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Estado de Minas ARTES VISUAIS

Localizado em BH pintor que expunha suas obras sem saber em Ouro Preto

Telas de Gerson Flores integram a mostra "Principium", em cartaz na cidade hist�rica; curador havia perdido contato com o artista, que vivia em situa��o de rua


17/05/2022 04:00 - atualizado 16/05/2022 23:12

com quadro seu ao fundo, de óculos de aros grandes e bandana preta na cabeça, Gerson Flores observa o repórter que o entrevista, fora de quadro
Gerson Flores viveu em situa��o de rua no Bairro Floresta. No in�cio da pandemia, a Pastoral de Rua o ajudou a ir morar em uma casa (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
 
Quem passasse, em 2019, pela Avenida do Contorno, em um ponto pr�ximo ao n�mero 1.480, no Bairro Floresta, Regi�o Leste de BH, provavelmente se depararia com as pinturas de Gerson Flores, artista ex-morador em situa��o de rua que habitava a regi�o havia mais de 20 anos. Hoje, para ver seus quadros, ser� necess�rio se deslocar at� Ouro Preto, onde eles se encontram expostos na Galeria de Arte Nello Nuno, da Funda��o de Arte de Ouro Preto (Faop).

A mostra “Principium”, com obras de Gerson Flores, tem curadoria do arquiteto, restaurador e fot�grafo Alexandre Mascarenhas e foi aberta nom 29 de abril �ltimo. A visita��o segue aberta at� o pr�ximo dia 29. Gerson, que n�o se encontra em situa��o de rua desde o in�cio da pandemia, ter� finalmente a chance de visitar a exposi��o no pr�ximo domingo (22/5). Quando ela foi aberta, o curador desconhecia o paradeiro do artista, que deixou de ser visto em Ouro Preto.

O passado de Gerson Flores (n�o apenas o recente) � misterioso: provavelmente nascido em 1973, filho de descendentes de quilombolas, ele conta que costumava morar no Bairro Cachoeirinha, Regi�o Noroeste de BH. Ap�s a morte da m�e, entre 1999 e 2000, a situa��o se complicou e seus irm�os – com quem atualmente n�o tem nem deseja ter contato – lhe colocaram para fora de casa, segundo conta.

“Suas pinturas t�m v�rios temas recorrentes, uma caracter�stica da arte espont�nea que faz parte de um prov�vel passado e da mem�ria de seu inconsciente”, aponta Alexandre Mascarenhas. “S�o cenas de cidades no interior e casar�es coloniais, mas tamb�m de BH e do Viaduto Santa Tereza, por onde andava e procurava material para suas pinturas.”

quadro de gerson flores mostra baiana com gamela na cabeça, sob fundo amarelo
Telas do pintor chamaram a aten��o do curador Alexandre Mascarenhas, que organizou a exposi��o na Galeria Nello Nuno, em Ouro Preto (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

D�VIDA

De acordo com o curador, os �nicos registros sobre sua vida antes da situa��o de rua s�o orais, de quando Alexandre chegou a gravar v�deos e fazer anota��es sobre suas conversas. “N�o sabemos dizer o que � est�ria e o que � hist�ria. Ele comentou, uma vez, que gravou um v�deo com Gabriel O Pensador em seu Instagram, e outra, que chegou a jogar no Sparta Futebol Clube, um time da 3ª Divis�o, do munic�pio de Campo Belo”, comenta Alexandre.

Na tarde da �ltima quinta-feira (12/5), Gerson Flores recebeu a reportagem do Estado de Minas na casa onde vive atualmente, em Belo Horizonte. Ele afirma que come�ou a pintar logo depois de ir para a rua, em um dif�cil momento, no qual era dependente qu�mico e n�o tinha o que comer. 

“Deus me libertou quando eu decidi buscar por mim mesmo”, afirma. “Nos mais de 20 anos em que eu vivi ali pelo Floresta, aprendi a dar muito valor � minha vida e � das pessoas que gostam de mim.”

Em abril de 2019, Gerson foi tema de duas reportagens do BHAZ, ambas assinadas pelo rep�rter Vitor Fernandes, nas quais a hist�ria e a situa��o de Gerson nas ruas eram descritas. Na �poca, Gerson costumava trocar seus quadros por alimentos. Com a repercuss�o das reportagens, ganhou reconhecimento local e conseguiu vender algumas de suas obras, bem como receber encomendas.

“O que ele falou (na reportagem: ‘Ningu�m me v�, mas enxergam minhas pinturas’) foi muito forte”, rememora o jornalista. “Quando parei para ouvir o tudo que ele me disse foi um tapa na cara. A gente se identifica, infelizmente, com essa frase. Parei naquele momento ali apenas porque vi as pinturas, e isso d�i.”

Gerson conta que foi v�tima de diversos abusos enquanto se encontrava em situa��o de rua. “Pessoas j� tentaram roubar meus quadros, me agredir com barra de ferro e chamar a pol�cia para me expulsar. Eu vivi atrav�s da f�”, diz. 

O epis�dio da pol�cia que ele cita refere-se � reclama��o da propriet�ria de um restaurante, que acionou a PM alegando que a presen�a de Gerson estava atrapalhando sua clientela.

As pinturas de Gerson retratam folclore, carnaval, tradi��es e temas religiosos. Segundo o curador Alexandre Mascarenhas, ele demonstra grande habilidade para trabalhar com misturas e contrastes de cores e o faz de forma muito r�pida. Ao longo de muitos anos, Gerson pintou com objetos e ferramentas improvisados, lan�ando m�o do que encontrava em seu cotidiano. Agora, recebe doa��es de latas de tinta, pinc�is e telas.

Eu fico emocionado quando vejo as coisas que tirei do lixo se transformarem em arte. Cada vez mais, vou me aprofundar na minha arte. N�o h� sentido em parar. Quando a gente para, nossa mente fica vazia

Gerson Flores, pintor autodidata



tela de gerson flores mostra figura masculina indígena cercada por baianas
Os quadros de Gerson t�m temas recorrentes, como as baianas, ou a entidade Hongbak, que ele diz ser uma divindade chinesa (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

TEMPO

“At� essa quest�o do tempo para ele � amb�gua”, aponta Alexandre. “Ele n�o costuma assinar os meses nas pinturas, apenas os dias e os anos. � claro que tem no��o do que s�o os meses e de como funcionam, mas isso n�o tem tanta import�ncia para ele”.

Uma das figuras mais recorrentes e misteriosas em suas obras � o Hongbak (a grafia est� de acordo com o autor), que representa for�a, lideran�a, coragem e as virtudes do ser humano. Gerson diz se tratar de uma antiga divindade chinesa sobre a qual aprendeu em seus anos no Bairro Floresta.

O autor a representa como uma cabe�a ornamentada por diamantes, muitas vezes sendo estrangulada por serpentes. “� o poder, representado pelos diamantes na cabe�a do l�der, sendo tra�do por sua pr�pria ambi��o, que s�o as serpentes, figuras t�o fortes quanto. Essa dicotomia � muito atual e ficou extremamente vis�vel no momento pol�tico e econ�mico atual”, afirma Alexandre Mascarenhas.

O curador, quando come�ou a ter contato com a obra de Gerson, em 2019, criou um material para inscrever o artista nos editais da Faop. Atingindo o quarto lugar na sele��o, a exposi��o foi marcada para 2020 e adiada devido � pandemia. Este ano, com o retorno da visita��o p�blica, “Principium”, nome escolhido pelo curador, foi finalmente inaugurada.

O curador foi o representante do artista na exposi��o at� o momento, j� que Gerson n�o havia sido encontrado ap�s o in�cio da pandemia. Alexandre teve seu �ltimo contato com ele em 10 de outubro de 2019 e, ap�s procurar em mais de 20 abrigos e casas de acolhimento, mas n�o conseguiu contato com o pintor.

quadro de gerson flores mostra figura de baiana com gamela na cabeça, sob pórtico multicolorido
No pr�ximo domingo, o artista pretende visitar sua exposi��o na cidade hist�rica (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

PASTORAL

O que o curador n�o sabia � que Gerson saiu da situa��o de rua poucos meses ap�s o in�cio da pandemia. A Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte conseguiu arranjar uma casa para ele, onde permaneceu no desenrolar da pandemia. Quando perguntado na entrevista se tinha medo de andar pelas ruas, Gerson respondeu com um dolorido sim. “A gente acostuma com a rua, com toda a dificuldade e com todo o sofrimento”, diz.

Depois de ter not�cias da exposi��o de seus quadros em Ouro Preto e da boa acolhida � exposi��o, Gerson tomou a iniciativa de entrar em contato com o curador e com a Faop, por meio de conhecidos em comum. 

“Estou ficando famoso!”, exclama, orgulhoso. Herbert Antunes, s�ndico do Condom�nio Floresta, foi quem descobriu o paradeiro do artista. “Eu sa� perguntando a todos que eram do conv�vio do Gerson aqui no Bairro Floresta. Encontrei uma ‘namorada’ dele que sabia onde ele estava e pedi a ela para lhe dizer que eu queria falar com ele. No dia seguinte, ele me procurou”, conta Herbert.

De partida para Ouro Preto para atender � exposi��o no domingo (22/5), Gerson afirma que seu sonho � viver na cidade hist�rica. Ele se diz cansado e desapontado com sua situa��o em BH e afirma querer recome�ar e tomar novos ares na antiga capital mineira, com a qual diz ter muita proximidade e se sentir em casa. 

“Eu sofri muito aqui em BH. Essa � a minha hist�ria”, diz, apontando para uma de suas pinturas que retrata escravos em uma senzala. “Eu vou para Ouro Preto e vou levar o Pitoco comigo.”

Pitoco � o antigo cachorro que acompanhava Gerson e que, segundo o artista, j� salvou sua vida de agress�es e tentativas de assassinato v�rias vezes. O c�ozinho, inclusive, � uma das raz�es pelas quais Gerson come�ou a pintar. Pitoco tinha o h�bito de mastigar bisnagas de tinta coloridas que encontrava nas ruas, e Gerson, para evitar que ele se intoxicasse com o material, passou a us�-las fazendo pinturas. Quando passou a morar em sua atual resid�ncia, teve que entregar seu fiel companheiro � pastoral, j� que o lugar n�o permite animais.

Orgulhoso da repercuss�o de suas pinturas, Gerson aponta o sentido da arte em sua vida. “Eu fico emocionado quando vejo as coisas que tirei do lixo se transformarem em arte. Cada vez mais, vou me aprofundar na minha arte. N�o h� sentido em parar. Quando a gente para, nossa mente fica vazia”, afirma.

* Estagi�rio sob a supervis�o da editora Silvana Arantes


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