
As grava��es ocorreram em janeiro de 1969, feitas por Michael Lindsay-Hogg para o document�rio “Let it be” (1970), durante as famosas sess�es “Get back”. Como foi lan�ado ap�s a separa��o da banda, o filme ficou como uma esp�cie de epit�fio, uma cr�nica amarga sobre o fim, potencializado por momentos tensos e discuss�es entre Paul, John, George e Ringo.
"Com 'Get back', a gente v� que eles n�o se davam em determinados momentos, mas se davam bem em outros"
Jeov� Guimar�es, produtor cultural
Com 80 minutos, o document�rio “Let it be” teve trajet�ria p�fia. Os Beatles evitaram sua distribui��o mais ampla, pois n�o ficaram satisfeitos com o filme. Cerca de 60 horas de grava��o foram para a gaveta, onde repousaram por mais de cinco d�cadas, at� que o realizador da trilogia “O senhor dos an�is” trouxe o material � luz, devidamente restaurado, recuperado e transposto para o digital.

“� impressionante voc� ter tr�s epis�dios de mais duas horas causando o frisson que est� provocando mundo afora. � um produto incr�vel em termos de linguagem, de recupera��o de imagem e do que revela sobre os bastidores daquele per�odo”, diz o jornalista Edu Henning.
Produtor musical, Henning faz parte do grupo capixaba Clube Big Beatles, que h� mais de
30 anos se dedica ao repert�rio dos Fab Four, j� se apresentou v�rias vezes em Liverpool e lan�ou �lbuns com can��es de John e Paul que permaneciam in�ditas.

Henning destaca a qualidade t�cnica “extraordin�ria” de imagem e de som a que se chegou a partir do material, registrado em pel�cula, que ficou por tanto tempo guardado. Ele assistiu � s�rie com fone de ouvido. Conta que prestou aten��o no som do sapato marcando um compasso no ch�o, da porta batendo e de algum objeto sendo deixado sobre a mesa.
“Esses elementos n�o foram captados no �udio original, que tinha foco nos instrumentos e nas vozes da banda. Os confeitos do bolo, a magia do detalhe, isso tudo foi colocado agora com uma sensibilidade extraordin�ria. � tecnicamente perfeito. Ca� para tr�s assistindo � s�rie”, comenta.
“No que diz respeito � imagem, voc� v� a roupa, o anel, o dedo machucado do Lennon; a textura do casaco de couro e a cor da cal�a do Harrison; a blusa estampada do Ringo”, diz Edu.

O jornalista acredita que a s�rie de Peter Jackson contribui para certa reabilita��o de “Let it be”, ao expandir o quadro do que o filme de Lindsay-Hogg mostrava. “Quando a gente assistiu l� em 1970, foi muito decepcionante, pois o filme basicamente dizia que o sonho acabou. ‘Let it be’ sempre representou o t�rmino, a ruptura dos Beatles, em clima muito tenso e agressivo”, diz.
Em “Get back”, as discuss�es que aparecem em “Let it be” s�o contextualizadas, afirma ele. V�-se que n�o se tratava propriamente de brigas. Ao longo dos �ltimos 26 anos, Henning tem ido com frequ�ncia � Inglaterra e percebeu que a maneira como os brit�nicos debatem algo � firme, mas n�o desrespeitosa ou agressiva.
“Quando voc� entende a postura desses caras, vai l� atr�s em ‘Let it be’ e v� que n�o � t�o pesado assim, eles est�o debatendo, conversando. ‘Let it be’ mostra uma discuss�o do Harrison dizendo que toca do jeito que quiser, como quiser, na hora que quiser. Isso, para a gente, foi sin�nimo de final de Beatles. Em ‘Get back’, a discuss�o dele com Paul � mostrada como um todo, e voc� v� que n�o � uma briga. A frase do Harrison est� dentro de um contexto, n�o � t�o agressiva assim”, aponta.
NUVEM
Aggeu Marques, que integrou diversas bandas cover dos Beatles, como Hocus Pocus, Yesterdays e a Sgt. Peppers, diz que “Get back” dissipa a nuvem sombria sobre aquele momento da trajet�ria dos Fab Four, a qual “Let it be”, ainda que sem inten��o, contribu�a para perpetuar.
Ele destaca que Paul McCartney, em entrevista para Howard Stern (dispon�vel no YouTube), admite, ap�s assistir a “Get back”, que suas lembran�as sobre aquele per�odo foram de certa forma turvadas pelo clima do document�rio “Let it be”.
“Paul diz que se lembrou, depois de assistir a ‘Get back’, de que o momento entre eles era bom. Voc� v� a intera��o alegre entre os caras. � uma fase important�ssima da carreira deles, que precedeu o lan�amento do ‘Abbey Road’, o �ltimo disco gravado e � uma maravilha. O document�rio do Peter Jackson esclarece como era o clima. Eles estavam numa situa��o boa, interagindo”, diz Aggeu. “Foi muito bom trazer � luz essa parte da hist�ria que n�o foi contada direito nem pelos pr�prios Beatles.”
O que mais chamou a aten��o dele foi o processo de cria��o utilizado pela da banda.
“A proposta do ‘Let it be’, l� em 1970, j� era mostrar o desenvolvimento de uma m�sica, que come�a do nada, ganha corpo e vai mudando at� chegar � vers�o final. ‘Get back’ flagra isso com muito mais amplitude. Ali voc� v� que a intera��o musical deles era uma coisa maravilhosa, a forma como um entendia a linguagem do outro. Aquela imagem do Paul McCartney circunspecto, de barba, meio triste, � suplantada pelos registros dos quatro trabalhando, fazendo m�sica de alt�ssimo n�vel, interagindo com momentos de discuss�o, sim, mas tamb�m com alegria”, ressalta.
DOIS LADOS
O cantor e compositor Affonsinho considera que “Get back” equilibra o que em “Let it be” pendia s� para um lado. “A s�rie mostra o processo criativo deles com momentos de descontra��o, mas tamb�m tem a parte que se relaciona com ‘Let it be’, voc� v� os caras conversando e sabe que tem problemas ali, com um clima n�o muito bom, e eles meio sem saber para onde ir. O ‘Let it be’ pegou s� esse lado triste; o ‘Get back’ pega os dois lados, o que tem mais a ver com a vida, com momentos alegres e outros tristes, com momentos de discord�ncia e outros de consenso”, diz.
Dizendo-se “f� sem ser fan�tico”, Affonsinho gostou da s�rie e pretende v�-la novamente para apreender detalhes: o microfone com o qual os Beatles gravaram, a forma como ele � posicionado em frente aos instrumentos, as conversas dos integrantes da banda sobre Yoko Ono – que, na s�rie, est� sempre no est�dio.
Profundo conhecedor da hist�ria dos Beatles, o produtor Jeov� Guimar�es conta que quando “Let it be” foi lan�ado, ele e os amigos costumavam ir ao cinema na primeira sess�o, �s 10h, e s� sair depois da �ltima, � meia-noite.
Depois dessas maratonas, Jeov� concluiu que o document�rio de Lindsay-Hogg era o canto do cisne da banda. “Ele ficou marcado como o filme que mostrava que os Beatles n�o se davam, mas agora, com ‘Get back’, a gente v� que eles n�o se davam em determinados momentos, mas se davam bem em outros. Estou conhecendo um outro lado.”
Outra coisa que chamou a sua aten��o foi a colora��o das imagens. Diferentemente do tom algo sombrio de “Let it be”, em “Get back” o colorido das roupas e do ambiente vem sublinhar o sentimento de intera��o que os registros capturam.
“S� n�o consegui acostumar com a colora��o que deram aos personagens. A sensa��o que tenho � de que encheram a cara das pessoas de p� de arroz. Ficou tudo meio rosado”, diz.
O �nico por�m que Edu Henning e Affonsinho apontam � o fato de “Get back” ser um produto de f� para f�. O n�o iniciado, muito provavelmente vai se entediar. “� um trabalho maravilhoso, mas n�o � para introduzir, n�o � para quem n�o conhece Beatles. Quem n�o conhece vai achar chato, fragmentado”, diz Henning. “N�o � para amadores.”
Affonsinho concorda. “Para quem n�o � f� dos Beatles, pode ser meio chato, porque os caras tocam um pouco, erram, param, come�am a brincar muito. Para quem n�o � f�, talvez seja um pouco cansativo.”