
Celebrando 70 anos da guinada proporcionada por �nio, a Civiliza��o Brasileira est� reeditando a tradu��o que ele fez de alguns textos do escritor judeu checo Franz Kafka (1883-1924). � primeira vista, a publica��o de “Contos, f�bulas e aforismos” pode enganar.
Parece esquisito que o legado de um editor t�o politizado seja homenageado por meio de hist�rias sobre gato e rato, narrativas de tom fant�stico e fabular. No entanto, essa curiosa seleta � uma boa forma de abordar uma faceta frequentemente negligenciada de Kafka, a do escritor socialmente engajado.
L�via Vianna, editora executiva do selo Civiliza��o Brasileira, afirma ser poss�vel perceber, nas decis�es tradut�rias tomadas por �nio, "termos sempre ligados a uma fala mais aguerrida".
REVOLUCION�RIO
A editora destaca o seguinte aforismo de Kafka: "O momento decisivo no desenvolvimento humano � um todo cont�nuo. � por isso que est�o certos os movimentos revolucion�rios, que declaram nulo ou in�til tudo o que ocorreu antes deles, pois nada aconteceu ainda"."Ele vai buscar nesses aforismos um tom mais revolucion�rio, umas frases que t�m a ver com sua postura", afirma L�via. "Esse livro � um s�mbolo de sua completude como editor, porque ele se destacou na n�o fic��o, mas conseguiu, ao mesmo tempo, mostrar esse tipo de trabalho virtuoso. Foi muito corajoso, ao embarcar nesse universo kafkiano."
A sele��o dos textos, tamb�m feita por �nio � �poca do lan�amento original da colet�nea, em 1993, demonstra sua inten��o. Contos c�lebres como “Na col�nia penal”, “Um artista da fome” e “A metamorfose” d�o espa�o a narrativas bem menos conhecidas do autor. Um de seus textos mais curtos, “Uma fabulazinha” (1920) talvez seja s�ntese de sua obra:
"- Ai de mim! - exclamou o camundongo. - O mundo est� ficando cada vez menor. De in�cio era t�o grande que eu me apavorava. Vivia correndo para c� e para l�, e s� me tranquilizava quando via, por fim, paredes bem distantes � esquerda e � direita. Mas o espa�o entre essas paredes estreitou-se t�o rapidamente que j� me encontro na �ltima c�mara e vejo ali no canto da ratoeira onde decerto esbarrarei.
"- Ora, basta-lhe escolher outro caminho - disse o gato antes de engoli-lo."
''Esse livro � um s�mbolo de sua completude como editor (�nio Silveira), porque ele se destacou na n�o fic��o, mas conseguiu, ao mesmo tempo, mostrar esse tipo de trabalho virtuoso. Foi muito corajoso, ao embarcar nesse universo kafkiano''
L�via Vianna, editora executiva do selo Civiliza��o Brasileira
FRACASSO
Essa historieta encerra os principais elementos kafkianos: a inevitabilidade do fracasso ("ratoeira onde decerto esbarrarei") a ubiquidade das inst�ncias de opress�o e poder (o gato como met�fora do Estado, do pai, etc.), antropomorfiza��o das personagens, ironia (o gato fornece uma solu��o ao rato, mas logo o executa) e categorias do absurdo.O primeiro e o �ltimo contos da colet�nea trazem personagens aprisionados. Um � sobre Prometeu, figura mitol�gica que concede a chama do Olimpo � humanidade e � encarcerado pela eternidade por isso; e o outro � sobre um macaco capturado na natureza que se livra de sua cela tornando-se quase humano, antes de perceber que a nossa vida � tamb�m uma sucess�o de jaulas.
"Os seres humanos, a prop�sito, est�o frequentemente iludidos com rela��o � liberdade. Sendo o anseio de liberdade um dos mais sublimes que se possa ter, � igualmente sublime a ilus�o que lhe corresponde", medita ele.
J� em “Graco, o ca�ador”, o personagem-t�tulo morre durante uma ca�ada a camur�as na Floresta Negra, na Alemanha, mas a barca que o levaria ao al�m-vida se extravia e ele se torna incapaz de chegar ao mundo dos mortos. A figura do ser apartado da exist�ncia, na soleira entre a vida e a morte, incapaz de completar a travessia, � uma met�fora duplamente cara a Kafka, pois diz respeito tanto ao judeu errante quanto � mais absoluta aliena��o do mundo.
Nesse sentido, a tradu��o de uma figura engajada como �nio Silveira ganha camadas inesperadas de relev�ncia, uma vez que, ao se aliar a um autor cuja veia social parece apenas latente, o editor nos mostra que a faceta pol�tica da literatura n�o constitui necessariamente panfletarismo, mas sim uma vis�o agu�ada para al�m da mera conformidade.
Se Kafka, conforme relata o amigo e confidente Max Brod, gargalhava ao ler suas sombrias narrativas, � poss�vel ver nesse riso uma radical subvers�o dos grilh�es aos quais suas personagens est�o presas, uma nega��o da impot�ncia individual enunciada por sua literatura.
“Contos, f�bulas e aforismos”
• Franz Kafka
• Tradu��o: �nio Silveira
• Civiliza��o Brasileira (128 p�gs.)
• R$ 34,90