
Quase meio s�culo depois da morte de J. R. R. Tolkien (1892-1973), pesquisadores de sua obra e editores continuam a encontrar textos in�ditos dignos do interesse dos leitores. � o caso de “A natureza da Terra-m�dia” (HarperCollins), comp�ndio de fragmentos, anota��es, cartas e escritos diversos sobre a maior cria��o do autor de “O Senhor dos An�is” e “O Hobbit”: a Terra-m�dia.
No ensaio “Sobre est�rias de fadas”, de 1939, o escritor brit�nico J. R. R. Tolkien defende a fantasia como forma de arte elevada e afirma que ela �, por sua capacidade imaginativa, um direito humano. No entanto, ele alerta para a necessidade de uma coer�ncia interna nas cria��es liter�rias: "Qualquer um que tenha herdado o aparato fant�stico da linguagem humana pode dizer o sol verde. Muitos podem ent�o imagin�-lo ou pint�-lo. Mas isso n�o � suficiente. Criar um Mundo Secund�rio dentro do qual o sol verde seja cr�vel, compelindo a Cren�a Secund�ria, provavelmente vai requerer labor e pensamento e, certamente, vai exigir uma per�cia especial", escreve o autor.
A capacidade de produzir consist�ncia interna � realidade criada � alcan�ada por um atributo conhecido no meio liter�rio como "worldbuilding", ou constru��o de mundo. � por meio desse mecanismo que, de acordo com Tolkien, a fantasia aspira n�o � suspens�o volunt�ria da descren�a do leitor, mas a um sentimento que ele nomeia Encantamento.
Muitos autores constroem mundos engenhosos em suas obras, como Frank Herbert em “Duna”, George R. R. Martin nas “Cr�nicas de gelo e fogo” e Robert Jordan em “A roda do tempo”. Entretanto, talvez nenhum autor tenha se dedicado com tamanho afinco ao seu universo ficcional como Tolkien.

Em “A natureza da Terra-m�dia” , isso fica evidente. A maior parte do material reunido pelo pesquisador americano Carl F. Hostetter ap�s a morte do filho do autor, Christopher Tolkien, que editava seus originais p�stumos desde a d�cada de 1970, n�o foi escrito para ser publicado, o que resulta em textos �ridos, de dif�cil compreens�o.
No entanto, f�s de obras como “O Silmarillion”, que queiram se aprofundar no mundo imagin�rio de Tolkien, certamente se deleitar�o ao saber min�cias sobre a passagem do tempo na Terra-m�dia ou ler sobre como os aspectos naturais desse mundo refletem as vis�es metaf�sicas de seu autor.
O livro fornece at� curiosidades, como quais personagens tinham ou n�o barba – um texto escrito em resposta a uma leitora, mas ao qual o cineasta Peter Jackson n�o deve ter tido acesso, pois sua fiel adapta��o cinematogr�fica de “O Senhor dos An�is” errou nesse quesito.

ENTREVISTA
Qu�o dif�cil foi unir textos distintos de fontes diversas e dar coer�ncia ao livro?
Grande parte do esfor�o por tr�s do que se tornou “A natureza da Terra-m�dia” foi ler e analisar o material tardio que Christopher Tolkien me enviou e compreender sua relev�ncia e o que deveria ser feito. � medida que eu percebi a natureza anal�tica e filos�fica que unificava esse material, comecei a associ�-lo a outros textos de natureza semelhante, tanto publicados quanto in�ditos, reunidos por mim ou por meus colegas dos dois principais arquivos de manuscritos de Tolkien, ou de artigos lingu�sticos que Christopher Tolkien come�ou a nos enviar em fotoc�pia nos anos 1990.
Ent�o, compreendi que tudo podia ser unificado sob o guarda-chuva do termo "natureza", em seus dois principais significados: a flora e a fauna do mundo f�sico de um lado, e as caracter�sticas metaf�sicas essenciais de outro. Tudo inclu�do em “A natureza da Terra-m�dia” jaz em alguma parte do espectro desses dois sentidos de "natureza". Esse enquadramento oferece toda a coer�ncia que o livro possa ter.
Ent�o, compreendi que tudo podia ser unificado sob o guarda-chuva do termo "natureza", em seus dois principais significados: a flora e a fauna do mundo f�sico de um lado, e as caracter�sticas metaf�sicas essenciais de outro. Tudo inclu�do em “A natureza da Terra-m�dia” jaz em alguma parte do espectro desses dois sentidos de "natureza". Esse enquadramento oferece toda a coer�ncia que o livro possa ter.
Que informa��o in�dita desse material mais surpreendeu?
Acho que ningu�m poderia ter previsto Tolkien imaginando que haveria apresenta��es anuais de dan�as dos ursos de N�menor para seus vizinhos humanos! Eu ainda acho essa uma surpresa saborosa.
De que maneira este livro mudou sua vis�o sobre a Terra-m�dia?
Era sabido que Tolkien havia se tornado muito mais anal�tico e filos�fico sobre seu mundo subcriado depois de concluir “O Senhor dos An�is”, mas os textos publicados em “A natureza da Terra-m�dia” fortalecem esse fato e nossa vis�o de seus processos anal�ticos e filos�ficos e sua vis�o de mundo. Em particular, ele torna expl�cita a metaf�sica cat�lica e especificamente aristot�lica/tom�stica de Tolkien.
A aten��o ao detalhe em Tolkien era quase obsessiva. Qual foi o detalhe mais inesperado nestes textos?
Um aspecto surpreendente de “A natureza da Terra-m�dia”, em particular de sua primeira parte, “Tempo e envelhecimento”, � a preocupa��o e a habilidade de Tolkien com assuntos matem�ticos. Tolkien se esfor�ou para planejar e calcular as implica��es cronol�gicas e populacionais de v�rios esquemas das taxas de crescimento e nascimento dos Elfos, sequ�ncias de nascimentos entre casais, etc. Estava empenhado em oferecer um per�odo de tempo realista em que tanto Elfos quanto mortais poderiam multiplicar suas popula��es e (particularmente entre mortais) divergir linguisticamente, dado o que a arqueologia e a lingu�stica nos dizem sobre a pr�-hist�ria humana. O mais inesperado � o fato de que Tolkien se deu ao trabalho de usar calculadoras eletr�nicas para calcular a rela��o dos segundos convencionais (solares) para os an�logos "m�nimos" �lficos at� 360 casas decimais e encontrou onde a sequ�ncia de n�meros come�ava a se repetir!
Por que textos com assuntos t�o espec�ficos interessam aos leitores comuns?
O fato � que eles n�o interessar�o a leigos da fic��o de Tolkien. Eles interessar�o, por�m, aos que apreciam ler os pensamentos �ntimos de Tolkien sobre o que pode ser chamado de "folclore" da Terra-m�dia ("lore"), como escritos publicados nos ap�ndices de “O Senhor dos An�is”, “Contos inacabados” e nos volumes finais da s�rie “A hist�ria da Terra-m�dia”, de Christopher Tolkien, especialmente “O anel de Morgoth” e “Os povos da Terra-m�dia”.
H� quest�es relevantes ainda sem solu��o?
Certamente! Uma das coisas not�veis sobre a subcria��o de Tolkien � que ela convida incessantemente a novas quest�es, algumas das quais o pr�prio Tolkien responde (ou, ao menos, considera algumas respostas). Mas � claro que, assim como no mundo "real", nem tudo � respondido, e respostas quase sempre d�o margem a novas perguntas.