
"N�o abri m�o de incorporar a morte como sujeito. Ela estava n�o somente em suspens�o ou imin�ncia, mas ali nos objetos daquela cultura, na rotina, nas narrativas, na nutri��o, nos afetos. Todos os korubos t�m trajet�rias sangrentas incorporadas intimamente ao eu de cada um. Em geral, para comer, t�nhamos de matar o que se mexesse"
Bruno Jorge, cineasta
Ainda que, previamente, estude particularidades das etnias antes de partir para o trabalho de campo com ind�genas, o diretor Bruno Jorge se define, prioritariamente, como cineasta que pratica antropologia visual, mas n�o um especialista em etnografia.
No mais recente trabalho dele, “A inven��o do outro”, selecionado para o Festival de Bras�lia do Cinema Brasileiro, que ser� encerrado amanh�, h� o desenho de uma jornada aventuresca, perigosa e incerta que aponta para um encontro entre mais de 60 pessoas, no meio da floresta amaz�nica.
“Xuxu (korubo contactado em 2015), esp�cie de protagonista, teve parte de sua fam�lia assassinada em conflitos com os matis, incluindo duas esposas. Em 2015, ele se separou de seu grupo e foi capturado junto de outros parentes pelos matis no Rio Branco. A maior parte de seu grupo de origem permaneceu isolada na floresta, liderada pelo seu irm�o mais velho Makwex. A expedi��o da Funai teve o objetivo de estabelecer contato com esse grupo, formado por cerca de 30 pessoas”, adianta o cineasta.
Integrado ao drama dos �ndios, uma personalidade marcante desponta na tela: o indigenista Bruno Pereira, s�mbolo da preserva��o do meio ambiente, assassinado ao lado do jornalista Dom Phillips, em junho deste ano.
Durante a �ltima viagem de Bruno Pereira no Vale do Javari, o cineasta manteve contato com o xar�. “Ele me mandou fotos, v�deos, �udios. Depois de fazer a reuni�o com os marubos, enviou, por fim, mensagem dizendo que estava tudo certo para nosso pr�ximo filme e que far�amos, em setembro, uma viagem de mais de 40 dias juntos. Disse tamb�m que t�o logo chegasse a Atalaia, me ligaria”, relembra. O brutal assassinato interrompeu esses planos.
“A inven��o do outro”, al�m do registro de reencontros familiares, sedimenta um alicerce na perseveran�a de causas pessoais.

"Bruno (Pereira) era obstinado, sagaz, teimoso, tinha boas hist�rias e gargalhadas, al�m da devo��o ao ind�gena, daquelas que n�o falsificam a realidade. Dizia para ele que �ramos meio franco-atiradores"
Bruno Jorge, cineasta
“Conheci Bruno Pereira no fim de 2018, quando ele era coordenador do Departamento de �ndios Isolados e de Recente Contato da Funai. Ele me convidou para acompanh�-lo na expedi��o. N�o sei se � muito claro para as pessoas o que significa para um documentarista de inclina��o etnogr�fica filmar a expedi��o de primeiro contato com ind�genas na Amaz�nia. N�o conseguiria imaginar cen�rio mais propulsor de sentido do que isso pra mim. Entendi logo, no in�cio, o tamanho que tamb�m tinha tudo isso para o Bruno”, sintetiza o diretor. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o novo filme, a rela��o com Bruno Pereira e o futuro do cinema.
Qual foi a din�mica de filmagens de “A inven��o do outro”?
Comecei a filmar desde que cheguei em Tabatinga (Amazonas), na sede da Funai. Foram dois, tr�s dias de prepara��o, at� partirmos de barco. Por quest�es de produ��o da expedi��o, passamos por Atalaia e pela base da Funai no Rio Itu�, e depois fomos para mais dentro da reserva, onde montamos o primeiro acampamento. Ali foi levantada estrutura maior, com heliponto e base da Sa�de. Deixamos uma parte da equipe e adentramos mais no mato em duas voadeiras. Montamos o segundo acampamento, pequeno, de onde os seis korubos que estavam com a gente partiriam para a tentativa de encontro com os isolados, enquanto ficar�amos aguardando. Depois disso, colocamos as mochilas nas costas, dividimos a equipe em duas e partimos para longas caminhadas na floresta na tentativa de ach�-los. Da chegada em Tabatinga at� minha volta, foram 32 dias de expedi��o. Com mais de 60 horas de material filmado e imagens desta experi�ncia profundamente complexa e ambivalente, ainda precisei traduzir as v�rias horas de filmagem do grupo de isolados. Depois de tr�s anos e meio de trabalho, chegou a p�s-produ��o e entendi que o melhor caminho era o de sempre, acumular praticamente todas as fun��es e finalizar o filme com meus parceiros.
H� momentos em que os �ndios encenam teatralizam algo? Eduardo Coutinho tratava muito da atitude frente � c�mera. Como os �ndios se comportam?
Os korubos que ali est�o buscando seus familiares s�o de recente contato, alguns deles contactados em 2014 e 2015. A familiaridade com o aparato de registro n�o � a mesma que a nossa. As a��es tampouco s�o conduzidas por essa estrutura narc�sica tutelada pela imagem reprodut�vel, como acontece com os n�o ind�genas. Isso n�o quer dizer necessariamente que atitudes n�o possam mudar com a presen�a da c�mera em diferentes situa��es, mas definitivamente n�o da mesma forma.

Qual � a emo��o de ver em cena e de ter convivido com Bruno Pereira?
Aos poucos, fomos descobrindo que n�o t�nhamos s� os mesmos nome e idade, mas tamb�m �ramos nascidos na mesma cidade e passamos a inf�ncia em bairros e escolas vizinhas. Bruno era obstinado, sagaz, teimoso, tinha boas hist�rias e gargalhadas, al�m da devo��o ao ind�gena, daquelas que n�o falsificam a realidade. Dizia para ele que �ramos meio franco-atiradores, eu estava investindo em nossa amizade e na continuidade do projeto de fazermos toda uma iconografia dos isolados durante os pr�ximos anos. Quando viajou com o Dom, coincidentemente amigo meu de mais de 15 anos, uma das coisas que Bruno faria era articular com os marubos do Alto Curu�� para que fiz�ssemos o segundo filme juntos, desta vez sobre miss�o de prote��o e seguran�a na aldeia. Bruno j� tinha assistido a um corte do “A inven��o do outro”, que estava em finaliza��o.
A expedi��o, por anos, gerou riscos. Voc� se sentiu em perigo?
Est�vamos todos em perigo o tempo todo, ningu�m que ali estivesse n�o sabia disso. Na floresta, a morte �, talvez, algo mais �ntimo, dela se fala e frequenta de diversas formas. Seis colaboradores da Funai j� haviam sido mortos em tentativas de contato anteriores com os korubos, o �ltimo por uma bordunada por tr�s, enquanto filmava. Havia as outras amea�as da selva, como invasores, animais e acidentes. O medo � uma premissa de sobreviv�ncia, n�o h� outra forma de permanecer por l� muito tempo sem fazer uso dela. Em compensa��o, a chave mental � n�o deixar esse medo te paralisar. O jogo � este.
Deve ter dado desespero mexer na edi��o e cortar o filme. Do que voc� n�o abriu m�o?
N�o abri m�o de incorporar esta morte como sujeito. Ela estava n�o somente em suspens�o ou imin�ncia, mas ali nos objetos daquela cultura, na rotina, nas narrativas, na nutri��o, nos afetos. Todos os korubos t�m trajet�rias sangrentas incorporadas intimamente ao eu de cada um. Em geral, para comer, t�nhamos de matar o que se mexesse. Muito macaco, jacar� e at� pregui�a. Em alguns momentos, todo mundo tinha de carregar o rango. Cheguei a passar horas andando com um macaco barrigudo morto amarrado na cabe�a enquanto filmava. Certa vez, um ainda estava vivo e quase me mordeu nas costas. Normalmente, essa realidade n�o � exatamente digna de “empatia” para muita gente. Dar conta dela requer um deslocamento brutal desse eu. E nem todo mundo t� disposto a assistir a isso.

H� uma escola de cinema que mais tenha te influenciado?
Pergunta dif�cil, de escava��o. Eduardo Coutinho foi uma refer�ncia importante, me lembro tamb�m de filmes como “Aboio”, de Mar�lia Rocha, e “Terra deu, terra come”, de Rodrigo Siqueira. Mas o que poderia dizer essencialmente � que, desde o in�cio, me identifiquei com cineastas que faziam filmes praticamente sozinhos, com todo o custo da pr�tica da liberdade. No Brasil, citaria o Cao Guimar�es e, internacionalmente, o belga Boris Lehman. Al�m dos primeiros filmes que me v�m � cabe�a, como “Tarnation” (de Jonathan Caouette) e “Le filmeur” (de Alain Cavalier).
Como voc� percebe o lugar do cinema e da arte?
H� algumas d�cadas, a arte vem tentando justificar sua exist�ncia e necessidade atrav�s de aplica��es pretensiosamente humanistas e se consolidando como mais uma ferramenta num mundo de ferramentas. Ela “nos torna melhores”, educa, a arte-terapia, a arte-utens�lio. J� n�o h� chance de vivenciar a experi�ncia de um mundo da liberdade para al�m da necessidade. O importante se tornou o que ela faz, e n�o o que desfaz. Para Agustina Bessa-Lu�s, a arte deveria ser “algo mais. � o pr�prio alento humano para l� da morte de todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solu��o.”
"Jamais podemos negligenciar no resultado dos filmes de hoje a for�a do sistema narc�sico de recompensas proveniente do pertencimento ao grupo e amplificado pelas redes sociais"
Bruno Jorge, cineasta
Como o cinema se integra com a pol�tica?
Existe, de fato, uma pol�tica na poesia do cinema que n�o se confunde com essa pol�tica ordin�ria, � muito mais rarefeita, profunda e sobretudo cr�tica da pr�pria pol�tica, enquanto forma limitada de ver e elaborar a vida. � parte os hiatos, o cinema brasileiro se consolidou nas �ltimas d�cadas como arte estatal, e o que chamamos de cinema independente � intrinsecamente dependente de for�as e burocracias dos governos. O cinema instrumento se torna ponto de partida, e os filmes s�o concebidos e formalizados a partir da estrutura moral desses Estados, acarretando em consequ�ncias pol�ticas e est�ticas em comum entre as obras. Um dos fatos evidentes dessa uniformidade � a enorme hegemonia do “cinema de identidade e oposi��o”, reproduzindo na arte os limites de compreens�o da vida pol�tica. Essa identidade � o maior recurso ao “uno”. Os pa�ses ocidentais, por raz�es hist�ricas, sempre deram privil�gio � necessidade de buscar essa unidade: de um lado o “uno” e do outro o que n�o pertence a esse “uno”. J� a Am�rica Latina tem uma trajet�ria radicalmente distinta, da mais profunda miscigena��o. E � justamente por essa mistura incessante e m�ltipla de uma variedade em movimento que nunca poderemos ser esse “um”.
O que nos define, ent�o? Onde n�s estamos?
Somos o “entre”. E quando enxergamos “unos” monol�ticos, petrificados em suas identidades e, ainda, relacionados pela via �nica da oposi��o, acabamos por importar diagn�stico e formas de como devemos refletir os nossos pr�prios objetos da cultura. Isso n�o � pouca coisa. O ciclo se fecha quando justificamos que o cinema brasileiro “vai bem” ao citar a mesma aceita��o internacional. Por fim, jamais podemos negligenciar no resultado dos filmes de hoje (e em nada no mundo atual) a for�a do sistema narc�sico de recompensas proveniente do pertencimento ao grupo e amplificado pelas redes sociais. S�o poucas as obras que conseguem sobreviver a essas inje��es de dopamina. Sobra como alento o fato de que, com uma prov�vel e renovada ajuda do Estado para os pr�ximos anos, h� boas chances de aumentar a fatia do audiovisual brasileiro no mercado global da �tica.
FESTIVAL DE BRAS�LIA DO CINEMA BRASILEIRO
Hoje, �s 20h30, exibi��o do longa “A inven��o do outro” (SP/AM), de Bruno Jorge, e dos curtas “Um tempo para mim” (RS), de Paola Mallmann, e “Lugar de Ladson” (SP), de Rog�rio Borges. O festival ser� encerrado neste domingo (20/11).