Segurando livro, o escritor José Newton Araújo olha para a câmera

Em "Retalhos de fazenda", Jos� Newton Ara�jo se mostra observador atento da alma humana

Leandro Couri/EM/D.A Press

Prima Gabriela, a menina que gostava de roubar biscoitos. A imensa caranguejeira diante de Tia Lisa e seu chinelo quase certeiro. A empregada Tina. O menino diante do primeiro cad�ver de sua vida, homem baleado na beira da estrada. O quilombola Barand�o em busca de justa vingan�a. O “tortinho” Z� Martin, agregado da fam�lia. Naninha, mistura de parente long�nqua e empregada. Lili, vi�va recente, morena sacudida. O pedinte da esquina de Rua Timbiras com Avenida Bias Fortes.

Personagens dos contos de Jos� Newton Ara�jo no livro “Retalhos de fazenda” (Editora Quixote+Do), todos eles s�o protagonistas de vidas ordin�rias em cidades pequenas ou em algum canto da metr�pole. O mundo aparentemente comezinho desta gente ser� mesmo sem gra�a, tediosamente banal?
 
Lembran�as, culpa, ressentimento e nostalgia, mas tamb�m a gra�a deste planeta, s�o a mat�ria-prima de Jos� Newton nas 140 p�ginas deste livro inspirado, sobretudo, na mem�ria. Ou melhor, mem�rias.

“Hoje sei o que � o inferno de n�o esquecer”, diz o narrador de “Corruptelas”, autor de covardia na meninice, ao se deparar com Z� Martin, sua v�tima, j� adulto.

A “boa inten��o” do jovem padre de aposentar, contra a vontade, o ensimesmado Nonato e a invisibilidade que coube ao sacrist�o, depois de tantos anos de dedica��o, passam longe de ser acontecimentos “ordin�rios”.

“Nonato era, no entanto, portador de uma alegria n�o revelada. Estava onde queria estar. Seu copo n�o era meio vazio, era quase todo cheio de satisfa��o �ntima. Ao abrir e fechar a igreja, tinha um prazer secreto: ser quase o dono das chaves, mas n�o de um im�vel qualquer. Certa feita, por mero agrado, uma freira disse que ele tinha as chaves da casa do Senhor. E completou, teatralmente: as chaves do Reino”, revela Jos� Newton no conto “Poeira da chuva”.

O fil�sofo da barbearia

E o que dizer de Euclides, o Mudinho, barbeiro e cabeleireiro da pequena cidade? “Quero n�o, marido surdo e mudo d� azar”, decretam as meninas-mo�as. “F�garo sem bodas naquele confim de mundo”, resume o contista. S� que n�o...

Euclides, digamos, � quase fil�sofo. “Sentava-se � porta da barbearia, seu dom de observar tecia hist�rias de todas as coisas que via na pra�a, fosse gente, passarinho, tempestade ou escurid�o”, conta Jos� Newton, observador t�o atento quanto seu personagem, o “rapaz privado da barulheira do mundo”.

“Figurava, no detalhe, cada transeunte que percorria a feirinha de frutas e verduras, o armaz�m, a sapataria, farm�cia, igreja, cart�rio. Sua imagina��o ficcional desenhava os dramas e prazeres do fazendeiro a cavalo, da costureira apressada, do cachaceiro conversador, da beata arrogante e at� do cachorro manco de nascen�a, ele tamb�m filho de Deus”, prossegue o autor.
 

Mo�a � beira de um ataque de nervos

E L�gia? Ela � caixa, “esp�cie em extin��o nos bancos”, em suas pr�prias palavras. Aguenta o tranco da rotina na ag�ncia como pode – tranquilizantes, analg�sicos, “�s vezes uma boa Cannabis”. L�gia sabe que o banco “quer se livrar do lixo” – idosos, analfabetos, pessoas com defici�ncia e a turma que d� despesa porque n�o usa o terminal eletr�nico.

� beira do burnout (“nem sei o que � isso”, confessa), a banc�ria � a “m�quina de carne e osso” que conversa, olha nos olhos da gente incapaz de lidar com aquelas teclinhas. Assediada pelo cliente “ilustre”, tem de engolir a den�ncia do homem � ger�ncia. Acaba “encostada” no setor de servi�os internos. O cliente tem sempre raz�o...

“Se ainda tenho sonhos? O trabalho indesejado levou quase todos. Em minha nova mesa, sem clientes, �s vezes paro, olho os pap�is, olho o teto, as paredes e os colegas, sem lhes dirigir palavra. Olho sobretudo o vazio que me resume”, desabafa L�dia conosco.

Jos� Newton faz do leitor o confidente de todo mundo. Somos testemunhas tamb�m. De segredos er�ticos, por exemplo. H� o menino entre o desejo e a culpa, a saia da prima levantada. “Prosseguir como? Sempre fui um cag�o”, ele nos diz.

O rapaz da rep�blica em Ouro Preto e a mo�a, sozinhos, na Semana Santa. “Nossa m�sica entoada em gemidos primitivos, eu transpondo os umbrais daquele corpo branco, os sinos de todas as igrejas come�ando a repicar a ressurrei��o de um estudante negro, em plena Sexta-feira da Paix�o”.

V�rgula, ponto e fim!

Chegamos at� a acompanhar o di�logo angustiado entre o ponto e a v�rgula. Os coitados temem desaparecer. “Se desligamos o computador o texto fica salvo automaticamente e n�s tamb�m”, diz a v�rgula. “Agora � tarde, ele est� acordando”, responde o ponto, referindo-se ao pr�prio Jos� Newton.
 
Ao fim dos 33 contos de “Retalhos de fazenda”, v�-se que nada � insignificante, ningu�m � invis�vel. O trivial tece os nossos dias, assim como os de L�dia, Nonato, Euclides, do nost�lgico ex-estudante de Ouro Preto.

Tamb�m pudera: o autor dedicou sua vida a compreender a alma humana. Jos� Newton Ara�jo � mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em psicologia pela Universidade Paris-Diderot (Paris VII), professor da PUC Minas e da UFMG. Aluno da poeta Dagmar Braga na oficina liter�ria Letras e Ponto, este mineiro de Dion�sio, acostumado a textos acad�micos, fez bem em se aventurar na literatura. Saiu-se muito bem em seus “contos de aprendiz”.

TRECHO

“Guardo essa lacuna. Se fosse historiador, iria escarafunchar sua vida. Iria atr�s dos mist�rios e sofrimentos que ele carregava nas m�os calejadas e no peito. Descobriria que, quando jovem, al�m de esculpir com rara destreza a madeira bruta, ele tamb�m usou o machado como arma. Nascido numa comunidade quilombola, teria vingado os irm�os assassinados por fazendeiros que invadiram suas terras. Depois, fugiu, perambulou por v�rios recantos, descendo o Jequitinhonha, at� chegar � minha pequena cidade, sem biografia e sem documento, apenas buscando trabalho”

. Conto “� s� o que sei dele”


Capa do livro Retalhos de fazenda traz imagens de fragmentos de fotos antigas

Capa do livro Retalhos de fazenda traz imagens de fragmentos de fotos antigas

Reprodu��o
"RETALHOS DE FAZENDA"

• De Jos� Newton Ara�jo
• Contos
• 140 p�ginas
• Editora Quixote Do
• R$ 45