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Estado de Minas CULTURA

Os 110 anos de Mazzaropi, o artista que 'cristalizou a imagem do caipira'

Em um tempo de incipiente ind�stria do cinema, montou uma companhia pr�pria para ter controle sobre todo o processo de seus filmes


17/04/2022 19:46 - atualizado 17/04/2022 19:48

Cena de filme de Mazzaropi
Mazzaropi cristalizou a imagem do caipira e criou uma ind�stria pr�pria do cinema (foto: Divulga��o)
Ele foi artista de circo, r�dio, teatro, televis�o e cinema. Encarnou um tipo, deu vida � ideia de caipira no entretenimento — e, de certa forma, no imagin�rio nacional. Empreendeu: em um tempo de incipiente ind�stria do cinema, montou uma companhia pr�pria para ter controle sobre todo o processo de seus filmes.

 

H� 110 anos, em abril de 1912, nascia Am�cio Mazzaropi, aquele que se tornaria uma esp�cie de Charles Chaplin brasileiro. "Foi uma figura incr�vel, que falava [em suas obras] sobre a vida humana, as rela��es humanas, as ang�stias, tristezas e alegrias", define o historiador Eduardo Jos� Afonso, pesquisador de cinema e professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

"Um artista completo, como Chaplin."

 

"Mazzaropi tinha a caracter�stica incr�vel que era a capacidade de reproduzir o homem simples do campo. E sua obra continua mais do que nunca atual, porque ele, como Shakespeare fazia, abordava as quest�es importantes da vida, com seus amores, �dios e trai��es", acrescenta o historiador.

 

Nascido na capital paulista mas criado em Taubat�, no interior, Mazzaropi j� demonstrava aptid�es art�sticas ainda na escola, quando tinha facilidade para recitar poemas e, com seus causos e anedotas, costumava ser o centro das aten��es da turma.

 

Aos 14 anos, come�ou a trabalhar no circo, fazendo pequenas esquetes humor�sticas. Nos anos 1930, criou uma pr�pria companhia teatral, com a qual percorreu diversas cidades do interior paulista. Em 1946, ganhou um programa de r�dio, o dominical Rancho Alegre encenado ao vivo no audit�rio da R�dio Tupi, em S�o Paulo.

 

Quatro anos mais tarde, o mesmo programa foi levado para a televis�o, pela TV Tupi.

 

"O grande valor do Mazzaropi � que ele foi esse ator capaz de se moldar �s diversas linguagens que foram surgindo. Tinha versatilidade. Era de circo, de teatro, de r�dio, de televis�o, de cinema… Sempre trazendo a arte da com�dia, do riso", comenta o jornalista Daniel De Thomaz, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

"Rancho Alegre pode ser considerado o primeiro programa humor�stico da televis�o brasileira", prossegue ele. "Mazzaropi foi um multim�dia, que conseguia levar a com�dia estilo pastel�o, com as brincadeiras escrachadas, transitando com muita facilidade de uma m�dia para a outra."

 

A consolida��o veio no cinema. "Foi quando ele se tornou uma figura reconhecida no Brasil, e at� mesmo fora do pa�s", avalia De Thomaz.

 

Havia motivos, � claro. Sua primeira apari��o na telona foi com filme Sai da Frente, de 1952, um projeto da Companhia Cinematogr�fica Vera Cruz. Era um momento em que televis�o era para poucos. J� cinemas havia mesmo em cidades pequenas em todo o Brasil.

 

Atuou em sete filmes at� que, em 1958, decidiu vender sua casa para, com o dinheiro, montar sua pr�pria empresa cinematogr�fica. Com a PAM Filmes, sigla para Produ��es Am�cio Mazzaropi, ele passou a n�o s� a produzir como a distribuir suas obras.

 

E, claro, passou a controlar todo o processo: do roteiro �s loca��es at� a dire��o e a produ��o em si.

 

"A PAM Filmes inovou a l�gica, pois desde a Segunda Guerra Mundial, a distribui��o de filmes no Brasil estava a cargo de companhias americanas. Ele driblou isso", contextualiza o historiador Afonso.

 

"E conseguiu um grande sucesso, sempre com salas lotadas, com as pessoas querendo ver seus novos lan�amentos."

 

"Os cinemas sabiam que filme do Mazzaropi esgotava a bilheteria, ent�o ele quebrou um paradigma que existe at� hoje, que � a ideia da distribui��o nas m�os de grandes companhias", complementa Afonso.

Caipira

E no cinema o sucesso era maior quando ele encarnava a figura do caipira, recuperando um tipo que j� havia sido explorado por ele nas plataformas anteriores.

 

"Ele cristalizou a imagem do caipira", resume De Thomaz.

 

Mestre em Comunica��es e Po�ticas Visuais, o jornalista Rodrigo Pereira contextualiza esse frenesi em torno do estere�tipo por conta da pr�pria hist�ria brasileira: era um momento de forte �xodo rural, e ao levar para as telas o personagem caipira, Mazzaropi dialogava com aquele homem que havia sa�do do campo para morar na cidade.


Caipira Picando Fumo, de Almeida Junior
No cinema, o sucesso era maior quando Mazzaropi encarnava a figura do caipira (foto: Dom�nio p�blico)

 

"Ele conseguiu criar um tipo, e esse tipo conversava com um Brasil rural e arcaico. Depois [com a PAM], ele se tornou dono do tipo, porque ele pr�prio administrava o que ia fazer com esse personagem, era o pr�prio produtor, escolhia o filme que ia fazer, definia o roteiro", explica Pereira.

 

"Mazzaropi soube olhar para o esp�rito do seu tempo", define.

 

Aos poucos, seus f�s n�o iam ao cinema para ver atores interpretando personagens. Iam para ver Mazzaropi, porque sabiam que ele encarnado no caipira era a garantia do riso, do entretenimento. "Quando ele fazia teatro, quando era o artista mambembe, fazia esse tipo caipira e o p�blico estava no interior", compara Pereira. "Quando ele migrou para o cinema, este p�blico j� estava nas cidades grandes."

 

"Ele pegou essa chave de identifica��o com o p�blico. Era um momento em que as cidades passavam a ganhar import�ncia, quando antes a maioria vivia no campo. As pessoas se identificavam", diz Afonso.

 

"Suas hist�rias fixavam a aten��o do espectador, que dava risada, chorava, mas sa�a do cinema feliz. A mensagem era algo como um 'est� vendo, eu posso n�o ser valorizado, mas sou como ele: no fundo, eu dou a volta por cima, mesmo sendo pobre e vivendo num mundo de simplicidade'."

 

Seu segundo filme pela PAM foi Jeca Tatu, de 1959. E a� as refer�ncias j� estavam prontas no imagin�rio nacional.

 

Havia o Jeca Tatu personagem de Monteiro Lobato — que aparece pela primeira vez em Urup�s, de 1914. Havia o Jeca Tatu dos almanaques distribu�dos em farm�cias de todo o pa�s, patrocinados pelo Biot�nico Fontoura. E passou a haver o Jeca Tatu de Mazzaropi.

 

"Ele olhou para aquilo [o personagem], pensou no caipira que j� fazia, no sucesso do personagem. E criou o seu Jeca Tatu", conta Pereira. "Porque s�o tr�s Jecas diferentes, mas s�o todos Jecas Tatus."

 

Para o historiador Afonso, coube a Mazzaropi responder Monteiro Lobato, no sentido de que seu Jeca n�o era necessariamente um personagem pejorativo.

"Lobato criou o Jeca Tatu como um indiv�duo malemolente, doente, que n�o queria nada, que n�o respeitava nada, que tinha aquela vida de pregui�a. Demonstrava a vis�o elitista do pr�prio Monteiro Lobato", diz o pesquisador.

 

"Mazzaropi desenvolveu a figura do caipira n�o como um indolente, burro, incipiente… Ele deu a volta por cima", acrescenta. "O caipira de Mazzaropi � um homem da terra, n�o � burro. � algu�m que se identifica com aquilo que � do campo, a vida dos animais, da produ��o agr�cola, tudo o mais. Ele passou por cima daquela ideia de caipira como um cara atrasado, de dente estragado e roupa rasgada."

 

De Thomaz ressalta que ele fez a transi��o da figura do caipira, a partir da imagem que j� existia desde o s�culo anterior.

 

"� s� olhar para as pinturas do Almeida J�nior", lembra. Caipira Picando Fumo, de 1893, � um exemplo. "Essa ideia do caipira brasileiro como aquele folgado, vagabundo, que n�o queria fazer nada mas era malandro em alguns momentos, ela j� existia desde o s�culo 19. Os modernistas, em 22, tentaram modificar isso a partir de uma releitura. Mas Monteiro Lobato foi a pedra no sapato."

Lobato reinventou o caipira, e Mazzaropi bebeu nessa fonte para criar a sua vers�o tamb�m.

 

"Mazzaropi teve muito sucesso e foi muito popular, tanto no r�dio, como na TV, como no cinema. E seu �pice foi o Jeca Tatu", resume De Thomaz. "Com sua atua��o, ele fixou esse estere�tipo [de caipira] na cultura popular brasileira."

Cr�ticas

Cena do filme Tristeza do Jeca
Em seu tempo, havia quem questionasse o tom de humor pastel�o. Hoje, ele � visto por alguns como reacion�rio (foto: Creative Commons)

 

Por outro lado, h� tamb�m muitas cr�ticas � produ��o de Mazzaropi. Em seu tempo, havia quem questionasse a precariedade das produ��es e mesmo o tom de humor pastel�o. Hoje, ele � visto como reacion�rio e, para alguns, algu�m que jamais conseguiu assumir sua homossexualidade.

 

"Com essa imagem de caipira, ele de certa forma conseguiu refor�ar uma coisa que os modernistas de 22 estavam querendo mudar: o estere�tipo do brasileiro t�pico como algu�m ignorante, atrasado e folgado", comenta De Thomaz.

 

"Isso remeteria a um Brasil subdesenvolvido, um pouco contra o discurso desenvolvimentista dos anos 1950, que era uma ideia de trabalhar um Brasil em sintonia com as grandes quest�es mundiais. Nesse sentido, ele estava na contram�o de um movimento, uma coisa meio esquizofr�nica."

 

"Por um lado havia a bossa nova, o moderno, a constru��o de Bras�lia, as multinacionais… Por outro, ele refor�ando aquela imagem de um pa�s mais atrasado", completa o jornalista.

 

"Ele era uma pessoa reacion�ria, conservadora. E fez um cinema que expressa isso: um cinema reacion�rio, arcaico", avalia Pereira.

 

"Todo mundo se identificava com Mazzaropi apesar de toda a cr�tica de que ele fazia filmes fracos em termos de tecnologia, que n�o tinham qualidade", frisa Afonso.

 

"Mas a obra suplantava esses argumentos, porque o mais importante era a figura dele e a hist�ria que ele apresentava. Todo mundo ia ao cinema para ver qual era a nova hist�ria que o Mazzaropi ia contar."

 

Roteirista de diversos filmes contempor�neos que foram sucesso de bilheteria, Lusa Silvestre torce o nariz para o cr�ticos.

 

"Mazzaropi era criticado pelos cr�ticos porque achavam que faltava 'arte' — estou fazendo asterisco com os dedos — no trabalho dele. Que faltava verniz", comenta ele.

 

"Mazzaropi respondia: 'eu tenho cem pessoas na equipe, n�o vou conseguir pagar todo mundo fazendo os filmes que os cr�ticos querem'."

 

"Na minha opini�o, a gente continua, com algumas exce��es, fazendo um jornalismo cin�filo de baixa qualidade, onde falta entender o mais b�sico das regras de mercado. Como dar valor a quem criticava Mazzaropi? Ele morreu h� mais de 40 anos e continua importante. Onde est�o os cr�ticos da �poca dele? Quem eram? Precisamos subir o sarrafo: n�o h� problema nenhum em criticar, mas exijo preparo de quem se arvora a falar de cinema", provoca Silvestre.

 

De Thomaz avalia que Mazzaropi deixou, al�m dos 32 filmes, um legado importante: o desenvolvimento de uma com�dia cinematogr�fica 100% nacional.

"De alguma forma isso foi importante para a consolida��o do cinema nacional", pontua.

 

Diretor do filme Casa de Antiguidades, o cineasta Jo�o Paulo Miranda Maria apropria-se do r�tulo de cinema caipira hoje em dia. Mas o que ele faz guarda mais diferen�as do que semelhan�as com a obra de Mazzaropi.

"Ele criou a figura do caipira, esse personagem que � como ele via o interior e trazia esse interior", comenta.

 

"Ele � uma grande inspira��o para mim, mas o sentido do que � caipira para mim � diferente do que era para ele. Para mim, o caipira tem muito a ver com personagens que contemplam, que esperam, que est�o sempre a espera de algo. E que s�o o resultado de muita hist�ria, muita mem�ria, como se concentrassem na pele muitas camadas de hist�ria."

 

Miranda Maria reconhece, contudo, a import�ncia de Mazzaropi. "O nosso Chaplin foi o Mazzaropi, que eternizou a figura do Jeca como Chaplin fez com o vagabundo", resume.

 

"Ele ainda � uma refer�ncia. Mesmo pessoas de outras gera��es, quando veem seus filmes percebem que s�o eternos, porque ainda fazem rir, ainda divertem, ainda dialogam com os sentimentos. Mazzaropi encantou, encanta e encantar� ainda muitas gera��es", acredita ele.

 

Para o roteirista Lusa Silvestre, Mazzaropi faz parte da hist�ria da cultura brasileira "porque era popular, enchia o cinema de gente com as hist�rias em que ele trazia, por mais contradit�rio que possa parecer, ingenuidade e gaiatice ao mesmo tempo".

 

"Ador�vel. O cinema de Mazzaropi formou uma gera��o de brasileiros que se acostumou a ver bons filmes brasileiros no cinema", prossegue Silvestre.

 

"Ele queria botar gente no cinema. Ponto. Levar gra�a a todo lugar. Isso continua sendo prioridade para mim: que meu trabalho alcance os rinc�es do Brasil, hoje busco um cinema nacional menos nichado. Que tenha arte e leveza, que tenha autoralidade, mas que tenha tamb�m um dedo no pulso do povo. Isso � um baita legado."

 

"O cinema era a vida dele e isso tudo transparece na obra que ele criou", sintetiza o historiador Afonso.

 

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