Livro 'A chama' revela a ess�ncia da obra multifacetada de Leonard Cohen
Edi��o seguiu � risca as determina��es do artista antes de morrer, aos 82 anos, conectando o cancionista ao poeta. Lan�amento ser� nesta ter�a (19/4)
Leonard Cohen sintetizou a ess�ncia de sua cria��o no discurso que fez ao receber o Pr�mio Pr�ncipe das Ast�rias, em 2011, na Espanha (foto: Miguel Riopa/AFP/21/10/11)
Leonard Cohen (1934-2016) n�o foi um grande pai. Tamb�m colecionou relacionamentos mal sucedidos. De dinheiro tampouco soube cuidar. “Religi�o, professores, mulheres, drogas, a estrada, fama, dinheiro... nada me d� um barato e um al�vio t�o grande do sofrimento quanto enegrecer as p�ginas, escrever”, disse certa vez o poeta, cantor e compositor canadense.
A morte aos 82 anos n�o o pegou desprevenido. Em 21 de outubro de 2016, dezessete dias antes de morrer dormindo, depois de cair em sua casa em Los Angeles, ele lan�ou o �lbum “You want it darker”. Disse, quando do lan�amento, que estava “preparado para morrer”.
Mas n�o foi esse �lbum e nem outro, lan�ado postumamente – “Thanks for the dance” (2019) –, que o mantiveram vivo, a despeito da sa�de fr�gil. Foi, sim, o livro “A chama” (2018), que ganha agora edi��o bil�ngue ingl�s/portugu�s (a tradu��o � de Caetano Galindo) pela Companhia das Letras – o lan�amento ser� nesta ter�a-feira (19/4).
“Escrever este livro era o motivo de ele estar se mantendo vivo, era seu �nico objetivo premente no final”, escreveu seu filho, Adam, autor do pref�cio da obra que re�ne poemas, letras, desenhos e notas. Ainda que n�o tenha finalizado o volume, Cohen deixou todas as instru��es para que ele fosse publicado a seu gosto.
O livro � aberto com 63 poemas in�ditos selecionados pelo autor. “� sabido que Leonard trabalhava seus poemas por anos, �s vezes d�cadas... Esses 63 ele considerava obras finalizadas”, apontou Alexandra Pleshoyano, professora da Universidade de Sherbroke, no Canad�, na abertura do volume.
KANYE WEST
Rom�ntico at� o fim, ainda que sempre dialogando com a melancolia e a desilus�o, Cohen deixa seu recado em poemas como “Seguindo em frente” e “N�o faz mal”. A autodeprecia��o aparece em “O que eu fa�o” e “Eu ou�o os carros”, a ironia fina em “Kanye West n�o � Picasso”.
A morte est� sempre � espreita: “Eu rezo por coragem/ Que consiga/ A morte ver chegando/ Como amiga” � o �ltimo poema da parte inicial do livro.
A segunda parte re�ne as letras de seus quatro �ltimos �lbuns: “Blue alert” (2006), de Anjani Thomas, que ele produziu; “Old ideas” (2012), “Popular problems” (2014) e o supracitado “You want it darker”. Quem acompanhava a trajet�ria de Cohen sabe que todas as suas can��es nasceram como poemas – ent�o, aqui elas est�o em sua ess�ncia.
A terceira parte � a maior e mais complexa. Durante seis d�cadas, Cohen escreveu diariamente em cadernos. Notas, apontamentos, arremedos de poemas, tudo ficou sob a guarda do professor de literatura Robert Faggen, um dos amigos mais pr�ximos do compositor. Foi ele quem supervisionou a transcri��o de mais de tr�s mil p�ginas desses escritos e selecionou o material.
'RETRATO FRACASSADO'
Colorindo os escritos, h� desenhos ao longo do livro. Cohen deixou 370 autorretratos, 70 deles escolhidos pela equipe que editou a obra. Textos acompanham os desenhos – no primeiro autorretrato, por exemplo, ele escreveu “retrato fracassado”; em outro, “o jeito � agir sem jeito”.
O humor surge em outra imagem que Cohen desenhou de si pr�prio: “Isso n�o � piada, por isso que � engra�ado. Essa � a pr�pria ess�ncia do humor canadense.”
O livro termina com o discurso que Cohen proferiu em 21 de outubro de 2011, quando recebeu o Pr�mio Pr�ncipe das Ast�rias das Letras, na Espanha. A inclus�o do texto, por sugest�o dele, � esclarecedora, amarrando as duas partes, o poeta e o cancionista.
Ao p�blico que compareceu � cerim�nia em Oviedo, Cohen, que tinha como maior influ�ncia o poeta e dramaturgo espanhol Federico Garc�a Lorca (tanto que sua filha se chama Lorca), contou como aprendeu a tocar viol�o.
O SUICIDA DE MONTREAL
Em Montreal, nos anos 1960, ele conheceu um jovem espanhol que tocava viol�o em um parque ao lado da casa de sua m�e. Os dois come�aram a conversar em franc�s ruim e combinaram algumas aulas – at� ent�o, Cohen n�o mais que arranhava o instrumento. Houve alguns encontros, e ele melhorou a olhos vistos.
Certo dia, o professor n�o mais apareceu. Havia se matado, o que impactou deveras Cohen, que nada sabia sobre ele. Mas foram as breves aulas, e os seis acordes simples que aprendeu com o jovem morto, que se tornaram a base para todas as suas can��es.
TR�S PERGUNTAS PARA
CAETANO GALINDO/TRADUTOR
1 - Voc� escreveu que as letras de Leonard Cohen t�m rela��o mais pr�xima com os livros do que as de Bob Dylan, a quem tamb�m j� traduziu. Que aspectos os aproximam e os distanciam?
O Dylan � muito mais expansivo, em todos os sentidos: na dura��o das m�sicas, na extens�o das letras, na abrang�ncia dos temas. O Cohen � muito mais contido, muito mais ‘m�sica de c�mara’. Sua m�sica � mais no formato pop tradicional. Os poemas t�m estruturas mais enxutas, os versos s�o mais curtos. Ele � um pouco menos poeta do mundo como � o Dylan. O Dylan � ‘filho’ do Walt Whitman, quer ser multid�o, mundo. O Cohen � muito mais modesto em suas pretens�es, muito mais zen, mais cronista do imediato, das letras de amor, de casal. Ele tem muito presente a coisa do divino, da religi�o. Em todos os sentidos, formas e temas, os dois s�o criadores muito diferentes, musical e poeticamente.
2 - H� can��es da fase inicial da carreira de Leonard Cohen que, regravadas d�cadas mais tarde, ganharam novas nuances diante da gravidade do registro vocal dele. Sua produ��o po�tica tamb�m ganhou outras nuances frente � maturidade, j� que o livro re�ne poemas e apontamentos de diferentes �pocas?
Acho que sim. Mas como � um livro de portas da morte, � dif�cil a gente n�o projetar essa expectativa na leitura dos textos, assim como era dif�cil para ele e para o filho j� n�o lidar com esses termos. Ele sabia que estava lidando com seu �ltimo livro. Ent�o a gente percebe – e � dif�cil determinar o que � a nossa lente, j� meio borrada – a mudan�a, uma dire��o para outros temas. Isso � natural do envelhecimento, de um artista que continuou produzindo durante tanto tempo. Em certo sentido, � uma situa��o muito privilegiada o leitor ter acesso a um livro que foi concebido como um testamento, como um depoimento final.
3 - Que diferen�as se pode apontar entre os poemas e as letras de Leonard Cohen?
H� diferen�as, mas elas n�o s�o t�o sens�veis assim. O Cohen era um poeta, ao contr�rio do Dylan, algu�m que vem da m�sica e leva para a m�sica esse referencial da poesia. O Cohen era algu�m das letras que, a partir de um momento, decide cantar seus poemas. Para mim, � muito claro que as can��es s�o colocadas nos poemas, j� s�o vers�es mais ou menos relacionadas com este universo. Inclusive, aparecem no livro poemas que s�o vers�es de letras de m�sicas. As altera��es s�o muito sutis. �s vezes, para o formato de can��o, h� certas altera��es de repeti��o, de forma, que s�o necess�rias. Acho que isso � parte do encanto que as pessoas sentem pela obra dele. � poesia cantada mesmo.