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Estado de Minas GOLEMS

'Os fazedores de Golems' promove m�ltiplos desdobramentos do mito judaico

Livro organizado por Lyslei Nascimento e Luiz Nazario traz trabalho rigoroso sobre o boneco de barro criado por Rabi Loew


21/03/2022 04:00 - atualizado 21/03/2022 08:28

Maria Silvia Duarte Guimar�es
Especial para o EM
Ilustração de golem
Obra promove reflex�es sobre �tica e coexist�ncia

H� muito tempo, narra-se em v�rias lendas e mitos, em Praga, um rabino criou um esp�cime da criatura, conhecida como golem. Em um momento em que o gueto da cidade e seus habitantes estavam em perigo, o religioso molda um ser de argila com a forma humana, soprando-lhe vida ao sussurrar em seu ouvido uma palavra m�gica. Em outras vers�es da lenda, Rabi Loew escreve essa palavra criadora na testa, na m�o ou no peito de seu boneco ou, ainda, em um papel que � introduzido em sua boca.


O livro “Os fazedores de Golems”, organizado pela professora da Faculdade de Letras, Lyslei Nascimento, e Luiz Nazario, professor da Escola de Belas Artes, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cuja segunda edi��o foi publicada em 2021, re�ne quatro ensaios e um texto po�tico, nos quais os autores fazem vislumbrar m�ltiplos desdobramentos do mito judaico.

A nova edi��o traz em sua capa a fotografia de “Janelas”, trabalho emblem�tico do artista mineiro Jacob Korman. Cada uma dessas janelas, esculpidas em madeira, possui, tamb�m, suas particularidades. Trata-se, assim, desde a capa, de um prel�dio, de uma serena introdu��o ao conte�do que o leitor encontrar� no livro. Como afirma Jorge Luis Borges, em seu ensaio “Formas de uma lenda”, a “realidade pode ser complexa demais para a transmiss�o oral; a lenda a recria de uma forma que s� � falsa acidentalmente, permitindo-lhe percorrer o mundo, de boca em boca”.

Em outras palavras, como diz a sabedoria popular, “quem conta um conto aumenta um ponto”. Modelados pelas m�os do artista, os bonecos de madeira da capa v�o se reduplicar nos ensaios e, se num primeiro plano, apontam para a s�rie e a repeti��o, num segundo n�vel, revelam a repeti��o com diferen�a, como queria Jacques Derrida. Tamb�m as vers�es da lenda do golem s�o, assim, prefiguradas e revelam, em suas in�meras vers�es, narradores, criadores e criaturas que, em um exerc�cio benjaminiano, imprimem suas marcas � narrativa. No pref�cio, os organizadores ressaltam que a di�spora judaica contribuiu para a forma��o de uma rica tradi��o liter�ria que se espalha, primeiro, pela Europa e, eventualmente, pelas Am�ricas, “multiplicando suas vers�es fragment�rias at� a contemporaneidade”.

EXPOSI��ES 
No ensaio “O golem: do limo � letra”, Lyslei aproxima tr�s exposi��es e tr�s cidades: Nova York, Praga e Buenos Aires. Nos Estados Unidos, a exposi��o “Golem! Danger, deliverance and art” ocorreu em 1998, no Museu Judaico de Nova York. Foi reunido “um acervo multidimensional de vers�es da criatura”, que inclu�a fotografias, quadros, esculturas, revistas de hist�rias em quadrinho, textos e imagens que “v�m constituindo um arquivo que assombra e encanta o homem”. Para a ensa�sta, cada um dos artistas, poetas, escritores, escultures, pintores ou compositores que participam da exposi��o � um fazedor de golems e, cada uma de suas obras de arte, uma recria��o do mito judaico. Dessa forma, o museu exibe um arquivo “em eterna constru��o, como uma galeria de criadores e criaturas que v�o se definindo”.

As exposi��es de Praga e Buenos Aires se espelham. De acordo com Lyslei, o di�logo entre as duas cidades n�o � acidental: Jorge Luis Borges, “um dos mais sofisticados fazedores de golems de todos os tempos”, dedica seu poema � vers�o da lenda de Rabi Loew, que se passa no gueto de Praga. As exposi��es fazem reverberar fragmentos e vers�es do mito que, no entanto, s�o sempre incompletas, “a n�o ser que se pense, de acordo com Borges, que cada golem cont�m e � todos os golems”.

Ao recontar o mito judaico em forma po�tica, Borges insere, tamb�m, a sua pr�pria marca. Trata-se de um gato que, em seus versos, pertence ao rabino. O poeta afirma: “Algo anormal e tosco houve no Golem, pois se passava, o gato do rabino se escondia. (N�o fala em gato Scholem, mas, atrav�s do tempo, eu o adivinho.)”. Lyslei, sugere, ent�o, que o escritor n�o ignora as in�meras vers�es da lenda e, ao inserir um felino em seus versos, na verdade, inscreve no arquivo judaico a sua pr�pria reescritura, o seu pr�prio golem.

GENEALOGIA
 Em “Os caminhos do Golem pela literatura”, Elcio Loureiro Cornelsen constr�i uma genealogia do mito judaico, desde suas ra�zes b�blicas at� seus desdobramentos na contemporaneidade e, principalmente, na literatura alem�. Para o pesquisador, Jakob Grimm, Clemens Brentano, Achim von Arnim, Annette von Droste-H�lshoff, Gustav Meyrink, Paul Celan e Jorge Luis Borges s�o alguns dos escritores respons�veis pela perpetua��o da narrativa. Ele, ent�o, delineia um perfil da literatura empenhado em recontar a lenda.

Para o ensa�sta, um aspecto comum a todos os relatos que tratam do golem � o desejo de se igualar a Deus. A cria��o do boneco de barro, ent�o, se relaciona com a cria��o dos humanos, com o relato de Ad�o e Eva. No entanto, essa tentativa � frustrada, uma vez que a criatura moldada – tanto na narrativa do Rabi Loew como em outras vers�es – n�o possui alma, ainda que, pelo menos em sua forma, se assemelhe a um humano. O esp�rito seria um elemento que poderia ser dado apenas pela gra�a divina.

De acordo com Cornelsen, a lenda sempre termina com a destrui��o do golem. Em seu romance, Gustav Meyrink apresenta um personagem que, para Gershom Scholem, “muito pouco deve � tradi��o judaica”, na medida em que, no texto, entretece-se uma ideia de reden��o, e que a Cabala que supostamente est� no livro “sofre de uma dose excessiva de teosofia confusa de Madame Blavatsky”. �, no entanto, esta a vers�o do mito com a qual Borges tem um primeiro contato, e que o leva a escrever seu poema. Como sugere o ensa�sta, “o longo caminho do Golem pela literatura significa, tamb�m, a sua transposi��o para outros mundos, atravessando mares, e chegando aos tr�picos”.

No ensaio “O Golem, o aut�mato e Frankenstein”, Luiz Nazario apresenta um itiner�rio da narrativa do golem, que parte das tradi��es orais e m�sticas, passa pela literatura e pelo cinema e, finalmente, pela “realidade tecnol�gica cotidiana”. Para o pesquisador, o mito judaico foi recombinado ou rearranjado com outras narrativas, outros mitos, de modo que, ao longo do tempo, se transformou radicalmente.

FILMES
 No cinema, a obsess�o de Paul Wegener o faz realizar tr�s filmes sobre o golem. No �ltimo e mais famoso, “O Golem: como ele veio ao mundo”, de 1920, o discurso antissemita � entretecido �s cenas, na medida em que Rabi Loew � retratado como um feiticeiro, um homem ligado � magia e ao sobrenatural, o que real�a o imagin�rio antijudaico do qual o nazismo se aproveita. Segundo o ensa�sta, com o fim da Segunda Guerra Mundial, inicia-se um movimento de minimizar o car�ter judaico do mito. Em uma produ��o de 1951, por exemplo, “O padeiro e o imperador da China”, Martin Fric retrata a procura do imperador Rodolfo 2º, um neur�tico, por um golem, enquanto o padeiro Mateus o substitui em seu of�cio.

Nazario identifica tr�s linhagens de seres artificiais que se relacionam com o golem: a das “criaturas biom�gicas”, isto �, moldadas a partir de mat�ria inorg�nica, como o barro, o m�rmore ou o esperma misturado � terra; a das “criaturas biomec�nicas”, como o aut�mato, que s�o formadas a partir de materiais como o a�o, o ferro, a lata, o sil�cio e o pl�stico; e as “criaturas bioel�tromec�nicas” que s�o “uma combina��o de material inorg�nico (metais, eletrodos) com material org�nico (peda�os de corpos, humanos ou animais)”. De acordo com o cr�tico, o monstro criado pelo Dr. Frankenstein seria o representante mais proeminente desta �ltima, sendo que suas diversas adapta��es para o cinema, exaustivas, contribuiriam para a abstra��o do car�ter judaico da narrativa. No mito criado por Mary Shelley, permanece apenas um dos significados da lenda, “o descontrole das cria��es humanas”, e a defesa de uma popula��o amea�ada ou a Cabala como exerc�cio meditativo s�o elementos desconsiderados.

Em “O Golem e suas leituras tecnol�gicas”, Alceb�ades Diniz Miguel analisa o mito como linguagem, ou melhor, metalinguagem, e afirma que “explicar o mito, na maioria dos casos, significa ser absorvido por ele e propag�-lo por interm�dio de uma nova leitura”. Para o ensa�sta, a perman�ncia de um relato mitol�gico se d� por meio de suas leituras, releituras e interpreta��es.

Segundo Miguel, o Romantismo tem um papel relevante na propaga��o da narrativa do golem. O romance de Mary Shelley, “Frankenstein”, seria um exemplo de “uma extraordin�ria releitura”. Tamb�m obras de fic��o cient�fica, de escritores como Isaac Asimov, Harlam Elison e Philip Dick, teriam o relato judaico como uma esp�cie de precursor. Diferentemente de Shelley, por�m, cujo monstro � feito de carne e osso, esses escritores trabalham com a tecnologia e a rob�tica.

DIVINO E HUMANO 
O texto po�tico “Meu Golem”, de Vlad Eugen Poenaru, artista pl�stico e professor de desenho na UFMG, faz parte da exposi��o “Rep�blica dos fazedores de golems”, realizada em 2004, em Belo Horizonte. No texto, o artista aproxima personagens como Pigmale�o, Frankenstein, Dr�cula, Fausto, �caro e Rabi Loew, cujas narrativas – mitos (ou sonhos?) – foram reescritas ao longo dos s�culos, assim como a do golem, “f�nix de barro” que renasce sempre das cinzas. “Por que o Golem?”, ele se pergunta e prop�e uma resposta para a pr�pria indaga��o: “Talvez por causa da simpatia que n�s homens sentimos por nossa pr�pria exist�ncia? M�sera situa��o, m�sera exist�ncia humana”.

O artista-poeta aproxima, assim, sonhos e mitos, homens e golems, Deus e seres humanos. Seria, desse modo, o desejo de tornarem-se divinos, ou seja, criadores, que compele os homens a fazerem golems. Quando os sistemas e os poderes que deveriam manter a paz j� n�o cumprem suas fun��es, afirma Poenaru, “o homem comum volta a sonhar...”. Assim como Rabi Loew criou seu boneco de barro para salvar o gueto de Praga, o artista-escritor tamb�m sonha com uma “Rep�blica dos fazedores de golems”, um mundo de criadores que trabalhem em prol dos oprimidos.

Os ensa�stas em “Os fazedores de Golems”, acabam, assim, a se constitu�rem, tamb�m, como fazedores na medida em que p�em em cena, pela metalinguagem, criadores e criaturas. Assim como o gato de Borges, singelamente posicionado nos versos do poema, � sinal da contribui��o do escritor para o arquivo liter�rio – sempre em constru��o – tamb�m os ensaios da colet�nea inscrevem os pesquisadores nessa tradi��o. O livro � fruto de um trabalho rigoroso e, definitivamente, uma grande contribui��o n�o apenas para pesquisadores da cultura judaica e dos estudos liter�rios, mas tamb�m para promover reflex�es importantes, e para o nosso tempo, sobre a �tica, a coexist�ncia e a arte.

capa do livro 'OS FAZEDORES DE GOLEMS'
(foto: Caravana Grupo Editorial/REPRODU��O )

“OS FAZEDORES DE GOLEMS”
Organizadores: Lyslei Nascimento e Luiz Nazario
Segunda edi��o
137 p�ginas
Pre�o: 40 (frete incluso para o Brasil)



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