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Estado de Minas CULTURA

Gilberto Gil fala de primeiro encontro com racismo e medo de morrer

Em entrevista � BBC News Brasil, artista e ex-ministro comenta proximidade da celebra��o de seus 80 anos e diz que n�o tem mais vontade de voltar � pol�tica


13/05/2022 23:37 - atualizado 13/05/2022 23:37

Gilberto Gil
(foto: Getty Images)
Gilberto Gil est� prestes a completar 80 anos. Se os n�meros cheios geralmente motivam celebra��es e balan�os, para o cantor n�o h� sentido em "marcos r�gidos".

 

A seu modo, ele explica que "o anteontem e o ontem pesam tanto quanto o hoje e as expectativas do amanh�".

 

De qualquer forma, a data (26 de junho) n�o ser� passada na tranquilidade de casa: o cantor abre uma turn� europeia de 40 dias como atra��o principal de um festival no norte da Alemanha.

 

O giro, intitulado N�s, a Gente, reunir� quase 40 pessoas da fam�lia Gil, entre m�sicos da banda, t�cnicos e convidados.

 

As apresenta��es e a conviv�ncia com filhos e netos v�o ser pano de fundo para uma s�rie de streaming na Amazon.

Rec�m-empossado como imortal na Academia Brasileira de Letras e homenageado com o t�tulo doutor honoris causa da Berklee College of Music — uma das mais prestigiadas universidades de m�sica do mundo —, Gil diz � BBC News Brasil que a pr�xima turn� ter� seus desafios.

 

"� in�dito no sentido de ter a fam�lia toda. Portanto, as quest�es de administrar um grupo t�o grande s�o novas."

 

 

O cantor tamb�m conta que, apesar dos quase 60 anos de carreira, foi desenvolvendo um "certo nervosismo" e uma "dimens�o um pouco aflitiva" sobre se apresentar ao vivo.

 

"Acho que pelo envelhecimento mesmo." Ele explica que a falta de confian�a "na dimens�o da performance f�sica, da qualidade atl�tica" traz "novas preocupa��es, que implicam um certo aumento do nervosismo".

 

Em meados da d�cada passada, Gil enfrentou uma s�rie de interna��es por problemas renais que geraram temores sobre sua sa�de. Intercalou os per�odos no hospital com outros em cima do palco para uma turn� em dupla com Caetano Veloso.

'Como viver... a morte'

Nos shows dessa �poca, incluiu no repert�rio uma faixa bastante direta sobre a mortalidade: N�o Tenho Medo da Morte.

 

"Ela medita sobre essa quest�o, sobre as rea��es mais �ntimas poss�veis, as mais individuais poss�veis a respeito de um temor de toda a humanidade, de todos os indiv�duos, que lidam em uma determinada medida com essa quest�o da finitude", explica.

 

Na letra, o compositor diz que n�o tem medo da morte em si, mas teme o momento e o contexto dela. "�... acho que uma das quest�es b�sicas das pessoas � o verbo morrer, mais do que o substantivo 'morte'. � o ato de morrer, ou como viver... a morte [risos]."


Caetano Veloso e Gilberto Gil em show em 2016
Em uma fase em que enfrentou problemas de sa�de, Gil intercalou os per�odos no hospital com outros em cima do palco para uma turn� em dupla com Caetano Veloso (foto: Getty Images)

 

Segundo ele, "o frescor geral da condi��o existencial" � mantido atrav�s das rela��es pessoais.

 

"Isso ocorre com todos os processos naturais de cuidado com a sua exist�ncia. Vivendo os modos de viver, tudo que envolve o seu viver. A come�ar pelo c�rculo familiar e os v�rios outros c�rculos que v�o lhe envolvendo em termos humanos", diz o cantor.

 

"� a obrigatoriedade mesmo da vida que faz com que eu continue atento a tudo que est� acontecendo."

 

Isso aparece em sua an�lise da produ��o musical recente. V� no k-pop "jovens coreanos que se tornaram realizadores extraordin�rios desse campo da p�s-modernidade musical", um conceito que tamb�m aplica ao som de Anitta.

 

Na sua vis�o, o pop atual, em que novos pa�ses e l�nguas conquistam evid�ncia e sucesso, tem caracter�stica "fragment�ria, n�o-linear", de n�o se prender � rigidez de g�neros.

 

"Anitta utiliza elementos d�spares. A dosagem de tudo que ela faz tem um pouquinho disso, um pouquinho daquilo: do samba, da bossa nova, do pop brasileiro, do rock and roll e do rap."

 

"� preciso n�o esquecer que eu sou do tropicalismo. Ent�o toda essa complexidade, toda essa variedade de impulsos, sentidos e dire��es j� era proposta e prevista pelo tropicalismo."

Mundo cibernetizado

Gil tamb�m se mant�m atento a mudan�as tecnol�gicas que impactam o mundo, uma constante na sua obra.

 

No disco mais recente de in�ditas, Ok Ok Ok (sem contar uma trilha para o Grupo Corpo de dan�a), o tema foi a �nsia de opinar sobre qualquer coisa nas redes sociais.


Gil com Anitta e Caetano em show na cerimônia de abertura da Olimpíada do Rio em 2016
Gil com Anitta e Caetano em show na cerim�nia de abertura da Olimp�ada do Rio em 2016 (foto: Getty Images)

 

Antes, ele j� havia escrito letras de mais entusiasmo com as possibilidades da web (Pela Internet) e tamb�m de desconfian�a com o que significava conquistar a Lua (Lunik 9) e a chegada da intelig�ncia artificial (C�rebro Eletr�nico).

 

Para o compositor, algumas esperan�as de melhorar o mundo representadas pela tecnologia n�o se confirmaram.

 

"Est� ficando complicado. Uma expectativa mais positiva que a gente teve anteriormente vai se derretendo um pouco. Voc� tem que enfrentar uma realidade que � muito mais complexa do que aquele sonho."

 

Existe preocupa��o em como o celular e a internet se entranharam no dia a dia de todos: "Tem a fam�lia, os filhos, como administrar o acesso a eles. Esse novo ingrediente que faz parte da educa��o, que voc� n�o tinha antes, de educar os filhos para esse mundo cibernetizado", diz.

 

"� dif�cil administrar como � sentar � mesa, qual � a hora de comer, qual � a hora de sair, a hora de brincar, a de dizer a verdade na internet... qual a hora de mentir [risos]."

Bolsonarismo � 'contra a inova��o'

Por sua vez, Gil se mostra mais otimista sobre a tens�o pol�tica que domina o Brasil atual.

 

"Eu acho que a apreens�o � um ingrediente entre outros tantos. A expectativa positiva � uma delas, de que tudo desemboque num fortalecimento da democracia, numa compreens�o mais ampla da mudan�a, da transitoriedade."


Gil em 2004 quando era ministro da Cultura
Gil em 2004 quando era ministro da Cultura (foto: Getty Images)

 

Ele justifica o racioc�nio pelo que observou durante o s�culo 20, quando "foram derrubadas v�rias barreiras s�rias ao desenvolvimento humano" em que "derrubou-se o nazismo, derrubou-se o comunismo naquilo que tinha de mais nefasto, estabeleceu-se o desejo de uma sistematiza��o democr�tica mais eficaz".

 

Ex-ministro da Cultura, cargo que ocupou durante o governo de Luiz In�cio Lula da Silva, o cantor v� no bolsonarismo um movimento "contra a inova��o, contra a novidade, contra o surpreendente".

 

"� a busca dessa estabilidade conservadora que o bolsonarismo representa. Representa um contingente consider�vel de mentes e cora��es que trabalham com esse tipo de vis�o, de expectativa, de esperan�a em um mundo velho, numa regress�o: 'Temos que regredir para nos salvarmos'."

 

Diz que n�o aceitaria voltar � pol�tica se fosse convidado. "N�o, j� n�o tenho mais energia para isso. J� sou um homem velho e tenho que respeitar a minha velhice."

 

Al�m de ministro da Cultura, Gil tamb�m foi vereador em Salvador por PMDB (atual MDB) e PV no final dos anos 1980. Com a carreira pol�tica encerrada, o que leva da experi�ncia?


Gilberto Gil durante apresentação na França em 1986
Gilberto Gil durante apresenta��o na Fran�a em 1986 (foto: Getty Images)

 

"Que � um campo de atua��o complexo, como todos os outros, onde voc� tem que lidar com prioriza��es que muitas vezes s�o dif�ceis de se obter. Voc� tem que fazer escolhas, estabelecer crit�rios para a feitura de escolhas, e esses crit�rios s�o gelatinosos."

Discrimina��o racial

Outro campo de atua��o complexo no Brasil enfrentado por Gil foi o da quest�o racial. Mas ele mant�m otimismo ("em linha geral a coisa anda para frente"), mesmo que no dia da entrevista o notici�rio destacasse a expuls�o do vereador paulistano Camilo Crist�faro do PSB por uma fala racista.

 

"Antes, not�cias como essa nem existiam. Os brancos exerciam sua hegemonia silenciosamente, tranquilamente, sem perturba��o nenhuma. At� bem pouco tempo atr�s escravizavam, massacravam, matavam, faziam o que queriam sem que ningu�m dissesse nada. Agora n�o, agora as vozes est�o divididas, est�o compartilhadas."

 

Ele relata que teve um despertar relativamente tardio para a identidade negra, para o sentimento de negritude.

 

"A distin��o de ra�a para mim s� veio j� a partir da adolesc�ncia. At� ali eu vivia numa fam�lia de classe m�dia, pequeno burguesa, m�e professora, pai m�dico, figuras importantes nas microssociedades em que o racismo era nada, n�o existia."

 

Foi na adolesc�ncia em Salvador e como jovem adulto em S�o Paulo — onde trabalhou na companhia Gessy Lever ap�s se graduar em administra��o — que Gil vivenciou epis�dios abertamente racistas.

 

"Sofri discrimina��o por parte de alguns colegas e de alguns professores. Manifesta��es negativas em rela��o a minha presen�a nas salas de aula e coisas desse tipo."

 

"J� depois de casado, no in�cio da vida adulta aos 22, 23 anos, em S�o Paulo, tive que lidar com quest�es como alugar apartamentos, casas para morar. A� voc� j� tinha aqui e ali uma pequena ponta de discrimina��o racial."

 

Epis�dios que certamente mexeram com a raiva interna de Gil, algu�m que j� se definiu como dono de "uma aura de mansid�o" e cuja imagem p�blica � associada � serenidade e ao esot�rico.

'Raiva n�o me interessa'


O cantor em entrevista à BBC News Brasil, via Zoom
O cantor em entrevista � BBC News Brasil, via Zoom (foto: BBC)

 

"Canalizar a raiva, o �dio e as sensa��es dif�ceis, negativas sempre se deu fazendo uso da condi��o oposta, buscando sempre a serenidade, calma, tranquilidade."

 

Ele diz que esses estados s�o "aquisi��es, coisas desejadas" e que se for�ava a analisar os sentimentos: "Pensava 'ah isso aqui � raiva, n�o me interessa muito, n�o vai me ajudar muito'".

 

Segundo o cantor, alcan�ar serenidade � trabalho duro.

 

"Essa eleva��o, esse tirar do ch�o, essa supera��o da gravidade que coisas como a medita��o proporcionam � um trabalho, � resultado desse trabalho, de voc� buscar 'subir aos c�us sem cordas para segurar'" — como diz o verso de Se Eu Quiser Falar com Deus.

 

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