pretendia falar da Gr�cia, mas, de fato, referia-se ao Brasil.
Inspirados nessa genial proposta, dois �cones em seus respectivos campos de conhecimento lan�am livro sobre um pa�s que est� no centro do debate pol�tico brasileiro: a China. Na esperan�a de abrir interlocu��o com diferentes vertentes das narrativas ideol�gicas em torno deste pa�s, que carrega o p�ndulo da hegemonia geopol�tica global para a �sia, Cl�lio Campolina Diniz, mestre, doutor e p�s-doutor em ci�ncias econ�micas, e o psicanalista Francisco Paes Barreto, membro da Escola Brasileira de Psican�lise e da Associa��o Mundial de Psican�lise, lan�am nesta quarta-feira (30/06), “O enigma China – Uma s�ntese hist�rica, econ�mica e psicanal�tica” (Editora CRV).
A conversa ser� com Afonso Borges, dentro das celebra��es de 35 anos do Sempre um Papo, �s 19h, com acesso gratuito e transmiss�o no YouTube, Instagram e Facebook do projeto.
“No Brasil de hoje, fala-se muito de pol�tica, mas n�o h� debate, h� embate: violento, sectarizado, estreito e est�ril. Ent�o, a ideia � que de que seja necess�rio alargar os horizontes de nossa conversa pol�tica, caso contr�rio chegaremos a um beco sem sa�da”, afirma Francisco Paes Barreto.
“Mais do que respostas, o livro sobre a China traz perguntas. H� uma reformula��o do mapa mundi geopol�tico. Saber o que se passa na China � fundamental para saber o que se passa no mundo e, por consequ�ncia, no Brasil”, afirma Barreto.
O livro busca em 45 textos curtos, que podem ser lidos de forma independente, apresentar, por um lado, uma abordagem hist�rica e psicanal�tica da evolu��o deste pa�s que, em algumas d�cadas, saltou da miser�vel condi��o de abrigar popula��o morrendo de inani��o para a posi��o de uma das maiores economias do planeta.
Cl�lio Campolina elabora as transforma��es globais e a ascens�o chinesa, sob uma perspectiva hist�rica e econ�mica que n�o se furta em se aprofundar nos conceitos de mercado, Estado, liberalismo pol�tico, liberalismo econ�mico, desenvolvimento capitalista e ondas tecnol�gicas, entre outras.
“O foco est� em mais uma reflex�o sobre as grandes transforma��es e desafios contempor�neos, nos quais a China tem assumido papel de lideran�a, seja na transforma��o da rela��o convencional entre Estado e mercado, seja do ponto de vista de propor um novo modelo, o chamado socialismo de mercado, e todas as implica��es disso sobre distribui��o de renda, geopol�tica, sobre o papel da tecnologia, sobre as altera��es da ordem mundial, como isso rebate no mundo em geral, rebate na periferia e em especial como o Brasil se situa diante desse quadro”, afirma Cl�lio Campolina.
“Todos esses temas servem para refletir sobre a situa��o contempor�nea do Brasil, embora o livro n�o trate de forma espec�fica sobre o Brasil”, considera ele.
“O ENIGMA CHINA:UMA S�NTESE HIST�RICA, ECON�MICA E PSICANAL�TICA”
.De Francisco Paes Barreto e Cl�lio Campolina Diniz
.Editora CRV
.164 p�ginas
.R$ 45,90
.R$ 32,13 (e-book)
entrevista
Francisco Paes barreto
psicanalista
(foto: Arquivo pessoal
)
"Falar sobre a China � uma tentativa indireta de esclarecer o que se passa no Brasil"
Francisco Paes Barreto, psicanalista
“Temos n�o um debate, mas um embate”
Como a China � usada nesse espa�o de disputa pol�tica no Brasil? Se formos considerar o aspecto mais cognitivo, o que de fato as pessoas conhecem sobre a China?
Temos entre n�s n�o um debate, mas um embate violento, que tem causado desuni�es nas fam�lias, nos meios sociais, onde havia amigos, passa a existir inimigos. Ent�o, falar sobre a China � uma tentativa indireta de esclarecer o que se passa no Brasil. Por exemplo, conhecer a educa��o na China, a justi�a na China, o meio ambiente, o regime pol�tico, tudo isso � inteiramente diferente do que acontece entre n�s. Esse exame deste pa�s enigm�tico, distante, desconhecido, pode indiretamente clarear o que se passa entre n�s. L� na China o que existe � uma industrializa��o acelerad�ssima, desenvolvimento acelerad�ssimo, ao contr�rio do que acontece no Brasil, em que h� estagna��o econ�mica h� d�cadas, em que h� desindustrializa��o impressionante. Falar sobre a China � uma maneira indireta de alargar os nossos horizontes, as nossas conversas, para entender por que estamos como estamos.
Na perspectiva do Brasil, a China est� no centro do debate ideol�gico e sempre colocada sob perspectiva depreciativa de alguns debatedores. Sob a perspectiva psicanal�tica, h� alguma explica��o para a virul�ncia com que se desqualifica a China?
O plano da minha parte do livro � o seguinte: um artigo com enfoque hist�rico, em seguida, um coment�rio psicanal�tico sobre esse artigo e enfoque. Ent�o vou alternando a abordagem hist�rica e psicanal�tica. N�o h� inten��o nem de elogiar nem de execrar a China. O plano do livro � abordagem o mais imparcial poss�vel, numa abordagem de minha parte hist�rica e psicanal�tica e da parte do professor Campolina, hist�rica e econ�mica. O Brasil vive hoje um embate sectarizado, em que fatos e argumentos pesam pouco. � disso o que queremos fugir dessa radicaliza��o e lan�ar novos elementos na discuss�o. N�o se trata nem de enaltecer nem de depreciar, mas de fazer an�lise do que acontece l�, de sua hist�ria e seu momento presente, o que � fascinante sob v�rios aspectos.
Qual �, em sua avalia��o, o ponto alto do livro?
� a vis�o de s�ntese, o que n�o � f�cil. S�o cap�tulos pequenos que descrevem um longo trajeto hist�rico e uma rica realidade atual. Fazer isso com poucas palavras n�o � f�cil. E eu me sinto realizado, porque acho que conseguimos. Agora, quanto �s conclus�es, prefiro que cada um leia e chegue �s suas pr�prias conclus�es. Porque quem for ler n�o chegar� a uma �nica conclus�o, nem n�s queremos impor ao leitor conclus�o determinada. O que desejamos � abrir horizontes para a discuss�o e se conseguirmos isso ficaremos muito felizes.
O senhor afirma que o mundo globalizado, no futuro, n�o ter� balizadores ideol�gicos como esquerda e direita. Sob a perspectiva psicanal�tica, as sociedades e estados caminham para formatos totalit�rios ou democr�ticos?
Na atualidade, prevalecem no Ocidente sociedades politicamente abertas e democr�ticas. Em outras partes do mundo, existem sociedades politicamente fechadas e autocr�ticas, como a China, a R�ssia e o Ir�. No futuro, o predom�nio ser� de sociedades abertas ou fechadas, voc� me pergunta. Quanto a isso, a leitura psicanal�tica tem resposta clara. As sociedades totalit�rias s�o verticalizadas, hierarquizadas, com r�gidos controles centralizados. Ora, como foi visto, o mundo globalizado tem estrutura de rede: horizontalizado, com hierarquia m�nima e multic�ntrico. Nesse contexto, sociedades fechadas tendem inexoravelmente a se abrir. No futuro do mundo globalizado, a sombra que existe n�o � a do totalitarismo, � a da barb�rie. Esta, sim, � preciso que seja levada em conta. Totalitarismos de direita e revolu��es comunistas est�o estruturalmente superados, e no m�ximo podem tentar apresentar-se como fantasmas. O dilema, agora, pode ser enunciado como civiliza��o ou barb�rie. Historicamente, � o estado democr�tico o principal meio para a regula��o do capitalismo. A democracia recebe muitas cr�ticas, mas ela n�o � uma proposta, s�o regras do jogo, em que todos s�o convocados a participar. O caminho a percorrer � a ampla mobiliza��o para e pelo aprimoramento de nossas institui��es, para que sirvam � sociedade em vez de se servirem dela. � preciso usar as redes sociais e a internet como meio de transforma��o. Tudo depender� do uso que se fizer delas.
entrevista
Cl�lio Campolina
economista
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press
)
"A disputa contempor�nea � do ponto de vista de lideran�a econ�mica"
Cl�lio Campolina, economista
“Esse debate de comunismo � superado”
Como o Brasil se situa hoje face � China?
A China � hoje o grande global player. � o maior exportador, est� na fronteira do desenvolvimento tecnol�gico mundial, tende a assumir a posi��o de lideran�a econ�mica ultrapassando os Estados Unidos. Tudo isso repercute no mundo e tamb�m no Brasil. A China � o maior parceiro comercial do Brasil. As transforma��es tecnol�gicas chinesas t�m efeito sobre o mundo em geral e sobre o Brasil em particular. Toda a nossa discuss�o sobre democracia e liberdade tem de ter contraponto nas transforma��es mundiais – o que foi o fracasso do projeto comunista, o que � a crise contempor�nea do mundo ocidental, inclusive o crescimento das desigualdades, e o que s�o os experimentos novos, como podem nos impactar. H� outros assuntos espec�ficos que podem ser relacionados: do ponto de vista da corrida cient�fica e tecnol�gica; do papel da cultura dos diferentes povos em seus processos hist�ricos e de desenvolvimento; todo contraste entre desenvolvimento econ�mico e desenvolvimento entendido como bem-estar para a humanidade; todas as dimens�es das rela��es internacionais dos diferentes pa�ses, como o comportamento do cotidiano das pessoas, desigualdade social, infla��o, como c�mbio, balan�o de pagamento afetam de forma diferenciada os povos; o mundo est� cada vez mais integrado. A globaliza��o � fen�meno contempor�neo. Qual � o futuro do trabalho a luz das mudan�as tecnol�gicas em curso, da intelig�ncia artificial, da engenharia gen�tica, como a humanidade se situar� diante de tudo isso? S�o perguntas para refletir sobre o mundo e sobre o Brasil. N�o � an�lise espec�fica sobre o Brasil, mas as perguntas todas servem para analisar o mundo e o Brasil, porque s�o de impacto generalizado, embora de forma diferenciada segundo as condi��es e caracter�sticas de cada pa�s.
Embora a China seja o maior parceiro comercial do Brasil, membros do governo federal e at� recentemente o ex-ministro das Rela��es Exteriores atacam politicamente a China. Qual � a racionalidade desse comportamento?
Do ponto de vista do interesse, cada pa�s defende os seus interesses econ�micos. A ideologia vem em segundo lugar. Em toda interpreta��o hist�rica l�cida, econ�mica, pol�tica, contempor�nea, esse debate de comunismo � superado historicamente. N�o est�o na agenda mundial revolu��es comunistas de tomada do poder para implantar a ditadura do proletariado, para a coletiviza��o dos meios de produ��o. Isso n�o existe mais em lugar nenhum do mundo: Cuba est� liberando o mercado, a R�ssia j� liberou o mercado, a China experimentou o que chama de socialismo de mercado. O mercado funciona plenamente, n�o querem estatizar, embora parte da economia seja de controle de empresas estatais. Ent�o, me parece que � uma quest�o que precisa ser refletida de maneira serena, independentemente de posi��o ideol�gica, � preciso analisar os fatos, de acordo com o que ocorrem na agenda mundial. No fundo, a disputa contempor�nea � do ponto de vista de lideran�a econ�mica. N�o h� mais, neste momento, um receio de revolu��es armadas, como a sovi�tica de 1917, a chinesa de 1949, a cubana, etc. O �nico pa�s que ainda mant�m regime fechado � a Coreia do Norte e, mesmo assim, os Estados Unidos, sob Donald Trump, mantiveram rela��o pr�xima com Kim-Jong-un. De maneira que me parece algo fora do contexto. Por isso � importante perguntar quais os fundamentos dessa rea��o de acusar um regime pol�tico que pode ser danosa para n�s. A disputa neste momento � por lideran�a econ�mica. Os Estados Unidos n�o temem que a China exporte comunismo para o mundo, mas est�o preocupados com a lideran�a econ�mica da China. E, al�m da econ�mica, vem a lideran�a geopol�tica. Como fica a R�ssia neste momento, � uma economia fraca, n�o prop�e mais um comunismo convencional. Mas � um pa�s militarmente forte. Ent�o s�o quest�es mundiais que precisam ser discutidas.
Como a religi�o entra no debate pol�tico contempor�neo no Brasil?
Discutimos no livro os fundamentos do liberalismo pol�tico, econ�mico, o neoliberalismo, qual � o papel do Estado, da sociedade, enfim, para onde deve mover a humanidade. Independentemente de suas posi��es pol�ticas, um cientista, um acad�mico, precisa refletir do ponto de vista da realidade hist�rica com a qual est� vivendo. Isso n�o se relaciona com a B�blia. A B�blia � algo religioso. Respeito as quest�es religiosas de cada um, mas n�o se pode analisar as transforma��es mundiais a partir de perspectiva b�blica, porque a� n�o se enxergam as transforma��es. A B�blia diz respeito a uma cren�a transcendental, n�o se discute. Deus � Deus, est� l� para quem acredita. Ent�o, acho que o debate do ponto de vista dessa polariza��o sem fundamento, virou um sectarismo. � preciso ter clareza, lucidez, serenidade, para refletir sobre os problemas contempor�neos para se eleger os caminhos para uma sociedade melhor.
Quando o senhor menciona a guerra comercial entre Estados Unidos e China, o Brasil em algum momento poderia se beneficiar dessa disputa?
Acho que poderia, porque o Brasil �, do ponto de vista de �rea geogr�fica, um dos maiores do mundo. O Brasil tem a quinta popula��o mundial, tem uma situa��o social muito heterog�nea, mas com v�rias coisas que avan�aram muito. De modo que o Brasil precisa ser amigo de todos, mas n�o pode fazer uma alian�a cega. Parece-me um equ�voco, estaria comprometendo a autonomia e a liberdade do pa�s. Ent�o, temos de comercializar e ser amigos dos Estados Unidos e da China, construindo as op��es de autonomia que podemos ter.
O senhor encerra o livro com um cap�tulo indagando sobre o futuro da humanidade. Qual � a sua vis�o, a humanidade tem futuro?
O livro � composto de 45 textos cursos e aut�nomos, que podem ser lidos de forma independente, num linguajar, numa abordagem, aberta, para todos. O que buscamos � uma sociedade melhor, independentemente de op��es partid�rias, h� um desejo de busca de uma sociedade melhor. O que podemos aprender � luz da experi�ncia contempor�nea da China, das outras experi�ncias hist�ricas. Barreto fala muito sobre a experi�ncia hist�rica do comunismo, do ponto de vista ontol�gico, o ser diante de tudo isso. E os meus textos discorrem um pouco o hist�rico do desenvolvimento econ�mico e os desafios contempor�neos, como se pode buscar a constru��o de uma sociedade melhor, os desafios que est�o postos. Os textos levantam essas diferentes dimens�es. Eu termino perguntando: quais os desafios da humanidade diante de tudo isso? Sou um otimista, quero continuar lutando pelas ideias que tenho e continuo acreditando que a humanidade vai continuar lutando para construir um mundo melhor, portanto, vai depender de cada um de n�s. Raz�o pela qual nunca desisto de continuar lutando pelas causas em que acredito, embora n�o seja filiado a nenhum partido pol�tico. Fiz uma op��o de vida de virar professor universit�rio e essa � a minha vida, tentar a ajudar a entender o mundo e ficar feliz nesta busca.