
Miami – O mar dos vizinhos do norte parece mais azul nesta �poca em que Miami ferve. Todo fim de ano, galerias de arte do mundo todo buscam escapar do vermelho nas contas com a pasmaceira das festas e se concentram no balne�rio americano no frenesi de uma Black Friday para bilion�rios.
No rastro do maior leil�o de arte j� realizado na hist�ria, a cole��o de um dos fundadores da Microsoft liquidada em Nova York h� poucas semanas por US$ 1,5 bilh�o, ou estonteantes R$ 8 bilh�es, a feira Art Basel Miami Beach, a maior em territ�rio americano e a mais importante para a Am�rica Latina, chega � 20ª edi��o embalada por furor inaudito.
Foram duas d�cadas de transforma��o. O que era um para�so sonolento de aposentados ou s� uma cidade decadente apavorada pelo crime com ra�zes � beira-mar se tornou uma das metr�poles centrais do fluxo financeiro e de influ�ncia do mercado de arte e, com isso, da especula��o imobili�ria, da moda, do design – tudo aquilo imune aos tremores banc�rios que costumam assustar a classe m�dia.

Marchands v�m a Miami preparados para fechar neg�cio. Nem mesmo a troca no alto comando da feira – sai Marc Spiegler e entra Noah Horowitz, ex-Sotheby's e ex-chefe de uma por��o de feiras de peso, como a nova-iorquina Armory Show – parece abalar a confian�a dos que vivem de vender obras de arte na casa dos milh�es de d�lares, um dos mercados mais impenetr�veis de toda a ind�stria do luxo.
Um trabalho � venda sintetiza bem essa ideia. Waltercio Caldas, representado na feira pela galeria paulistana Raquel Arnaud, tem � mostra aqui uma pequena caixa de a�o.
L� dentro, uma l�mpada el�trica est� acesa, mas vemos s� uns poucos raios de luz que vazam pelas frestas e pelo buraco de uma fechadura.
O artista, um dos nomes centrais da arte contempor�nea brasileira, pensou nos famosos desenhos da caverna de Lascaux, no Sul da Fran�a, ao criar a obra. O dado de que n�o havia rastros de fuligem dentro da gruta sustenta a hip�tese de que os desenhos foram feitos mesmo no escuro, tentativa de trazer o vasto mundo do lado de fora para o interior cego do abrigo.
� dif�cil mensurar, da mesma forma, quantas obras valendo quanto dinheiro v�o trocar de m�os at� o fim da feira, mas a expectativa do mercado corresponde ao fulgor daqueles raios fugazes.

Fatores do mundo externo � caixa-preta da arte, ali�s, fazem sombra (ou jogam luz) sobre as expectativas para a atual temporada de compras.
Nos Estados Unidos, a amea�a de tsunami conservador varrendo as duas casas do Congresso nas elei��es de meio de mandato de um Joe Biden que vem patinando se provou s� uma marolinha, acalmando os nervos dos colecionadores.
Lula
No Brasil, a elei��o de Lula, trepidante para a Bolsa de Valores com declara��es sobre a quebra do teto de gastos, agora traz lembran�as felizes � mente do jet-set.
Quando o grupo su��o que controla a matriz Art Basel, em Basileia, primeiro pensou na ideia de fincar ra�zes em Miami Beach, o Brasil-pot�ncia de Lula da era das commodities em flor foi fator decisivo. Uma base de colecionadores impulsionados pela pujan�a do mais belo dos Brics a poucas horas de voo e com sangue latino pulsando em sintonia com a cidade americana serviu de garantia para uma opera��o que, no decorrer das d�cadas, se provou mais do que certeira.
“Miami tem algo muito especial”, afirma M�rcio Botner, brasileiro que integra o comit� de sele��o da feira e um dos s�cios da galeria A Gentil Carioca, uma das casas mais respeitadas e influentes do pa�s, com sedes em S�o Paulo e no Rio de Janeiro.
“A Gentil tinha um ano e meio quando come�ou a levar os artistas brasileiros para fora do pa�s, e Miami foi a primeira chegada deles”, ele lembra.
Nesta Art Basel Miami Beach, ali�s, a sele��o da Gentil se mostra alinhada ao choque s�smico das pautas identit�rias com o establishment.

Ind�genas, Maria Lira e Lina Bo Bardi
Os carros-chefe da representa��o s�o trabalhos do artista Arjan Martins, nome descoberto pelo mercado j� em idade madura que faz de suas pinturas alegorias da viol�ncia da era colonial, e Denilson Baniwa, artista e intelectual ind�gena que se tornou uma esp�cie de centro irradiador da arte dos povos origin�rios no cerne do circuito mais mainstream da arte feita no Brasil.
No meio do caminho entre o lan�amento de artistas esquecidos e a cren�a nos consagrados, a paulistana Gomide & Co junta for�as com a Luisa Strina, uma das galerias mais poderosas do pa�s, para apresentar os trabalhos de Maria Lira Marques ao lado de m�veis raros de Lina Bo Bardi.
Marques � outra artista rec�m-notada pelo mercado e vem causando sensa��o com sua representa��o singela de bichos, algo como os desenhos de Lascaux. Bo Bardi, hoje superstar do mundo da arte, dispensa apresenta��es, mas talvez fosse ela mesma, se estivesse viva, uma entusiasta da obra de Marques, desenvolvida no Vale do Jequitinhonha mineiro.
O mobili�rio que a italiana arquiteta do Masp pensou para uma casa da zona oeste paulistana est� no centro da constela��o com obras de outros artistas, entre eles o pintor belo-horizontino Lorenzato, que tamb�m que habitam sua esfera de influ�ncia, entre o alto modernismo europeu e opera��es pl�sticas populares brasileiras, como o artesanato autodidata, os tais “outsiders” do circuito.
Enquanto a press�o para a inclus�o de nomes antes distantes do c�none s� aumenta, e n�o s� no Brasil, haja vista a explos�o recente de arte figurativa e panflet�ria em defesa de todas as causas e em detrimento muitas vezes de qualquer sofistica��o em museus e galerias do mundo todo, h� ainda um poder de fogo dos chamados artistas “blue chip”.
De olho no p�blico avesso a modinhas, algumas casas apostam no mais s�lido. A Raquel Arnaud, al�m de Waltercio Caldas, montou um elenco de medalh�es, com trabalhos cl�ssicos de Lygia Clark e S�rgio Camargo, dois gigantes do modernismo brasileiro.
Ela aparece com uma “Superf�cie modulada” e ele com alguns relevos de sua fase �urea, com toquinhos de madeira empilhados na tela num tom de branco hipnotizante.
Tamb�m de olho no colecionador latino-americano, a mesma galeria mostra pe�as cin�ticas dos venezuelanos Carlos Cruz-Diez e Jes�s Rafael Soto, mestres dessa vanguarda, e do brasileiro S�rvulo Esmeraldo, artista que se firmou na Paris da d�cada de 1960, onde pulsava o cora��o de todo esse movimento.
Na feira, estar� um de seus “Excitable”, esp�cie de quadro-escultura com pe�as met�licas que se agitam em atrito com o calor humano, uma obra que reage, de modo literal, ao toque da pele da gente.
Longe do minimalismo mec�nico, a Nara Roesler, galeria paulistana que se tornou um imp�rio com sedes tamb�m no Rio e em Nova York, aposta no sexo de verdade, levando � feira obras de Jonathas de Andrade e Rodolpho Parigi.

N�degas e sungas do Recife
�ltimo artista a representar o Brasil na Bienal de Veneza e agora com retrospectiva em cartaz na Pinacoteca, Jonathas de Andrade mostra uma s�rie de esculturas de barro de fartas n�degas de rapazes trajando sungas que ele garimpou em vesti�rios do Recife, onde vive. Antes algo latente em sua obra, aqui o homoerotismo vibra expl�cito.
Rodolpho Parigi, por sua vez, que acaba de realizar grande exposi��o no Instituto Tomie Ohtake, em S�o Paulo, tem � venda em Miami uma das maiores telas daquela mostra. “La danse” � uma explos�o de cores em que fragmentos do corpo, v�sceras, brinquedos er�ticos e l�tex se misturam numa orgia t�til.
Do rigor mais cerebral e contido dos modernistas do pa�s � mais esfuziante das alegorias, talvez a mensagem que as galerias brasileiras (14 delas agora na feira) querem enviar ao mundo seja algo na linha de “Brazil is back”, ou pelo menos assim espera o mercado.
* O rep�rter viajou a convite da Art Basel
