
Criolo n�o � o tipo de artista que est� sempre compondo. Antes de "Sobre viver", seu quinto �lbum, rec�m-lan�ado nas plataformas digitais, ele passou um bom tempo sem escrever rap. "Nos �ltimos tr�s anos, antes da pandemia, eu tive um per�odo de n�o escrever nada de nada", conta.
"Acho que os sentimentos me visitavam, mas n�o desaguavam em rap. Sentia que eles n�o estavam � altura do rap. E quando o sentimento me visita, mas n�o des�gua, eu n�o for�o e sofro as consequ�ncias disso."
Uma delas foi a forma como o g�nero ficou de lado na carreira do artista. O �ltimo trabalho dele no estilo, "Convoque seu buda", � de 2014. Depois disso, Criolo se converteu ao samba com o elogiado �lbum "Espiral de ilus�o" (2017) e, desde ent�o, trabalhou singles avulsos, como "Boca de lobo" (2018) e "Et�rea" (2019), mas nunca chegou a sinalizar que estava produzindo um �lbum cheio.
Isso mudou em 2020, j� durante a pandemia da COVID-19, quando o artista se aproximou ainda mais da dupla de m�sica eletr�nica Tropkillaz, formada pelos DJs e produtore
"Os canais da minha produ��o come�aram a desentupir a partir da aproxima��o com eles, muito por conta das m�sicas 'Sistema obtuso' e 'Cleane'. A conviv�ncia criou alguma coisa dentro de mim que as emo��es voltaram a desaguar em forma de rap. Estar com eles, numa esp�cie de irmandade que a gente vem construindo desde 2013, quando a gente se conheceu, fez com que eu me sentisse extremamente acolhido", ele conta.
"Cleane" � um dos tr�s singles que Criolo lan�ou entre 2020 e 2021. A m�sica presta homenagem � irm� do artista, Cleane Gomes, que morreu, aos 39 anos, v�tima da COVID-19, em junho do ano passado. Assim como "Sistema obtuso" (2020) e "Fellini" (2021), ela n�o faz parte de "Sobre viver", mas a sua motiva��o, ou seja, o luto e a indigna��o, est�o bastante presentes no disco.
Nos �ltimos tr�s anos, antes da pandemia, eu tive um per�odo de n�o escrever nada de nada. Acho que os sentimentos me visitavam, mas n�o desaguavam em rap. Sentia que eles n�o estavam � altura do rap. E quando o sentimento me visita, mas n�o des�gua, eu n�o for�o e sofro as consequ�ncias disso
Criolo, cantor e compositor
SOFRIMENTO
"A pandemia criou um momento muito f�nebre e triste para mim. Eu olhava ali minha m�e e minha irm� cheias de medo de pegar o v�rus e, depois que a Cleane pegou, a gente acompanhou todo o sofrimento. � muito doloroso passar por todo esse processo de ter um ente querido na UTI. Eu via diariamente a dor e o sofrimento da minha fam�lia", ele conta.Esses sentimentos aparecem em "Pequenina", faixa produzida somente por Criolo, com arranjo de Jaques Morelenbaum e participa��o da m�e do rapper, Maria Vilani, al�m do funkeiro MC Hariel e da cantora Liniker. "Cuidar da minha irm�/ Agora s� em prece/ Ela n�o est� mais aqui/ � que esse mundo n�o te merece", diz um dos versos.
"A gente tem que reagir", Criolo afirma. "N�o d�, a gente n�o pode nunca mais deixar, na hist�ria deste pa�s, uma pandemia ou qualquer outro problema dessa magnitude e natureza ser conduzido da forma como foi. A gente tem que reagir. E o que � mais forte na minha vida do que o rap para me dar for�as para reagir? S� o amor da minha m�e."
Ao longo das 10 faixas que formam o trabalho, Criolo faz uma anatomia de sua pr�pria revolta e transmite uma mensagem de amor e esperan�a. Os grandes temas de sua produ��o continuam sendo a injusti�a social e o racismo estrutural, mas o rapper joga nesses assuntos a luz de quem acredita que dias melhores vir�o.
N�o d�, a gente n�o pode nunca mais deixar, na hist�ria deste pa�s, uma pandemia ou qualquer outro problema dessa magnitude e natureza ser conduzido da forma como foi. A gente tem que reagir. E o que � mais forte na minha vida do que o rap para me dar for�as para reagir? S� o amor da minha m�e
Criolo, cantor e compositor
CAOS
Uma das provas disso � que o disco, a princ�pio, se chamaria "Di�rio do Kaos" - estilizado com "K", em refer�ncia ao nome de batismo do rapper, Kleber. A mudan�a foi feita porque o artista deseja que o trabalho tamb�m seja visto como uma forma de superar os problemas que ele mesmo apresenta."Muita gente n�o sabe o que � o Brasil e quais s�o os verdadeiros problemas que as pessoas enfrentam. O caos que est� instaurado aqui; existe antes de mim, dos meus pais e dos meus av�s. A pandemia agravou esse caos e apresentou para quem n�o tinha ideia do que � o Brasil real o tamanho do que � esse descaso com o nosso povo. O caos existe. Fato. Mas tem sa�da", ele afirma.
"No Brasil, a gente n�o vive. Viver � plenitude. � dormir tranquilo sem qualquer tipo de inseguran�a em rela��o ao amanh�. Aqui a gente sobrevive. O caos existe e a gente � obrigado a seguir em frente como se nada tivesse acontecido", acrescenta.
A partir desse tipo de pensamento que Criolo escreveu, por exemplo, a m�sica "Di�rio do Kaos", que abre o disco com versos emblem�ticos: "Isso a� n�o vai conseguir nada, mano/ Isso a�, esse sonho de cantar rap/ Isso a� n�o vai conseguir nada/ Dar m� vergonha pra m�e dele, pro pai dele, entendeu". Com ela, o artista reitera sua cren�a no g�nero com o qual se consagrou.
No Brasil, a gente n�o vive. Viver � plenitude. � dormir tranquilo sem qualquer tipo de inseguran�a em rela��o ao amanh�. Aqui a gente sobrevive. O caos existe e a gente � obrigado a seguir em frente como se nada tivesse acontecido
Criolo, cantor e compositor
DISCRIMINA��O
No �lbum, h� m�sicas como "Pretos ganhando dinheiro incomoda demais" e "Moleques s�o meninos, crian�as s�o tamb�m", que abordam diretamente quest�es relativas � discrimina��o racial; e m�sicas que tratam da relig�o como tema, caso de "Ogum ogum" (com Mayra Andrade, cantora nascida em Cuba e criada em Cabo Verde) e "Yemanj� chegou".Em "Me corte na boca do c�u, a morte n�o pede perd�o", Criolo apresenta um jeito de cantar mel�dico em clima de Carnaval f�nebre. A m�sica ganha ainda mais profundidade por conta da participa��o de Milton Nascimento, com quem o rapper j� trabalhou anteriormente no EP "Existe amor" (2020).
"Quem planta amor aqui vai morrer", que remete A temas afro-brasileiros, � dedicada a ativistas nacionais como o seringueiro Chico Mendes (1944-1988) e a vereadora Marielle Franco (1979-2018), ambos assassinados. J� a derradeira "Aprendendo a sobreviver" � a s�ntese do discurso do �lbum, na qual o artista versa sobre as gra�as e as desgra�as da vida.
"Os refr�es e os nomes das m�sicas foram pensados para criar, de modo afetuoso, respeitoso e carinhoso, uma abertura ao di�logo. Abrem uma porta. O rap abre uma comporta de emo��es que podem alimentar o di�logo entre as pessoas", ele explica.
O grande destaque do disco � "S�timo templ�rio", na qual Criolo mostra que n�o abandonou o flow adotado no in�cio da carreira. Nessa m�sica, ele canta sobre o governo atual, sem citar diretamente seu dirigente. A m�sica trata do desmatamento da Amaz�nia e do genoc�dio ind�gena. "Um presidente que diz plau depois pergunta 'isso � matan�a?'", diz um dos versos.
Questionado se alimenta algum tipo de esperan�a em rela��o � elei��o presidencial de outubro pr�ximo, o artista afirma que sim e deposita esse sentimento principalmente nas crian�as e na juventude, que, segundo ele, "n�o deixam a peteca cair".
"� muito dram�tico porque talvez mude a pessoa que ali est� por conta do pre�o da gasolina e n�o pelas mortes. � duro. � muito duro. Os n�meros falam de mais de 600 mil pessoas que se foram, mas ser� que eles abrangem todo mundo mesmo? Mas o que se fala � que a gasolina aumentou de novo. Diante da banaliza��o da vida, voc� aceita a morte, a morte matada. E a gente segue aprendendo a sobreviver", ele afirma.

"SOBRE VIVER"
• De Criolo
• 10 faixas
• Oloko Records/BMG
• Dispon�vel nas plataformas digitais