
Parati – A francesa Annie Ernaux, que venceu o Pr�mio Nobel de Literatura no m�s passado, e o jovem escritor carioca Geovani Martins movimentaram a manh� deste domingo (27/11), �ltimo dia da Festa Liter�ria Internacional de Literatura de Paraty (Flip).
S�o dois autores celebrados por obras muito diferentes e distantes em geografia e gera��o, mas ambos revelaram pontos de contato insuspeitos e admira��o m�tua, transformando a mesa de ontem, no evento Casa Folha, no testemunho de uma rica troca de experi�ncias.
“� necess�rio incluir o pessoal dentro de um contexto hist�rico, porque fatos pol�ticos t�m incid�ncia no destino de cada um de n�s”, disse Ernaux. “Oito dias depois que me vi gr�vida e sem vontade de ter o filho, Kennedy foi assassinado. Aquilo para mim n�o tinha a menor import�ncia, mas precisei mencionar para situar o que estava contando.”

Desejo, aborto e liberdade
No s�bado (26/11), Annie Ernaux j� havia comovido o p�blico ao participar da mesa mais aguardada da Flip 2022. Houve l�grimas e muitos aplausos quando ela falou sobre a maneira como expressa o desejo em “O acontecimento”, que relata o aborto ilegal a que se submeteu quando era universit�ria, e “O jovem”, sobre a paix�o por um homem 30 anos mais novo.
“N�o � justo ligar o aborto a uma quest�o de desejo. Eu s� queria ter uma vida livre”, defendeu a escritora.
Ontem de manh�, Geovani Martins afirmou que quis registrar um per�odo espec�fico vivido pelo Rio de Janeiro a partir de hist�rias que n�o foram vistas, reveladas por ele sob a “perspectiva intimista” dos jovens negros que tiveram a vida afetada pela chegada ostensiva da pol�cia � favela.
Outro ponto de contato do brasileiro e a francesa foram as respectivas m�es. “� doido, porque vivemos num lugar com estrutura patriarcal, mas com rela��es matriarcais na nossa casa”, disse Geovani Martins. “Escrevo livros por causa da minha av�, uma grande contadora de hist�rias, e da minha m�e, que me levava na Bienal do Livro. Falar sobre m�es pretas � falar sobre a cria��o do pa�s.”
'Descrevi em detalhes o que houve para que se soubesse como �. No hospital, a gente � desprezada, tratada como cadela. A proibi��o � algo imposto por um poder masculino e religioso, que fere a dignidade das mulheres. Como � que podemos aceitar isso?'
Annie Ernaux, escritora, a respeito do aborto
A pot�ncia do matriarcado
Annie Ernaux afirmou que, ao escutar Martins, ficou pensando que a m�e dele � “mulher potente” num mundo que submete as mulheres aos homens. E revelou: “Minha m�e era a pessoa forte do casal. Ela sempre amou ler, encorajava que eu lesse o tempo todo. Quando falei a ela, com 20 anos, que queria ser escritora, ela disse: 'Se eu soubesse, na �poca, tamb�m quereria fazer isso'.”
A francesa voltou a tocar num dos pontos mais importantes de sua obra: a descri��o crua do aborto clandestino a que se submeteu, no livro “O acontecimento”.
“Descrevi em detalhes o que houve para que se soubesse como �. No hospital, a gente � desprezada, tratada como cadela. A proibi��o � algo imposto por um poder masculino e religioso, que fere a dignidade das mulheres. Como � que podemos aceitar isso?”.
Os dois escritores discutiram tamb�m a educa��o como meio de mobilidade social.
“Estudar, para uma popula��o que foi escravizada e nunca teve repara��o hist�rica, era a �nica sa�da para ter perspectiva de futuro”, afirmou Martins.
“Minha m�e tinha esta forte convic��o, dizendo que eu precisava estudar para romper com tudo isso. Mas, no fim, o diploma tamb�m n�o resolve. O que resolve � o contato, o que chamo de privil�gio da mediocridade branca.”
Ernaux, que foi professora de escola p�blica, comparou o sistema educacional franc�s a um funil invertido – poucos chegam at� o fim, sendo progressivamente eliminados.
Durante toda a mesa, a vencedora do Nobel demonstrava vontade de escutar e responder diretamente �s reflex�es de seu jovem interlocutor, cuja obra j� declarou admirar. Ao final, Ernaux disse que o livro de contos “O sol na cabe�a”, que fez Martins despontar, “foi uma revela��o” para ela.
“Tive a impress�o de viver realmente com aquela popula��o t�o forte e viva da favela. Senti uma fraternidade mesmo n�o sendo brasileira”, revelou a escritora ao p�blico.
Em seguida, ela pegou seu exemplar e leu o trecho que havia sublinhado porque a havia feito pensar. Depois, o pr�prio Geovani Martins leu a p�gina na edi��o brasileira.
Cota de brancos
O jovem autor carioca afirmou que “Os anos”, livro em que Ernaux escreve sobre sua vida com maior amplid�o cronol�gica, foi leitura importante para ele. “Um dos poucos livros de autores brancos que li este ano, mas preencheu bem a cota”, contou.
Ao comentar que conseguiu identificar sua pr�pria juventude nas p�ginas escritas pela francesa, Martins elogiou a capacidade da literatura em conectar tempos e espa�os t�o afastados.
Ao se despedir, Annie Ernaux agradeceu pela acolhida efusiva dos �ltimos dias, dizendo que jamais vai se esquecer de sua visita ao Brasil.