
Um mergulho na pol�tica, na religi�o, na arte, na filosofia e em outros temas caros a um dos mais expressivos diretores italianos de todos os tempos – tudo devidamente embalado em lirismo e contund�ncia – � o que prop�e a mostra “O cinema segundo Pasolini”, em cartaz a partir desta sexta-feira (5/8) at� a pr�xima ter�a-feira (9/8), no Cine Humberto Mauro.
A mostra – uma realiza��o conjunta do Consulado da It�lia em Belo Horizonte, do Instituto Italiano de Cultura do Rio de Janeiro, da Funda��o Cl�vis Salgado e da Casa Fiat de Cultura – celebra o centen�rio do c�lebre cineasta com a exibi��o de sete obras restauradas de sua filmografia. A programa��o inclui, ainda, a estreia nacional do document�rio “O jovem cors�rio”, de Em�lio Marrese, que aborda a trajet�ria art�stica e pessoal de Pasolini.
Integram a mostra, que � presencial e gratuita, os longas “Passarinhos e passar�es” (1969), “Accattone - Desajuste social” (1961), “Mamma Roma” (1962), “Com�cios de amor” (1964), “O Evangelho segundo S�o Mateus” (1964), “Notas para uma Or�stia africana” (1970) e “�dipo Rei” (1967).
As tradicionais sess�es comentadas do programa Hist�ria Permanente do Cinema, do Cine Humberto Mauro, tamb�m englobam a programa��o e contam com a participa��o do cr�tico de cinema Gabriel Ara�jo e do diretor da Companhia de Teatro, Luiz Paix�o.
Para al�m da tela, a mostra se desdobra na palestra on-line “Pier Paolo Pasolini – Vida e obra”, ministrada pelo professor e especialista em cinema Luiz Nazario, com media��o do curador do Cine Humberto Mauro, Bruno Hil�rio. Ele � quem chama a aten��o para o fato de que esse recorte de sete t�tulos – em uma filmografia que soma mais de 20 – procura mostrar uma faceta menos �bvia do cineasta.
Hil�rio explica que a mostra � uma iniciativa do Instituto Italiano de Cultura e que j� cumpriu temporadas em pa�ses como Portugal e It�lia e tamb�m em outros estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, onde esteve em cartaz no CCBB. “Tem um apelo grande, porque resgata os primeiros filmes dele e traz junto p�rolas que representam uma oportunidade de conhecer sua obra para al�m dos t�tulos mais consagrados. ‘Notas para uma Or�stia africana’, por exemplo, � uma raridade, um filme pouqu�ssimo visto”, aponta.
Interse��o narrativa
Ele destaca que os t�tulos da mostra apresentam um painel diverso da produ��o de Pasolini, mas, ao mesmo tempo, guardam muitos elementos em comum entre si. O realizador italiano entendia o cinema como um tecido de linguagens, uma interse��o narrativa entre literatura, religi�o, filosofia e arte, segundo o curador.

“A gente mostra, com essa sele��o de filmes, como ele se joga sobre a realidade social, sobretudo as contradi��es de sua �poca, porque ele pr�prio traz consigo muitas contradi��es: � de orienta��o pol�tica marxista, mas muito ligado � religi�o; � uma pessoa de origem camponesa, de cria��o ortodoxa, e � homossexual declarado”, diz, destacando o desejo do cineasta de se enxergar no povo.
“Quando ele se joga com essa c�mera que � um prolongamento de seu corpo, de sua viv�ncia, e vai ao encontro de outros corpos, existe a� um desejo de interven��o, de interagir nas diferentes camadas das rela��es sociais. Essas obras s�o fruto de um di�logo das pr�prias experi�ncias com as experi�ncias do povo. Pasolini est� sempre buscando alcan�ar o coletivo”, ressalta.
Rela��es de poder
Esse movimento realizado pelo cineasta � particularmente not�vel em “Com�cios de amor”, em que, com um microfone na m�o e uma c�mera, ele percorre as ruas para perguntar aos italianos o que pensam em rela��o ao casamento, fidelidade e a normatividade. “Ele tem um interesse particular pela maneira como o povo entende o sexo, as intera��es afetivas, e enquadra esse entendimento em rela��es anacr�nicas, em rela��es de poder”, pontua o curador.
Ele aponta que o filme � um dos destaques da mostra, juntamente com “O Evangelho segundo S�o Mateus” – uma obra que foi muito contestada tanto pela milit�ncia marxista quanto, num primeiro momento, pela Igreja Cat�lica, por tratar-se de uma abordagem da vida de Jesus Cristo feita por um cineasta que j� vinha precedido pela fama de transgressor e que j� havia sido processado por blasf�mia.
“Depois de lan�ado, a Igreja olhou e declarou que era uma das melhores constru��es de Cristo j� feitas, porque trazia um personagem revolucion�rio e humanizado, ligado ao povo, �s causas populares, � fraternidade. Hoje � um filme que faz parte do acervo do Vaticano”, aponta Hil�rio.
Presen�a do sagrado
Para Luiz Nazario – professor titular de cinema da Escola de Belas Artes da UFMG e autor de diversos livros, entre eles “Todos os corpos de Pasolini” (2007) –, a presen�a do sagrado � justamente o tra�o mais marcante na obra de Pasolini. “Ele, como intelectual marxista, tinha um pensamento que diferia de toda a esquerda, por causa dessa atra��o pelo divino. O sagrado est� presente em toda a obra dele, mas sob uma �tica muito particular. Voc� encontra o Pasolini revolucion�rio dentro do Pasolini m�stico”, destaca.
Sobre a palestra que vai ministrar, ele adianta que a ideia � passar uma vis�o mais global de Pasolini, abordando sua vida e sua obra. “� uma inicia��o a Pasolini, para o p�blico em geral, um panorama de quem foi esse cineasta. A princ�pio, eu ia falar com um pouco mais de �nfase sobre o Pasolini roteirista, mas acharam melhor eu oferecer uma mirada mais abrangente, que possa interessar aos n�o iniciados”, diz.
Ele aponta que um aspecto importante � que, a despeito de ter sido premiado nos festivais de Veneza e Berlim e ser admirado por alguns cr�ticos e intelectuais, o diretor passou toda sua vida profissional sendo visto como um p�ria pela sociedade em geral. A raz�o desse tratamento reside justamente no que Nazario considera o maior legado de Pasolini.
Semiologia da realidade
“Ele introduziu a homossexualidade popular na literatura e no cinema italianos. Num pa�s cat�lico-fascista, ele ousou exprimir sua vis�o do mundo inspirada pelo desejo f�sico dos jovens do campo e da periferia. Foi processado 33 vezes, perseguido e assassinado por criar uma obra subversiva e homoer�tica. Pensando a linguagem do cinema, criou uma fascinante teoria da vida, uma semiologia da realidade fundamental para a compreens�o do mundo contempor�neo”, destaca.
Nazario ressalta que o cineasta era acintosamente odiado e hostilizado nas ruas, ao ponto de adotar os �culos escuros em tempo integral, para n�o ter que encarar as pessoas. Os jornais e publica��es s� tratavam dele em tom de chacota, n�o s� na It�lia, mas em todo o mundo, segundo o professor e pesquisador.
“No Brasil tamb�m era assim. Eu descobri um ‘Pasquim’ que foi para as bancas um dia depois de ele ser assassinado fazendo chacota, chamando-o de ped�filo, tratando Pasolini como se fosse um criminoso que felizmente tinha morrido. Esse �dio s� aumentava ao longo da carreira dele, principalmente no final, quando foi ficando mais herm�tico, mais radical e mais cr�tico � sociedade”, aponta.
Assassinado culturalmente
Para Nazario, Pasolini foi assassinado culturalmente antes de ser assassinado fisicamente. “Como disse o cineasta Werner Schroeter, se Pasolini � hoje visto como um santo, quando vivo era visto como um porco.” Ele considera que a repara��o da figura e da obra de Pasolini come�ou a se dar no in�cio dos anos 1980, alguns anos depois de seu assassinato, que permanece envolto em mist�rio.
“Muita coisa foi sendo percebida por estudiosos, cr�ticos e pelo p�blico; coisas que ele havia previsto, como a viol�ncia de massa, a transforma��o das pessoas, a forma como estavam se tornando fascistas, cru�is, desumanas, sem perceber. Ele passou a ser entendido, ent�o, como um profeta, um vision�rio, capaz de perceber antes aquilo que j� estava acontecendo”, explica.
Ele observa que para o cineasta o universo do consumo produzia uma revolu��o antropol�gica, uma homologa��o que, a seu ver, equivalia a um genoc�dio. “Pasolini distinguiu esse novo fascismo do fascismo hist�rico. O cl�ricofascismo correspondia � alian�a entre a Igreja Cat�lica e o Estado Capitalista. J� o consumismo era produzido pela alian�a entre a Empresa Totalit�ria e o Estado Capitalista – um fascismo ainda mais profundo, capaz de produzir a muta��o de um povo inteiro”, diz.
Sess�es comentadas
As sess�es comentadas do programa Hist�ria Permanente do Cinema contam com a obra “Accattone - Desajuste social”, hoje, �s 19h, com coment�rios do cr�tico de cinema Gabriel Ara�jo, e com “�dipo Rei”, na pr�xima ter�a-feira, tamb�m �s 19h, com a participa��o do diretor da Companhia de Teatro, Luiz Paix�o.
Para Bruno Hil�rio, essa segunda sess�o ressalta outro ponto marcante da obra de Pasolini, que � o di�logo com as trag�dias gregas � luz de seu tempo. “Pasolini fazia essa transposi��o da trag�dia grega para o tempo presente. Outro filme que apresenta isso de maneira muito clara, e que acaba sendo uma chave para entender ‘�dipo Rei’, � o ‘Notas para uma Or�stia africana’. S�o obras que refletem o interesse dele pelo mito, passando por sua rela��o com o teatro, que � muito forte”, aponta.
Luiz Paix�o, que j� levou “�dipo Rei” aos palcos, assente a pertin�ncia dessa leitura contempor�nea da trag�dia grega que Pasolini fez. “Ele se utiliza de maneira muito bacana dessa aproxima��o da obra cl�ssica com os dias atuais, no pr�logo e no ep�logo de ‘�dipo Rei’. Laius e Jocasta est�o no presente de Pasolini; quando �dipo entra na hist�ria, vai para outro plano, outro espa�o-tempo; e ao final, com o personagem j� cego, voltamos para o presente dele, estabelecendo uma rela��o de aproxima��o com a realidade objetiva”, aponta.
“O CINEMA SEGUNDO PASOLINI”
Mostra em cartaz a partir desta sexta-feira (5/8) at� ter�a-feira (9/8), no Cine Humberto Mauro do Pal�cio das Artes
(Av. Afonso Pena, 1.537, Centro, 31.3236-7400). Entrada gratuita. Programa��o completa no site da FCS.
“PIER PAOLO PASOLINI – VIDA E OBRA”
Palestra com o professor de cinema Luiz Nazario e media��o de Bruno Hil�rio, na pr�xima quarta-feira (10/8), no YouTube da Casa Fiat de Cultura, por meio de inscri��o pela Sympla. Mais informa��es: (31) 3289-8900