
"Quando voc� consegue entender os ciclos da vida, entende que tudo faz parte de um processo de aprendizado. A saudade voc� lida para sempre, mas o processo da dor vai diminuindo"
Beth Goulart, atriz
In�cio dos anos 1970. Em S�o Paulo, Nicette Bruno (1933-2020) se preparava para subir ao palco do Teatro de Arena para mais uma sess�o do espet�culo “Os efeitos do raio gama nas margaridas do campo”. Um pouco antes, o produtor da montagem, Lu�s Carlos Arutin (1933-1996), foi at� o camarim e avisou que a noite estava fraca – havia nove convidados e um �nico pagante. N�o seria melhor cancelar?
Nicette nem titubeou: “N�o, ele saiu de sua casa para nos ver. Ele pagou para nos ver, ent�o vamos fazer o melhor espet�culo da nossa vida porque ele merece.” O �nico pagante era o diretor de uma empresa, que acabou comprando 100 sess�es da montagem (que inclusive valeu um Pr�mio Moli�re de melhor atriz) para ser apresentada para seus funcion�rios. Nicette, na �poca, dividia a cena com sua filha do meio, a ent�o adolescente Beth Goulart.
Tal hist�ria integra o livro “Viver � uma arte – Transformando a dor em palavras”, que Beth, filha dos atores Nicette Bruno e Paulo Goulart (1933-2014), est� lan�ando pela editora mineira Letramento. Ainda que tenha um aspecto biogr�fico, trazendo passagens de sua trajet�ria art�stica, como da dos pais, � uma relato pessoal da atriz frente � morte da m�e, que sucumbiu � COVID em dezembro de 2020, aos 87 anos.
A ideia do livro � anterior � perda. Desde a morte de Goulart, m�e e filha, atrizes, melhores amigas e tamb�m vizinhas, vinham fazendo palestras sobre sua filosofia de vida (os Goulart, pais e tr�s filhos atores, s�o espiritualistas). “A supera��o da morte dele, a pe�a de teatro (‘Perdas e ganhos’, mon�logo com Nicette adaptado e dirigido por Beth a partir do livro hom�nimo de Lya Luft) nos aproximou muito. Assim como faz�amos nas palestras, que seria a voz principal e mam�e faria seus coment�rios maravilhosos.”

N�LIDA PI�ON E FERNANDONA
Com o projeto em fase inicial, Beth teve tr�s encontros com a m�e para realizar as grava��es, que posteriormente seriam transcritas. O projeto parou com a morte de Nicette, s� retomado seis meses mais tarde, j� com outro prop�sito. “� muito dif�cil voc� voltar, pois mergulha em um processo emocional muito profundo. Tive que esperar para voltar � vida normal”, continua.
A obra, o primeiro livro de Beth (seus textos anteriores s�o todos voltados para a dramaturgia), conta com duas madrinhas de peso. A escritora N�lida Pi�on e a atriz Fernanda Montenegro, ambas integrantes da Academia Brasileira de Letras, s�o respons�veis pelo pref�cio e pelo posf�cio, respectivamente.
Fernanda estava na plateia quando Nicette, adolescente, estreou no teatro ao lado de Dulcina de Morais. E as duas estiveram juntas quando a pr�pria Fernanda fez seu d�but nos palcos. “Por incr�vel que pare�a, � poss�vel criar fam�lias no teatro”, escreveu ela.
A narrativa tem in�cio a partir da morte de Paulo Goulart, ap�s uma luta de quatro anos contra um c�ncer. Beth descreve como ela e a fam�lia lidaram com este primeiro grande luto que ressoou em todo o pa�s, “uma dor coletiva”, ela descreve. Ao mesmo tempo, o livro acompanha, a partir das lembran�as registradas por Nicette, o in�cio da rela��o de um dos casais mais populares da TV e do teatro do Brasil.
Os dois se conheceram no in�cio da d�cada de 1950, quando ela dirigia o Teatro de Alum�nio. Nicette faria o principal papel feminino de “Senhorita minha m�e”, texto de Louis Verneuil. Para o papel do gal�, houve um teste com um jovem ator, que ela n�o conhecia. Paulo entrou para a montagem e n�o demorou para que Nicette ficasse sabendo que ele estava apaixonado por ela.

HERAN�A DE ALMA
Numa festa ap�s uma apresenta��o, ele pediu que ela recitasse um poema. Nicette o fez, mas Goulart n�o estava presente. Ela foi atr�s dele e perguntou o porqu�. “Eu pedi para declamar s� para mim, e n�o para essa gente toda”, foi o que ele respondeu a ela. Nunca mais se largaram.
Com pais atores, foi natural que os filhos seguissem os passos. “Mas acho que voca��o seja uma heran�a mais da alma do que do corpo. Ou ent�o todo filho de m�dico seria m�dico. Se voc� tem aptid�o e nasce em uma fam�lia com essa tradi��o, o chamado acaba sendo mais forte”, afirma Beth.
Nicette chamava da estreia de Beth nos palcos uma apari��o que ela fez aos 3 anos, “literalmente seguindo os passos do meu pai a partir da coxia”, ela conta. Goulart encenava “Escola de mulheres”, no Teatro Gua�ra, em Curitiba, quando a menininha, que estava na coxia, come�ou a segui-lo no palco. A plateia come�ou a rir e o ator, em cena, n�o percebeu que a filha pequena estava atr�s dele.
“Eu brincava de fazer teatro em cena e o Ant�nio Abujamra (1932-2015), vendo as brincadeiras, me chamou para estrear profissionalmente”, conta Beth. Este batismo ocorreu justamente na montagem “Os efeitos do raio gama...”, quando ela tinha 14 anos. Al�m de Nicette e Beth, a pe�a contava ainda com sua av� materna, Eleonor Bruno (1913-2004) no elenco. Posteriormente, sua irm� mais velha, B�rbara Bruno, entrou para o elenco.
Ao longo da obra, Beth vai descrevendo os momentos marcantes de sua carreira, como a montagem “Simplesmente eu, Clarice Lispector” (2009) e os personagens que fez na televis�o.
Com a morte de Goulart, m�e e filha se aproximaram ainda mais. “Com o tempo, inevitavelmente viramos m�es dos nossos pais. � um processo natural: fomos cuidados durante muito tempo, ent�o chega uma hora em que passamos a cuidar.” Al�m do trabalho, Beth inclu�a a m�e em tudo o que fazia.
REDES SOCIAIS
As tr�s semanas entre o resultado positivo para a COVID e a morte de Nicette foram acompanhadas pelos f�s pelas redes sociais. “As pessoas me procuravam muito para saber not�cias e chegou uma hora em que eu n�o conseguia falar com um ou outro. Resolvi ir para as redes, uma forma de multiplicar informa��es aos interessados.”
Beth manteve o canal aberto at� o fim. “Eu n�o podia esconder o que estava acontecendo e, por outro lado, n�o podia perder a esperan�a. Fui muito amparada (por meio das mensagens via rede social) e vi que n�o estava sozinha vivendo aquilo. Eram muitas pessoas na mesma situa��o. Tinha gente que entrava em contato falando que tinha acabado de perder a m�e e n�o sabia o que fazer. Eu mandava uma mensagem pessoal. Isso criou uma corrente de solidariedade, compaix�o e amor m�tuo.”
Ap�s o impacto da morte de Nicette – “uma dor aguda em que voc� n�o consegue fazer nada” – Beth foi, aos poucos, aprendendo a lidar com sua aus�ncia. “N�o � � toa que a Lya Luft escreveu, em ‘Perdas e ganhos’, que aprender a perder a pessoa amada �, afinal, aprender a ganhar-se, assumindo o bem que ela representa. Quando voc� consegue entender os ciclos da vida, entende que tudo faz parte de um processo de aprendizado. A saudade voc� lida para sempre, mas o processo da dor vai diminuindo”, finaliza.
Nicette ganha biografia de Cacau Hygino

Nesta semana, a Editora Letramento lan�a outro livro dedicado a Nicette. Assinada pelo escritor, dramaturgo e ator Cacau Hygino, a biografia “Nicette Bruno: M�e de todos” (300 p�ginas, R$ 79,90) traz depoimentos da pr�pria atriz, al�m de amigos e familiares, destacando momentos de sua carreira. Hygino � autor de livros sobre Nathalia Timberg, Zez� Motta e Irene Ravache.

“VIVER � UMA ARTE: TRANSFORMANDO A DOR EM PALAVRAS”
De Beth Goulart
Editora Letramento
138 p�ginas
Pre�o: R$ 59,90 (livro) e
R$ 34,90 (e-book)