Frame da videoinstalação Bestiário

A videoinstala��o "Besti�rio", de Lais Myrrha, � uma das obras selecionadas para a coletiva. A artista mineira participa tamb�m "T�bula rasa?"

Lais Myrrha/Divulga��o

"Os artistas s�o sinaleiros, eles t�m essa liberdade e autonomia da express�o, que � muito importante e mexe com nossa imagina��o, nossa capacidade de imaginar outros mundos, outros futuros e outras utopias"

Lilia Schwarcz, historiadora, curadora da mostra "Brasil futuro: as formas da democracia"



“Em momentos de crise, fique do lado dos artistas.” A frase atribu�da ao cr�tico de arte M�rio Pedrosa (1900-1981) cai como uma luva na atual conjuntura brasileira – quando radicais bolsonaristas, inconformados com a derrota do ex-presidente nas elei��es, invadiram e depredaram as sedes dos tr�s Poderes, no �ltimo domingo (8/1), numa tentativa fracassada de golpe de Estado.

� com a m�xima de Pedrosa em mente que Lilia Schwarcz, Rog�rio Carvalho, M�rcio Tavares e Paulo Vieira batalham para reabrir a mostra “Brasil futuro: as formas da democracia”, da qual s�o curadores. 

A exposi��o estreou no Museu Nacional da Rep�blica, em Bras�lia, no primeiro dia do ano, mas precisou ser fechada no domingo passado em raz�o dos atos terroristas – houve, inclusive, amea�a de bomba no pr�dio da institui��o. Ainda n�o h� previs�o de reabertura, contudo.

“A gente n�o sabe o quanto essa amea�a � ver�dica”, afirma Lilia. “O que aconteceu � que n�s j� est�vamos inseguros, porque o policiamento que originalmente havia no p�tio separando a Biblioteca Nacional e o museu foi retirado. Em seguida, alguns grupos bolsonaristas – compostos por cinco, seis pessoas – entraram e come�aram a provocar as pessoas, mexendo nas obras e falando alto”, conta a historiadora e curadora.

Os funcion�rios do museu decidiram fechar o local logo que a turba de baderneiros se aproximou. A atitude se mostrou acertada. Pouco depois, come�ou a circular o boato de que havia uma bomba no pr�dio. 

Limites da democracia

Com  cerca de 200 obras de 54 artistas contempor�neos convidados, al�m de pe�as que j� integravam o acervo do museu, “Brasil futuro: as formas da democracia” tem como principal objetivo desafiar “formal e historicamente, e em seu conjunto, os limites da nossa democracia”, de acordo com a apresenta��o da mostra assinada pelos curadores.
 
Isso � feito a partir de trabalhos que debatem quest�es como o resgate dos s�mbolos nacionais, pautas do feminismo, negritude, dos povos origin�rios e do movimento LGBTQIA+; e a riqueza �tnica, de g�nero, regional e de linguagens presentes na cultura brasileira.

“A ideia original era que fossem s� as obras dos acervos de Bras�lia, mas depois vimos que, se a exposi��o se limitasse a essas obras, ter�amos uma mostra muito datada, com mais artistas brancos, homens e de uma determinada gera��o espec�fica. Como � que se faz uma exposi��o sobre democracia assim?”, observa a historiadora Lilia Schwarcz.

A� entrou em cena sua expertise como curadora-adjunta de hist�rias do Museu de Arte de S�o Paulo (Masp). Em poucos dias, contatou galerias e artistas de diferentes regi�es do pa�s e fez os convites para que integrassem a mostra.

Nesse movimento, Lilia conseguiu levar a Bras�lia 105 obras de fora. “S�o obras grandes e importantes que foram para a exposi��o”, afirma.

Um dos destaques da mostra � o quadro “Orix�s”, da artista brasileira Djanira (1914-1979). A tela escapou da f�ria bolsonarista por um ato de prote��o involunt�rio da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Em 2019, antes mesmo de Jair Bolsonaro come�ar a despachar no Pal�cio do Planalto, local onde se localizava a tela “Orix�s”,  Michelle mandou que retirassem a obra, porque a tem�tica de Djanira ia de encontro �s suas ideias e convic��es religiosas (Michelle � evang�lica). O quadro foi ent�o enviado para o Museu Nacional da Rep�blica.

“� uma obra-s�mbolo da exposi��o, porque ela foi retirada do Sal�o Nobre do Pal�cio do Planalto simplesmente porque a primeira-dama n�o queria ver um quadro chamado 'Orix�s'”, comenta Lilia.

O Sal�o Nobre foi completamente destru�do com a invas�o de domingo. Nele, inclusive, estava o painel de Di Cavalcanti (1897-19760) avaliado em R$ 8 milh�es e alvo de vandalismo dos bolsonaristas, que provocaram sete perfura��es na obra.

Tela mostra emas passeando no jardim do palácio do planalto

A artista Ana Elisa Egreja, uma das 54 convidadas para a mostra, exp�e "Emas no jardim do Pal�cio do Planalto"

Ana Elisa Egreja/Divulga��o

Projeto aberto

Partindo da ideia de que a democracia � um projeto aberto, a mostra se divide em tr�s n�cleos: Retomar os s�mbolos, Decolonizar e Somos n�s. 

No primeiro, est�o expostas bandeiras, mapas, entre outros s�mbolos nacionais cujo significado acabou desvirtudado pelo antigo governo, mas que, para a mostra, foram redesenhados pelos mais diversos artistas (est�o ali representados mulheres, negros, ind�genas, membros da comunidade LGBTQIA , entre outros).  

O segundo n�cleo conta com obras que subvertem as narrativas hist�ricas oficiais, que, al�m de serem muitas vezes inver�dicas ou incompletas, em geral adotam perspectivas coloniais e masculinas.

O terceiro n�cleo, por sua vez, traz diferentes trabalhos que abordam a diversidade �tnica e cultural do Brasil. 

“A quest�o da diversidade est� na exposi��o inteira. Em todos os n�cleos h� um di�logo e uma tens�o entre artistas ind�genas, negros, integrantes da comunidade LGBTQUIA , modernistas e contempor�neos. A ideia era cruzar v�rias temporalidades, v�rios grupos e tend�ncias”, explica Lilia.

Tela mostra onça pintada estilizada

"A queda do c�u ou a m�e de todas as lutas", tela de Daiara Tukano, est� entre as aproximadamente 200 obras selecionadas

Daiara Tukano/Divulga��o

La�s Myrrha e "Besti�rios"

Uma das artistas convidadas foi a belo-horizontina Lais Myrrha. Na mostra, ela exp�e a videoinstala��o “Besti�rios” e a escultura “T�bula rasa?”.

Para o v�deo, a artista selecionou cinco edi��es do Jornal Nacional, da TV Globo, que tratam das posses presidenciais. No entanto, a �nica coisa que o visitante escuta � a frase “Agora, no Jornal Nacional”.

“Todas as edi��es t�m o mesmo peso visual. Assim, voc� n�o consegue identificar o que est� no primeiro e o que est� no segundo plano”, conta a artista. 

Ela acrescenta que a obra “gera uma imagem um pouco fantasm�tica, mas, ao mesmo tempo, refor�a a estrutura formal do telejornal”, como a cor dominante das imagens, a distribui��o dos �ncoras – que aparecem quase sempre do mesmo tamanho, embora tenham alturas diferentes –, e a marca d'�gua da emissora. 

“� um trabalho que fala sobre uma satura��o do agora. Porque os notici�rios sempre aparecem e desaparecem como se fossem novos, mas eles s�o como um eco de uma mesma not�cia”, afirma Lais.

“T�bula rasa?”, por sua vez, � uma mesa cujo tampo � formado por um grid quadriculado (pe�a gradeada) formado com p� de gesso.

“Como ele � feito pelo p� de gesso, n�o � um material que est� est�vel. Ent�o, sempre que algu�m coloca a m�o, esse grid vai sendo desfeito e a ordem vai sendo alterada pela a��o humana. � mais ou menos o que acontece com as cidades planejadas, como Belo Horizonte e Bras�lia, onde voc� tem um tra�ado que parece fixo, mas que n�o � t�o fixo assim”, explica a artista.

Com os atentados de domingo, a obra da artista ganhou novo significado, no qual a a��o de algumas pessoas pode deformar um sistema pol�tico, embora n�o consiga destru�-lo por completo.

No entanto, conforme destaca a historiadora Lilia Schwarcz, a esperan�a vem tamb�m da arte, afinal, “os artistas s�o sinaleiros, eles t�m essa liberdade e autonomia da express�o, que � muito importante e mexe com nossa imagina��o, nossa capacidade de imaginar outros mundos, outros futuros e outras utopias”. E, fazendo dela as palavras de M�rio Pedrosa, conclui:  “Em momentos de crise, fique do lado dos artistas”.