Juma Marru�, de Pantanal, interpretada por Alanis Guillen
Enquanto o cinema de Holllywood se desdobra em franquias que prolongam a vida �til de personagens ic�nicos, de "Vingadores" a "Top Gun", a Globo decidiu voltar ao universo rural de Benedito Ruy Barbosa apenas dois anos depois de uma releitura de "Pantanal", no mesmo hor�rio.
Vem a� "Renascer", originalmente feita pela pr�pria emissora em 1993. O ano de 2024 reserva ainda outro repeteco na Globo --uma nova vers�o de "Elas por Elas", de Cassiano Gabus Mendes, exibida em 1982 como novela das sete, agora para a faixa das seis.
N�o que seja incomum, nas �ltimas quatro d�cadas, a emissora revisitar antigos folhetins, mas isso � recurso normalmente adotado nas faixas das 18h e 19h e, raramente, no cora��o do hor�rio nobre, �s 21h30, quando o esfor�o de apostar em novos argumentos � maior.
Conv�m lembrar que a produ��o de "Pantanal" embutia o contexto de uma repara��o de contas com o autor, j� que a saga dos Le�ncios fora recusada pela emissora em 1990 e fizera hist�ria na concorr�ncia.
"Renascer" n�o disp�e do pretexto e foi inclusive o folhetim que a Globo bancou para trazer o autor de volta da Rede Manchete, dando-lhe pela primeira vez espa�o na faixa nobre, com grava��es em loca��es naturais, na Bahia, e n�o na cidade cenogr�fica do Rio de Janeiro.
Foi um tapete vermelho estendido justamente pela consagra��o de "Pantanal" na Manchete, emissora que faliu nove anos depois da Juma de Cristiana Oliveira virar on�a.
� leg�timo dizer que "Renascer" foi consequ�ncia de "Pantanal", sina que se repete agora. A hist�ria de Jos� Inoc�ncio, pai de quatro filhos que fez pacto com a sorte ao p� de um majestoso jequitib� em Ilh�us, regi�o onde constr�i um imp�rio como fazendeiro de cacau, j� vem sendo reescrita por Bruno Luperi, neto de Barbosa e respons�vel pela releitura de "Pantanal".
Aos 34 anos, ele � apontado como figura essencial no �xito do remake que descortinou a telenovela a um p�blico jovem ainda resistente ao g�nero e devolveu a audi�ncia do hor�rio ao patamar dos 30 pontos. � um n�vel que n�o fora atingido por "Amor de M�e" ou "Um Lugar ao Sol", suas antecessoras, nem pela sucessora, "Travessia", ainda no ar.
Questionado sobre at� que ponto o sucesso de "Pantanal" determinou a escolha por "Renascer", o diretor da TV Globo e afiliadas, Amauri Soares, fez uma explana��o da curadoria que profissionais da emissora realizam para definir os projetos da casa, sempre pautados por pesquisas que identificam prefer�ncias e comportamento do p�blico.
Para ele, atribuir a decis�o apenas ao �xito de "Pantanal" reduz a import�ncia e o trabalho da curadoria. Jornalista de forma��o e atento � interpreta��o dos resultados de pesquisas como as do IBGE e do Pnad, Soares reconhece, no entanto, que as chances de acerto com hist�rias fora do eixo urbano s�o maiores.
"Sab�amos que 'Pantanal' seria um sucesso. A gente tem hist�rico de sucesso com novelas n�o urbanas, mas se fosse para repetir o sucesso de 'Pantanal', encomendaria ao Z� [Luiz Villamarim, diretor de teledramaturgia] 'Pantanal 2'", afirma.
Esta seria uma aposta mais excepcional para a faixa das nove da Globo, mas conv�m valorizar a import�ncia do universo rural. Autores como Walther Negr�o e o pr�prio Ruy Barbosa sempre ressaltaram que todos, mesmo os habituados � cidade, guardam mem�ria afetiva do campo, onde v�rias fam�lias t�m raiz.
"As novelas rurais t�m hist�rico de sucesso por v�rios motivos. Um deles, que � muito importante, e lembre-se que a gente trabalha com representa��o da sociedade, � que as hist�rias t�m conex�o muito afetiva com as pessoas. N�s temos uma parcela muito significativa de quem comp�e as regi�es urbanas com um hist�rico muito recente de passado rural, ou da gera��o imediatamente anterior, ou da pr�pria pessoa."
"Parte dessa conex�o do brasileiro com o campo � muito forte. Quando a gente vem com uma novela assim, essa conex�o se ativa. Mas n�o se engane. O que faz a novela ter sucesso ou n�o � a qualidade da hist�ria. Se tivermos uma hist�ria que se passa no ambiente rural e a hist�ria n�o for boa, n�o ser� sucesso", diz.
Um saudosismo mesmo inconsciente do sossego caipira funciona como escapismo da neurose do asfalto, onde s�o computados os principais marcadores de audi�ncia mensurados pela Kantar Ibope Media, cuja mostra ocupa apenas as 15 regi�es metropolitanas de maior consumo do pa�s. Mato Grosso do Sul, estado onde se passou "Pantanal" e que servir� a "Terra Bruta", t�tulo da sucessora de "Travessia", de Walcyr Carrasco, n�o � uma delas.
Logo, quem mora em Aquidauana, em Mato Grosso do Sul, ou Ilh�us, na Bahia, n�o ver� escapismo em cena, j� que aquele � seu cen�rio real. Ele pode at� celebrar o fato de estar representado, ou criticar a imagem que a TV faz dele, mas n�o � a sua audi�ncia que ditar� a venda de an�ncios, j� que as regi�es n�o est�o no mapa da mostra de audi�ncia nacional.
Em um momento no qual a fragmenta��o da audi�ncia faz v�deos atravessarem telas de diferentes tamanhos por v�rios meios de transmiss�o, essa premissa vira um ant�doto para frear a desidrata��o da hegemonia da TV Globo.
A emissora que desprezou o potencial de "Pantanal" em 1990 produziu a seguir quatro novelas rurais na faixa nobre em dez anos. Foi de "Renascer" a "O Rei do Gado", n�o ao acaso hoje em reprise no Vale a Pena Ver de Novo, passando por "Terra Nostra" e "Esperan�a" --com imigra��o e lavoura. Todas de Ruy Barbosa, que adoeceu no meio da �ltima, em 2003.
A Globo escalou ent�o Walcyr Carrasco para encerrar o enredo e s� voltaria a esse universo 13 anos depois, com "Velho Chico", outra sinopse de Barbosa, demorando outros cinco anos para refazer "Pantanal".
Pela primeira vez falando oficialmente sobre a escolha por "Renascer", o diretor de teledramaturgia da Globo, Jos� Luiz Villamarim, explica � Folha a op��o pela hist�ria, em entrevista por email.
"'Renascer', para mim, � das mais lindas novelas que a TV Globo j� exibiu. Teremos o olhar do Brasil profundo, um pa�s rural, com suas belezas e tradi��es. Mas haver�o quest�es culturais ainda muito atuais. A� entra o olhar de renova��o de nossos autores --o talento e capacidade de respeitar trama, mas com adapta��es necess�rias no texto, trazendo-o para contemporaneidade."
"Isso, por si, j� traz um grande frescor", continua, e "s� � poss�vel porque h� anos investimos no times de autores, que trazem novos olhares."
Villamarim fala cal�ado na bem-sucedida atualiza��o de costumes de "Pantanal", que deu outra dimens�o, por exemplo, � humilha��o e supera��o de Maria Bruaca, personagem que foi de Angela Leal em 1990 e de Isabel Teixeira em 2022.
A quest�o ambiental da hist�ria tomou outro tom para o enredo e para o p�blico, sem falar na oportunidade de inserir novos assuntos, como o racismo, inexistente no original.
Embora apenas "Renascer" e "Elas por Elas" estejam certos para 2024, a Globo estuda mais possibilidades de revival entre as sinopses em avalia��o para novelas. Villamarim e Soares batem na tecla de que n�o h� regras nem limites na escolha, desde que o script fa�a jus a uma s�rie de crit�rios valorizados pela emissora.
A altern�ncia tem�tica e de cen�rios � um deles. � o que Soares chama de modula��o. Mesmo nos per�odos em que a Globo mal escapava do eixo Rio-S�o Paulo para contar melodramas, muitas novelas se valeram de cidades do interior fict�cias para reproduzir um microcosmo do pa�s, como a Asa Branca de "Roque Santeiro", de Dias Gomes.
Agora mesmo h� um exemplo do formato no ar com "Mar do Sert�o", passado em algum lugar do Nordeste chamado de Canta Pedra.
"Refletir sobre o Brasil profundo sempre foi uma preocupa��o. Nunca deixamos de se interessar por hist�rias rurais, � a quest�o da oportunidade, da disponibilidade do que tem na curadoria", afirma Soares.
"Remake � um recurso que comp�e o nosso portf�lio. N�o h� uma pol�tica de remakes", continua. No organograma que funciona hoje na Globo, ele representa a TV aberta que encomenda produ��es aos Est�dios Globo, segmento comandado por Ricardo Waddington, que produz obras para a emissora e a plataforma de streaming Globoplay.
"Quando os Est�dios Globo olham as hist�rias dispon�veis, h� as novas e as que j� foram feitas para serem recontadas. A gente avalia tudo junto. Existe uma curadoria que busca as melhores hist�rias. Quando tem a proposta de trazer uma hist�ria de volta, ela � avaliada", acrescenta.
Soares admite que a Globo tem "pelo menos dois remakes definidos e vai avaliar outros". "Se forem adequados, podem entrar ou n�o", afirma, sem antecipar quais. "A gente n�o tem cota, limite ou meta."
Recentemente, a Globo renovou direitos do nome "Cora��o Alado", novela de Janete Clair de 1980. A autora � campe� de inspira��o para novas vers�es de folhetim, com seis t�tulos. O n�mero foi alcan�ado agora por Ruy Barbosa, com "Renascer". Ele viu remakes de "Cabocla", "Sinh� Mo�a", "Meu Pedacinho de Ch�o" e "Para�so", al�m de "Pantanal".
A presen�a de dois revivals na mesma temporada j� ocorreu em outros momentos da hist�ria da Globo, mas nunca foi pr�tica das faixas mais nobres, a chamada "novela tr�s", originalmente "novela das oito" e h� pelo menos duas d�cadas a "das nove".
Em mar�o de 1998, terminava a segunda vers�o de "Anjo Mau", adapta��o de Maria Adelaide Amaral para o cl�ssico de Cassiano Gabus Mendes de 1976, na faixa das 18h. Em outubro do mesmo ano, estreava no hor�rio "Pecado Capital", matriz de 1975 de Janete Clair, refeita por Gl�ria Perez.
"Irm�os Coragem", outro t�tulo de Janete Clair, foi refeito em 1995, logo depois de "A Viagem", reescrita em 1994 a partir da vers�o da pr�pria Ivani Ribeiro exibida em 1975 pela TV Tupi. A miscel�nea de "Inferno" de Dante com Alan Kardec, ali�s, est� sempre cotada a uma nova leitura.
Atemporal, o enredo que consola o luto com hist�rias de outra vida ap�s a morte � campe� de audi�ncia em reprises, seja no Vale a Pena Ver de Novo, seja no canal Viva, cujo sucesso no ranking de TV paga � o melhor ind�cio de que o p�blico adora espanar mofo de hist�rias antigas.
"Remake � um recurso a mais. Remake sempre fez parte do nosso porf�lio e de qualquer est�dio", assegura Soares. "As hist�rias que se mant�m relevantes s�o reaproveitadas. Sempre gosto de falar dos 'Vingadores'. Quantos voc� j� viu? A Disney vai continuar fazendo remakes deles a vida inteira porque a hist�ria � relevante e vai sendo atualizada."
"Quem acompanha a hist�ria da Globo sabe que remakes s�o tradi��o. Tivemos anos com mais produ��es do que hoje, ent�o por que n�o recontar hist�rias?", endossa Villamarim, falando de "Elas por Elas".
A trama de Gabus Mendes, diz, chega nesse olhar, com humor, protagonismo feminino e mist�rio que costuram a trama. "Recebemos uma releitura muito boa e temos personagens ic�nicos na dramaturgia, como o M�rio Fofoca [vivido por Lu�s Gustavo], que at� hoje est� no imagin�rio."
A percep��o � refor�ada no efeito de "Pantanal" e de outras releituras. Quem assistiu � primeira vers�o gosta de comparar, avaliar ou rejeitar, em envolvimento parecido com o da releitura de "�ramos Seis", a mais refeita da hist�ria da TV nacional.
As novas vers�es flertam com a mem�ria dos mais velhos, encontrando a surpresa de quem nunca viu, em contraste cuja repercuss�o ganhou propor��es maiores nas redes sociais. As apostas sobre quem ser� o novo M�rio Fofoca j� movimentam conversas do novo "Elas por Elas".
A seguran�a de encontrar em um remake o mesmo sucesso da vers�o original tem l� contratempos, como a resist�ncia dos mais nost�lgicos sobre mudan�as da vers�o atual.
A iniciativa de refazer "Pantanal" gerou debates antes da estreia, porque a Globo talvez n�o conseguisse superar a repercuss�o da Manchete ou porque poderia dar � obra um acabamento de mais qualidade gra�as aos recursos atuais. At� a d�vida sobre cenas de nudez foi assunto.
Mas o eco s� se deu porque a produ��o honrou premissas da hist�ria original e n�o decepcionou.
Refazer um cl�ssico tem vantagens, mas o risco do �nus � alto e equivale ao valor afetivo do repert�rio no p�blico. Releituras de "Irm�os Coragem", "Pecado Capital" e "Selva de Pedra", de Janete Clair, n�o encontraram o aplauso de quem viu os originais, e n�o � f�cil vencer a resist�ncia de plateia conservadora como o da TV.
Quanto maior o sucesso do original, maior o peso da releitura. Muitos rejeitaram "Dona Flor e Seus Dois Maridos", hit do cinema nacional que a Globo produziu como miniss�rie.
Com "Renascer", j� se discute como a nova vers�o poderia melhorar o que na �poca j� foi elogiado, a come�ar pelo olhar do diretor Luiz Fernando Carvalho, que fugiu do padr�o Globo para recriar �ngulos e fotografia na ocasi�o. O diretor se valeu da figura��o em Ilh�us para mostrar lavadeiras que cantavam � beira do rio. Eram memor�veis as cenas de Marcos Palmeira amassando cacau.
"Antes de topar qualquer sinopse, tem um olhar muito atento e afetivo ao Brasil, de sintonia com a sociedade e dialogo com o momento", afirma Soares. "N�o existe f�rmula. Se existisse f�rmula, Hollywood n�o floparia. O trabalho mistura camadas de percep��o e sensibilidade, � a grande beleza."
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