'Se eu contar, voc� escuta?' d� voz a meninas v�timas de explora��o sexual
H� 23 anos, Renata Coimbra entrevistou crian�as v�timas de abusos que se tornaram usu�rias de drogas. Filme aborda a trajet�ria de sete delas, agora adultas
V�timas de abusos sexuais relutaram, mas decidiram revelar seu drama �s c�meras da diretora Renata Coimbra (foto: Henrique Mour�o/divulga��o)
"A ideia da for�a e do poder masculino ainda rege muito nossa sociedade, essa coisa de o homem achar que � dono do corpo das meninas, achar que aquilo � algo que ele pode comprar. Some-se a isso a misoginia e a cultura do estupro. Enquanto a gente n�o enfrentar esses estigmas sociais e n�o der condi��es dignas de vida para as fam�lias, isso vai continuar acontecendo"
Renata Coimbra, diretora e doutora em psicologia
Em 2014, organizando seus pertences para mudar de endere�o, Renata Coimbra encontrou a caixa onde estavam guardadas, desde o final da d�cada de 1990, fitas cassete com depoimentos que ela, na condi��o de supervisora de um grupo de assistentes sociais da Prefeitura de Presidente Prudente (SP), havia colhido de meninas usu�rias de drogas e v�timas de explora��o sexual, atendidas por um projeto social. Esse evento fortuito � o embri�o do document�rio “Se eu contar, voc� escuta?”, que entra em cartaz em Belo Horizonte nesta quinta-feira (19/5).
Primeiro trabalho audiovisual de Renata, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Presidente Prudente e doutora em psicologia, o filme mostra aquelas meninas j� adultas, vinte anos depois, relatando o abuso e a explora��o sexual que sofreram durante a inf�ncia e adolesc�ncia.
DOIS TEMPOS
No primeiro momento do longa, trechos de �udios das entrevistas realizadas em 1999 com oito meninas s�o apresentados ao espectador. No segundo momento do document�rio, sete mulheres – uma das oito garotas morreu em 2011, aos 27 anos – narram para a c�mera suas experi�ncias de forma direta e comovente.
Renata estava concluindo especializa��o em cinema document�rio pela Funda��o Get�lio Vargas quando encontrou as fitas.
“Estava muito envolvida com a quest�o do cinema e surgiu o desejo de saber onde essas meninas estavam, o que tinha acontecido com elas e como tinham feito suas jornadas, j� pensando num registro documental dessas hist�rias”, revela.
Depois de passar alguns meses circulando por centros de refer�ncia de assist�ncia social de Presidente Prudente e cidades vizinhas tentando levantar informa��es, Renata encontrou C�lia Freire, que integrava o grupo que ela coordenava quando fez as entrevistas com as meninas. Juntas, as duas conseguiram rastrear as fam�lias das garotas e chegar �s mulheres que elas se tornaram.
Algumas ainda moravam em Presidente Prudente, outra estava em Suzano, na Grande S�o Paulo, e as demais em cidades pr�ximas. “N�s as encontramos entre 2015 e 2016 e passamos a acompanh�-las”, conta a diretora. “Elas se lembravam de mim e especialmente da C�lia, profissional muito engajada que desenvolveu uma rela��o forte com aquelas meninas”, acrescenta.
Filme 'Se eu contar, voc� escuta?' estreia nesta quinta-feira (19/5), na sala 3 do UNA Cine Belas Artes, em BH (foto: Henrique Mour�o/divulga��o)
Com a confian�a m�tua estabelecida, Renata disse para as sete – S�lvia, Roberta, Edineia, Carla, Cristiane, Maria e Gesiele – que tinha em mente fazer um document�rio sobre a hist�ria delas. Perguntou se concordavam em dar depoimentos sobre os traumas enfrentados na inf�ncia e adolesc�ncia.
“Argumentei que (o filme) seria importante para ajudar outras meninas e adolescentes. Tendo esse exemplo, elas poderiam tamb�m revelar seus casos de abuso e explora��o. Seria importante para visibilizarem suas pr�prias hist�rias, porque na medida em que a pessoa consegue falar, ela inicia um processo de elabora��o e ressignifica��o, o que traz for�a e dignidade”, explica a cineasta.
Depois de certa resist�ncia por parte de algumas mulheres, que n�o revelaram nem para os pr�prios filhos o passado de dor e sofrimento, todas aceitaram gravar.
“Teve a� a constru��o de uma confian�a que come�a no passado, l� em 1999, e chega neste reencontro. No primeiro momento, foi complicado, mas o pr�prio fato de convid�-las para fazer o filme fez com que come�assem a se abrir”, aponta Renata.
DROGAS E TRAUMAS
Os relatos registrados em “Se eu contar, voc� escuta?” s�o muito parecidos. As mulheres que rememoram o passado traum�tico para a c�mera de Renata sofreram abuso sexual dos pr�prios pais, padrastos ou de pessoas pr�ximas, por vezes com a anu�ncia das m�es. Fugiram de casa e, nas ruas, ainda entre a inf�ncia e a adolesc�ncia, se viram no v�rtice de drogas e explora��o sexual.
At� gravar os depoimentos, Renata Coimbra n�o conhecia o panorama completo dos abusos dom�sticos que as mulheres sofreram na inf�ncia. “Em 1999, estava fazendo tese de doutorado cujo foco era a prostitui��o infantil, termo que n�o se usa mais, pois quando nos referimos ao universo da crian�a e do adolescente, � de explora��o sexual que se trata. Tinha clareza da hist�ria de abuso de uma delas, porque, na �poca, o caso chegou a ir para o conselho tutelar, a gente acompanhou a fam�lia e o pai abusador. Das outras, nem eu mesma sabia dos detalhes que elas contam no filme”, destaca.
Impedir que o abuso e a explora��o sexual se repitam emvolve diversas quest�es, observa a diretora. O abuso cometido por familiares ocorre em todas as classes sociais, ao passo que explora��o sexual � quest�o fortemente atravessada por fatores sociais, econ�micos, de g�nero e de ra�a.
“A explora��o sexual tem de ser pensada no contexto da exclus�o social e da mis�ria mesmo”, ressalta Renata.
De acordo com a cineasta e doutora em psicologia, a pol�tica de enfrentamento da situa��o demanda novas formas de manuten��o financeira das crian�as e de suas fam�lias, que geralmente vivem em condi��es de completo abandono.
“Tivemos, no atual governo, uma perda enorme de pol�ticas p�blicas voltadas para esse contingente”, diz, acrescentando que outras quest�es contribuem para o flagelo da explora��o sexual infantil, como, por exemplo, a estrutura patriarcal.
“A ideia da for�a e do poder masculino ainda rege muito nossa sociedade, essa coisa de o homem achar que � dono do corpo das meninas, que � algo que ele pode comprar. Some-se a isso a misoginia e a cultura do estupro. Enquanto a gente n�o enfrentar esses estigmas sociais e n�o der condi��es dignas de vida para as fam�lias, isso vai continuar acontecendo”, adverte.
''Argumentei que (o filme) seria importante para ajudar outras meninas e adolescentes. Tendo esse exemplo, elas poderiam tamb�m revelar seus casos de abuso e explora��o. Seria importante para visibilizarem suas pr�prias hist�rias, porque na medida em que a pessoa consegue falar, ela inicia um processo de elabora��o e ressignifica��o, o que traz for�a e dignidade''
Renata Coimbra, diretora e doutora em psicologia
PANDEMIA
A diretora e psic�loga destaca que o problema se agravou durante a pandemia. “A gente tem dados indicando que aumentaram demais tanto os casos de abusos dentro de casa quanto a explora��o sexual nas ruas, porque as condi��es de vida pioraram muito. As meninas entram nesse ciclo de explora��o por comida”, alerta.
Ao final da s�rie de depoimentos intercalados das sete mulheres, que falam olhando para a c�mera, diante de um fundo preto – e n�o cont�m as l�grimas em v�rios momentos –, o filme se volta para o cotidiano delas na atualidade, revelando onde moram, as respectivas fam�lias e rela��es pessoais e de trabalho. “Se eu contar, voc� escuta?” mostra que elas vivem na pobreza, com dignidade.
“Daquelas oito meninas que entrevistei em 1999, uma morreu em 2011, n�o conseguiu largar as drogas, seguiu na prostitui��o, enfim, n�o conseguiu romper esse ciclo. Seis constitu�ram fam�lia, tiveram filhos. Duas t�m trabalho est�vel, outras se viram fazendo bicos. Uma se envolveu com o tr�fico de drogas e foi para o sistema prisional, mas j� cumpriu a pena. Tr�s t�m casa pr�pria e outras duas est�o construindo.”, diz.
“Se a gente p�e em perspectiva o que essas mulheres viveram e como est�o hoje, fica evidente que tiveram muita for�a, lutaram muito para superar situa��es muito dram�ticas e estabelecer uma vida mais est�vel. A gente vive uma crise econ�mica muito severa, mas pensando em tudo o que elas passaram na inf�ncia e na adolesc�ncia, posso dizer que hoje elas est�o bem”, acredita Renata Coimbra.
O ator e diretor mineiro Adyr Assump��o produziu o document�rio de Renata Coimbra (foto: Jo�o Diniz/divulga��o)
Calend�rio especial de lan�amento
“Se eu contar, voc� escuta?” tem calend�rio de lan�amento um tanto at�pico. Na �ltima ter�a-feira (17/5), foi realizada sess�o de pr�-estreia em Jo�o Pessoa (PB). Ontem, o filme foi exibido pelo canal por assinatura Serra Geral TV, de Jana�ba (MG). Nesta quinta, ele entra em cartaz em Belo Horizonte, no Una Cine Belas Artes (no pr�ximo dia 23, �s 19h, haver� sess�o seguida de debate com a diretora), al�m de S�o Paulo e Bras�lia.
A escolha dessas cidades est� ligada ao processo de feitura do filme e suas conex�es, explica Renata Coimbra. S�o Paulo, por exemplo, � a capital do estado onde a hist�ria das meninas se passa.
J� a estreia em Bras�lia se deve ao fato de o document�rio estar inserido no contexto do 18 de maio – data em que foi institu�da, h� 22 anos, a Lei 9.970. Ela estabelece o Dia Nacional de Combate ao Abuso e � Explora��o Sexual de Crian�as e Adolescentes, motivo da exibi��o realizada no �ltimo dia 12, na C�mara dos Deputados, realizada pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos de Crian�as e Adolescentes.
A liga��o com Belo Horizonte talvez seja a mais estreita, pois a maior parte da equipe que trabalhou no longa � mineira. “Quando comecei a pensar na realiza��o do filme, precisava firmar parceria com produtores. Um amigo, o Pedro Carvalho, me apresentou ao Adyr Assump��o, que tem a T’AI Cria��o, que fica em Brumadinho”, revela Renata, referindo-se ao ator, diretor e produtor cultural mineiro. “Eles assumiram a produ��o e come�amos, ent�o, a levantar a quest�o dos recursos e tamb�m os profissionais com quem ir�amos trabalhar.”
“SE EU CONTAR, VOC� ESCUTA?”
(Brasil, 2022, 98min, de Renata Coimbra, com Carla Marques, Cristiane de Jesus, Edineia de Oliveira, Gesiele Gabarron, Maria de Oliveira, Roberta de Souza, Silvia do Prado) – Grava��es em �udio realizadas nos anos 1990 revelam a hist�ria de oito meninas v�timas de viol�ncia sexual, que viviam nas ruas. Mais de 20 anos depois, agora adultas, elas revelam a sua surpreendente saga pela sobreviv�ncia. Document�rio em cartaz a partir desta quinta-feira (19/5) no UNA Cine Belas Artes 3, �s 16h.
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