
Vera � uma batalhadora. Militante de esquerda durante a ditadura militar (1964-1985), foi presa e torturada. Na maturidade, coordena uma ONG em uma favela carioca que cuida de crian�as soropositivas.
A vida pessoal, no entanto, � confusa. Ela se separou h� pouco do marido, quest�o at� mais bem resolvida do que a rela��o com a �nica filha, T�nia. Esta � casada h� muitos anos com Vanessa, que quer gestar o primeiro filho do casal. Vera n�o aceita – nem a nora, tampouco um beb� de insemina��o artificial.
Este � o ponto de partida de “Aos nossos filhos”, produ��o franco-brasileira dirigida pela atriz e cineasta portuguesa Maria de Medeiros. O filme estreia nesta quinta (4/8) no UNA Cine Belas Artes. Rodado no Rio, o drama traz nos pap�is principais Marieta Severo (Vera) e Laura Castro (T�nia). Esta, por seu lado, � tamb�m autora da pe�a hom�nima, j� editada em livro, e coautora, ao lado de Maria de Medeiros, do roteiro do longa.
O fato de essa mulher (a personagem Vera) ter sido uma lutadora contra a ditadura, o autoritarismo, n�o quer dizer que ela n�o seja presa a outras quest�es. � a minha gera��o, feminista, mas ainda com atavismos. Tem v�rios n�s que as gera��es (posteriores) v�o desamarrando. Voc� acha que passou um bast�o superbonito, mas n�o conseguiu dentro de si desatar n�s de gera��es anteriores
Marieta Severo, atriz
Dedicat�ria
“� um projeto que foi desenvolvido em v�rias formas de express�o”, comenta Maria de Medeiros, que, na pe�a encenada 10 anos atr�s, interpretou Vera. “Aos nossos filhos” teve in�cio em 2012 como um projeto pessoal de Laura, que se baseou em passagens da pr�pria vida. A montagem teatral, encenada entre 2013 e 2016, foi dirigida por Jo�o das Neves (1934-2018), a quem o longa � dedicado.Laura, que � casada com Cristina Flores, estava cuidando de tr�s filhos pequenos em casa quando escreveu o argumento. “Eu vinha trabalhando com o Jo�o desde 2006, e n�o me achava capaz de escrever uma pe�a. Quando falei com ele desta ideia, pedi para ele dirigir e escrever o texto. Jo�o me disse que dirigiria, mas s� se eu escrevesse”, conta.
A confec��o do texto foi muito r�pida e, desde o momento inicial, Laura pensou em Marieta Severo como Vera. “De algum jeito, ela se relaciona como a minha pr�pria m�e, por causa do espa�o como m�e e profissional que ocupa. Ela j� era minha m�e e nem sabia”, diz Laura. Mas Marieta, que chegou a participar da primeira leitura do texto, n�o p�de participar do projeto, pois iria estrear o espet�culo “Inc�ndios”.
Um encontro levou Laura a trabalhar com Maria de Medeiros. Na mesma �poca, a portuguesa lan�ava o document�rio “Repare bem”, sobre a militante Denise Crispim, que, gr�vida durante a ditadura, foi perseguida e presa. Cunhado de Laura, o cineasta Guilherme Hoffmann assistiu ao filme na Mostra de S�o Paulo. “J� pensou na Maria de Medeiros para o papel?”, perguntou a ela, assim que retornou ao Rio. “A portuguesa, de ‘Pulp fiction’, Tarantino? Claro que n�o”, respondeu Laura.
Ela assistiu ao document�rio “Repare bem” e logo mandou um e-mail para Maria. O projeto teatral foi realizado e, j� naquela �poca, a portuguesa pensou em adapt�-lo para o cinema. “Para mim, era tamb�m evidente que a personagem tinha que voltar para Marieta, pois foi escrita para ela”, comenta Maria. As filmagens foram realizadas entre os dois turnos das elei��es de 2018 – a inten��o era lan�ar o filme no ano seguinte; o que s� ocorreu agora por causa da pandemia.
Ainda na primeira leitura do texto teatral, Marieta comentou com Laura que havia gostado muito, que os di�logos eram �timos, mas que n�o havia um grande drama, que as personagens iriam se resolver. “Ela me fez pensar ali nos meus anos de arm�rio profundo, ent�o resolvi botar tudo no texto”, diz Laura, que escreveu uma segunda vers�o.
No filme, a despeito do posicionamento progressista, Vera n�o consegue avan�ar na rela��o com a filha. T�nia tamb�m tem seus pr�prios preconceitos. Foram estes paradoxos que interessaram a Marieta.
“Quando o projeto voltou para mim, fiquei feliz porque meu interesse maior na hist�ria � mostrar as contradi��es. O fato de essa mulher ter sido uma lutadora contra a ditadura, o autoritarismo, n�o quer dizer que ela n�o seja presa a outras quest�es”, comenta.
Estamos vivendo em um contexto que � contra este desatar de n�s. O terreno do preconceito n�o � racional, � muito profundo dentro do ser humano. Tocar em quest�es sob aspectos diferentes se torna fundamental nesta �poca retr�grada em que estamos vivendo
Marieta Severo, atriz
“� a minha gera��o, feminista, mas ainda com atavismos. Tem v�rios n�s que as gera��es (posteriores) v�o desamarrando. Voc� acha que passou um bast�o superbonito, mas n�o conseguiu dentro de si desatar n�s de gera��es anteriores”, afirma Marieta.
Para Maria de Medeiros, a dificuldade de Vera em se relacionar com a filha T�nia e a nora Vanessa tamb�m esbarra em outra quest�o: “Mais do que homof�bica, Vera � sogra. Ela n�o suporta que a filha tenha uma rela��o muito intensa com outra pessoa, outra mulher neste caso”, afirma.
“Uma das for�as da pe�a que tentei manter no filme foi que em ambos os lados h� argumentos muito v�lidos. De alguma forma, a filha � mais conservadora do que a m�e em v�rios aspectos. A complexidade das personagens aparece no di�logo. E acho que estamos precisando complexificar tudo. Parece que estamos voltando � Idade M�dia, no simplismo e no fanatismo dos conflitos. Apesar de tudo, somos seres civilizados, e tamb�m complexos.”
Para Marieta, a despeito do atraso do lan�amento, “Aos nossos filhos” chega aos cinemas em boa hora. “Estamos vivendo em um contexto que � contra este desatar de n�s. O terreno do preconceito n�o � racional, � muito profundo dentro do ser humano. Tocar em quest�es sob aspectos diferentes se torna fundamental nesta �poca retr�grada em que estamos vivendo”.
AOS NOSSOS FILHOS”
(Brasil/Fran�a, 2019, 107min.) De Maria de Medeiros, com Laura Castro, Marieta Severo e Cl�udio Lins) – Estreia nesta quinta-feira (4/8) no UNA Cine Belas Artes (16h10 e 18h10).