
Autor de uma literatura que privilegia a linguagem, Jo�o Gilberto Noll (1946-2017) � considerado um dos principais escritores brasileiros contempor�neos. Prestigiado pela cr�tica especializada, ele n�o alcan�ou, todavia, o sucesso de p�blico que garantiria seguran�a financeira para executar seu of�cio com tranquilidade.
Na sua biografia rec�m-lan�ada,“Jo�o aos peda�os” (Diadorim, 2021), o jornalista ga�cho Fl�vio Ilha mostra os dias de pen�ria do autor natural de Porto Alegre, que chegou a consumir apenas caldo artificial por falta completa de dinheiro para alimentar-se. A obra aborda desde a inf�ncia, com a m�e opressora que queria que ele fosse padre, a admira��o de escritores como o argentino C�sar Aira e o paulistano Daniel Galera, at� os �ltimos dias na capital ga�cha.
O bi�grafo entrevistou amigos, familiares, ex-namorados e ex-namoradas para compor o mosaico dos peda�os de Noll, referidos no t�tulo da obra. Somando depoimentos e documentos, como cartas at� ent�o in�ditas e rascunhos de textos, Ilha desenha a trajet�ria do romancista. O percurso n�o � narrado de modo linear, assim como a fic��o do seu conterr�neo.
Autor de t�tulos como “O cego e a dan�arina” (1980), “Berkeley em Bellagio” (2002) e “O quieto animal da esquina” (1991), Noll � conhecido pela escrita obscena – escatol�gica at� – que explora as v�sceras da exist�ncia humana.
O trabalho de investiga��o sobre a vida do ficcionista revela partes do que seria seu novo romance. Em 2015, o autor se afastou da sua rotina em Porto Alegre para tentar concluir a nova obra. Noll chegou a passar um m�s em Florian�polis, na pousada de uma das irm�s, para escrever o livro. O texto, entretanto, permaneceu inacabado. Partes dele est�o na biografia que chega ao p�blico, com a reprodu��o da primeira p�gina, escrita � m�o.
Noll usou caneta e caderno, j� que havia perdido a senha para acessar o computador dado a ele pela ent�o companheira, Magali Koepke. Ele conheceu Magali em 2013, em uma oficina liter�ria ministrada por ele. O romance inacabado come�a assim: "Abri a janela e vi um len�ol branco balan�ando com a brisa da manh�. Era meu primeiro dia naquela pousada e n�o sabia muito bem o tempo que deveria ficar nela. Se fosse por mim n�o estaria ali. Ali�s, nem em lugar nenhum. � que chega um momento em que as rela��es se repetem e voc� tem a ideia de habitar um remanso inaugural onde as coisas todas est�o por fazer e voc� precisa apenas de uma energia grande para p�r as oportunidades em marcha, e, que, de fato, voc� as tem".
MELANC�LICO
A trama apresenta dois pares de irm�s g�meas. O bi�grafo associa as figuras � vida de Noll no per�odo. "Isso porque a Magali � m�e de g�meos e ele estava convivendo muito bem com os filhos. Ele estava muito bem, uma vida tranquila", diz Ilha. Os tempos de paz dos �ltimos anos de vida do escritor s�o atribu�dos � estabilidade do novo relacionamento, indica a biografia. Era comum que Noll "brigasse e fizesse as pazes" sem motivos muito aparentes, relataram as pessoas pr�ximas ao biografado.
Uma das dificuldades do jornalista ao escrever a biografia foi justamente localizar as tais pessoas pr�ximas. "Ele era muito discreto nas rela��es pessoais. Nem a fam�lia muitas vezes sabia com quem ele andava", explica Ilha. O bi�grafo localizou um dos primeiros namorados de Noll, com quem ele manteve um relacionamento duradouro no Rio de Janeiro, na d�cada de 1970. Agora casado com uma mulher e com filhos, o ex-namorado deu o depoimento sob a condi��o de anonimato.
"Eu era muito imaturo, mas amava a companhia do Jo�o, o seu temperamento melanc�lico. Era uma �poca de experi�ncias e descobertas para mim, ent�o foi um relacionamento que se desenrolou naturalmente. O Jo�o n�o tinha recursos, n�o tinha dinheiro para nada", contou o namorado da �poca.
Noll n�o era apenas discreto, como muitas vezes "despistava" sobre seus relacionamentos. � o caso da sua rela��o com o tamb�m ga�cho Caio Fernando Abreu, por exemplo. "As rela��es com o Caio Fernando Abreu foram muito dif�ceis de estabelecer, tanto que n�o consegui cravar na biografia que eles tiveram um caso amoroso. Tudo indica que sim, mas n�o h� provas. Ent�o, me preocupei em mostrar ind�cios coletados bem evidentes, da vida deles em Porto Alegre", diz Ilha sobre os dois escritores.
Com a sa�de mental fragilizada, Noll foi submetido a question�veis tratamentos, tanto na juventude como na vida adulta. Na juventude, chegou a ser internado em um sanat�rio com rotina severa. O tratamento conhecido como "choque insul�nico" o deixava inconsciente.
SOLID�O
A obra tamb�m revela relat�rios de sua editora, mostrando n�meros de vendas de livros. Nos meses seguintes � sua morte, “A f�ria do corpo” vendeu 29 c�pias. Os documentos mostram que Noll pouco recebia pelos livros, j� que as vendas eram t�midas e a editora descontava os adiantamentos e direitos pagos pelas obras. "Ele devia para as editoras, n�o conseguia recuperar os adiantamentos", explica Ilha.Ap�s sua morte, entretanto, a recep��o nos Estados Unidos de suas tradu��es ganhou for�a e sua literatura acaba sendo referenciada como "queer", ou seja, fora da normatividade das identidades sexuais.
Com muitas fotografias do �lbum de fam�lia, a biografia tem ainda uma foto feita por celular, o �ltimo registro de Noll vivo. A foto de 26 de mar�o – ele foi encontrado morto poucos dias depois – foi feita pela atendente do Caf� Chaves, do qual era ass�duo. Os funcion�rios estranharam sua aus�ncia nos dias anteriores e, quando o ilustre cliente retornou, a atendente quis registrar para enviar a um colega.
As cartas � fam�lia chamam mais aten��o. Ele escrevia contando sobre os discos que ouvia, os livros que lia e escrevia. As cartas revelam algo importante que era a solid�o. "Ele sofria com essa solid�o, era desesperador", diz Ilha. Um sentimento de solid�o t�o grande que era continental, como o t�tulo de seu �ltimo romance, de 2012.

.De Fl�vio Ilha
.Editora Diadorim
.270 p�ginas
.Pre�o sugerido: R$ 60