
“Ent�o t� bom, mas n�o sei o que a minha m�e vai dizer.” Foi com essa que Charlie Watts se saiu no final de 1962, quando foi avisado de que havia entrado para os Rolling Stones. A banda tinha seis meses de vida, em 14 de janeiro de 1963.
Naquela noite, o baterista discreto e econ�mico de 21 anos, que permanecia quase im�vel at� nos n�meros mais r�pidos e sonhava em tocar em Nova York com John Coltrane ou Miles Davis, estreou com a banda em Londres. “Melhor show dos Stones de todos os tempos” cravou, em seu di�rio, o pianista Ian Stewart (1938-1985), cofundador do grupo. Nada foi igual desde ent�o.
A morte de Charlie Watts nessa ter�a (24/08), aos 80 anos, lamentada, com justi�a, em todo o mundo, colocou um holofote enorme em torno de uma pessoa que nunca se viu no centro do palco. “Eles realmente pareciam astros do rock”, disse ele, referindo-se ao que assistiu em 12 de julho de 1962.
Por acaso estava na estreia de um tal Rollin’Stones, no Marquee Club, em Londres. Ap�s o show de 50 minutos, encontrou-se com Mick Jagger, Keith Richards e Brian Jones no pub local. “A apar�ncia da minha banda era uma piada, mas aqueles caras tinham algo.”
Da estreia, em 14 de janeiro de 1963, ao �ltimo show com os Stones, em 30 de agosto de 2019, em Miami, Watts foi basicamente o mesmo. Com seu rosto impass�vel e seu talento reconhecido para o ritmo bin�rio, ofereceu o contraponto perfeito para o protagonismo de Jagger e Richards. Foi, durante 58 anos, o imperturb�vel metr�nomo da banda.
MONOG�MICO
Tamb�m na vida ele era menos, enquanto os colegas eram sempre mais. Foi o �nico monog�mico do grupo. Estava casado h� 57 anos com Shirley Ann Shephard, com quem teve sua �nica filha, Seraphina. Mas n�o andou na linha o tempo inteiro. No final dos anos 1970, come�ou a usar hero�na, e seu v�cio tornou-se t�o intenso que chegou a desmaiar no est�dio durante a grava��o de “Some girls” (1978).O clima pesou tanto que Watts chegou a receber o seguinte conselho de Richards (logo quem!): “Voc� deve fazer isso quando for mais velho”. Parou por um tempo com as drogas, mas voltou a lutar contra o v�cio, incluindo tamb�m o abuso de �lcool, nos anos 1980. Em 1986, largou, definitivamente, tudo. "Simplesmente parei, n�o era algo para mim", confessou, certa vez.
Nascido em 2 de junho de 1941, em Londres, era filho do caminhoneiro Charles e da faxineira de uma f�brica Lilian. Em fam�lia, era chamado Chas Boy. Organizado e met�dico – “esquisito” para a �poca –, foi admitido sem dificuldade na Escola de Arte de Harrow.
Naqueles tempos, expressava-se muito melhor desenhando do que escrevendo. “Um dos meus problemas � que nunca fui um adolescente. Eu ficava num canto falando sobre Kierkegaard. Sempre levei tudo muito a s�rio e, para mim, Buddy Holly n�o passava de uma grande piada.”
M�sico autodidata, depois de um ano praticando com as panelas da m�e, ganhou, no Natal de 1955, sua primeira bateria. Sonhava com os grandes do jazz. Aprendeu a tocar ouvindo discos, copiando n�o apenas o som, mas o estilo de seus her�is.
Em 1965, ano de lan�amento de cl�ssicos como “(I can’t get no) Satisfaction” e “Get off of my cloud”, Watts publicou seu primeiro livro, “Ode to a high-flying bird”. Grande homenagem ao �dolo Charlie Parker, saxofonista morto 10 anos antes, contava sua hist�ria por meio de s�rie de desenhos – em 1991, o livro foi reeditado.
TERNOS
Elegante acima de tudo, com seus ternos impec�veis, parecia um exc�ntrico no meio sujo do rock’n’roll. O humor era sempre seco, daquele que nunca provoca gargalhada, mas um meio sorriso. Uma vez se saiu com esta: “Dou a impress�o de estar entediado. Mas n�o estou entediado. S� tenho um rosto entediante”.Por ser fora dos padr�es para o rock, seu estilo �nico acabou por unir as pontas soltas da banda. Na maioria das bandas, � o baterista quem estabelece o ritmo. Nos Stones, essa fun��o cabe � guitarra r�tmica, que o baterista capta e segue. Isto acabou fazendo com que o som da banda tenha um aspecto arrastado – e d� para se perceber isso, mesmo que n�o se entenda a raz�o.
“Keith toca alguma coisa na guitarra, Charlie o segue na bateria e Bill (Wyman) fica levemente atr�s de Charlie com o baixo. Eles se combinavam e criavam uma esp�cie de efeito explosivo abafado”, explicou Ron Wood sobre o som dos Stones.
Com uma banda sempre prestes a desmoronar, Watts serviu desde sempre como uma �ncora. Quando os singles de Jagger e Richards levaram a banda ao topo das paradas mundo afora, sua assinatura nas baquetas come�ou a ser sentida.
J� se destacou no primeiro nº 1 dos Stones nos Estados Unidos, “(I can't get no) Satisfaction” (1965), e nos subsequentes sucessos “Paint it black” (1966) e “Ruby Tuesday” e “Dandelion” (1967). Consolidou-se com “Jumpin 'Jack Flash” e “Street fighting man” (1968) e “Honky tonk women” (1969). �lbuns marcantes como “Sticky fingers” (1969) e “Exile on Main St.” (1972) exibiram os Stones em seu auge, com Watts saltando forte ap�s a marcante introdu��o da guitarra de Richards.
CONFLITO
No livro "Rolling with the Stones" (2002), Bill Wyman (o baixista saiu da banda em 1993) afirmou que o entusiasmo do baterista com o grupo diminuiu no final dos anos 1980, quando o conflito entre Jagger e Richards sobre a dire��o da banda tomou propor��es gigantescas.Tanto por isso, foi nesse per�odo que ele come�ou a tocar e gravar com diferentes forma��es jazz�sticas, todas com seu nome � frente. Lan�ou em 1986 um disco de big band com a Charlie Watts Orchestra; com seu quinteto foram quatro �lbuns na d�cada de 1990. A cole��o de grava��es vai at� 2010, quando registrou, ao vivo, em Copenhagen, o disco “Charlie Watts meets the Danish Radio Big Band.”
O jazz fez com que Watts se tornasse o primeiro Stone a tocar no Brasil. Em 1992, o Charlie Watts Quintet fez shows em S�o Paulo, no Rio de Janeiro e em Curitiba.
Ap�s a reconcilia��o de Jagger e Richards, voltou �s turn�s e discos com a banda, agora em escala mundial, que quebraram recordes at� muito recentemente. Em 2004, foi diagnosticado com c�ncer de garganta – ficou quatro meses parado, per�odo em que realizou seis semanas de radioterapia intensiva.
Idiossincr�tico, Watts, com a fortuna feita junto � banda, p�de dar vaz�o a outras paix�es. Tinha uma cole��o de carros cl�ssicos. S� que ele n�o tinha carteira de motorista. Em vez de dirigir, ficava sentado nos ve�culos, parado, ouvindo o barulho dos motores.
PANDEMIA
E foi com uma imagem tamb�m improv�vel que ele voltou a ganhar o mundo mais recentemente. Em abril de 2020, na fase inicial da pandemia, a participa��o dos Stones no festival “One world: Together at home”, organizado por Lady Gaga, teve uma repercuss�o enorme principalmente por sua presen�a.De casa, com um par de baquetas e um fone de ouvido, ele tocou uma bateria imagin�ria – o sof� foi o chimbal e caixas de instrumentos fizeram as vezes do bumbo. A can��o era “You can’t always get what you want”. A costumeira seriedade na performance de Watts foi interrompida mais de uma vez por um meio sorriso nos l�bios. Fiquemos com essa imagem dele.