Sem romantizar a dor, a atriz americana Viola Davis revela traumas pessoais e o dif�cil caminho por tr�s de sua trajet�ria de sucesso (foto: Mauro Pimentel/AFP
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Talvez Viola Davis encarne o ep�tome da resili�ncia da mulher negra. A atriz americana � uma dessas pessoas que reconhecemos como grande guerreira de fibra. Inspiradora, combativa nos discursos de aceita��o dos grandes pr�mios, perfeita nas suas atua��es, lind�ssima, sempre segura e sagaz, venceu tudo e todos.
Ela nasceu abaixo da linha da pobreza em uma plantation (sistema agr�cola de monocultura remanescente nas antigas regi�es escravocratas dos Estados Unidos), no Sul do pa�s, regi�o que lutou pela manuten��o da escravid�o na Guerra da Secess�o e foi palco dos ataques racistas mais ferozes, tanto no passado segregacionista quanto no presente integrado.
Banho e comida
Sofreu com a falta de roupas, comida e �gua quente para o banho antes da escola durante o inverno. E, mesmo assim, chegou ao �den prometido a todos que n�o se parecem com ela.
Era de se esperar que sua autobiografia, “Em busca de mim” (BestSeller), fosse uma narrativa de supera��o. Mas a supera��o � linear. E o que essas p�ginas oferecem s�o hist�rias multifacetadas, a serem modeladas pela pr�pria leitura: quem procurar uma Viola que ganhou o mundo, mas perdeu a ess�ncia e precisou enfrentar o passado para dar sentido ao futuro, encontrar�.
Mas a leitura mais interessante talvez esteja nas fissuras desse caminho, por onde se entrev� uma hist�ria que, no fundo, n�o � individual; diz respeito a todas e todos n�s, porque suscita o questionamento da desigualdade.
O que sobressai nesse olhar n�o � m�rito, mas a sensa��o asfixiante de ver t�o �bvio talento submetido a tamanha opress�o, humilha��o, subjuga��o. N�o h� como n�o pensar em quantas Violas devem ter ficado pelo caminho, enquanto gente menos competente – mas da cor “certa” – chega aonde ela chegou sem nem sequer transpirar.
Viola exp�e pouco a pouco as veias ainda pulsantes desse racismo sist�mico naquela que � conhecida como a “maior democracia do mundo”. E � duro de ler. Desfilam pelas p�ginas a constru��o sistem�tica do auto-�dio, a mis�ria no cora��o do capitalismo, viol�ncia dom�stica, o dilema do perd�o ao pai agressivo, o abuso sexual em troca de dinheiro, a dif�cil busca por amor, as inseguran�as na constru��o da carreira, a reden��o pela terapia, pela f�... Em suma, as diversas camadas de desumaniza��o que constituem e ao mesmo tempo assombram a hoje aclamada Viola Davis.
O pre�o da dor
N�o h� romantiza��o da dor. A dor � o pre�o exorbitante que ela teve de pagar para chegar o mais longe que uma mulher com sua hist�ria e pele j� havia chegado no teatro e no cinema. Isso tamb�m fez dela uma pessoa esgotada, incapaz de saborear o pr�prio sucesso.
Enquanto o sentimento de inadequa��o ganhava for�a nos bastidores, o que o p�blico via era mais uma camada de viol�ncia, disfar�ada de congratula��o; um requinte extra de crueldade na proclama��o (manuten��o) do status quo: “Somos inclusivos, sim, veja nossa Viola! Basta ter seu talento e coragem que voc� vai atravessar tudo isso e encontrar seu pote de ouro”.
Nas linhas ou entrelinhas, “Em busca de mim” � um manifesto profundo e bem-escrito pelo resgate da humanidade da mulher negra adulta que, ao mesmo tempo, redime a garotinha de 8 anos, esgueirando-se pelo port�o dos fundos da escola para escapar da agress�o cotidiana dos colegas de classe.
Nessa busca retroativa, do topo para tr�s, Viola Davis acaba fazendo uma declara��o de amor �s nossas mais humildes origens, �s comunidades, fam�lias e lutas hist�ricas por direitos – ainda pouco efetivos e muito vol�teis.
� um texto capaz de indagar com honestidade as possibilidades de ascender num mundo de segrega��o (aberta ou velada), sem que se deixe a alma pelo caminho. E o que conclui essa protagonista cheia de rachaduras, profundas como as da casa da sua inf�ncia, � que o caminho at� o p�dio foi dolorido, angustiante e solit�rio. (Vanessa Oliveira - Folhapress)