Silviano Santiago olha para a câmera

Silviano Santiago, de 86 anos, diz que deve seu lado libert�rio � Belo Horizonte dos anos 1940 e 1950

Fernando Azevedo/divulga��o

'Assim como sempre tive uma �nica universidade, agora � uma �nica academia. N�o se acumula essas coisas'

Silviano Santiago, escritor, ensa�sta e professor



A inf�ncia triste e ensimesmada na pequena Formiga traduziu-se em temor quando Silviano Santiago, ent�o um adolescente de 11 anos, mudou-se com a fam�lia para a capital. Contrariando as expectativas, foi na Belo Horizonte dos anos 1940 e 1950 que ele descobriu a liberdade – e esta veio no encontro com novos amigos e as artes.

Aos 86 anos, Santiago, radicado h� quase 50 no Rio de Janeiro depois de viver na Fran�a e nos EUA, retorna de forma simb�lica � cidade que o formou. Intelectual completo – professor, ensa�sta, poeta, contista, romancista – e em constante atividade, ele toma posse na sexta-feira (24/3) da cadeira de n�mero 13 da Academia Mineira Letras, sucedendo a Paulo Tarso Flecha de Lima (1933-2021).

A posse vai ocorrer somente um ano e meio ap�s sua elei��o, em outubro de 2021, em decorr�ncia da pandemia. A crise sanit�ria – que o afastou de Belo Horizonte, sempre visitada por causa dos la�os familiares – tamb�m o domou. “Com a pandemia, aprendi o que � de dom�stico”, diz Santiago.

Mas foi tamb�m durante a crise – algo “t�o inesperado, t�o violento, t�o absorvente” – que o mineiro lan�ou novos t�tulos: as mem�rias “Menino sem passado” (Cia. das Letras) e o ensaio “Fisiologia da composi��o” (Cepe Editora), sobre Graciliano Ramos e Machado de Assis. Tamb�m veio a p�blico, em nova edi��o comemorativa dos 40 anos de publica��o, o romance “Em liberdade” (Cia. das Letras).

Ele ainda colheu frutos. Recebeu, em 2022, o Pr�mio Cam�es, mais alta distin��o da l�ngua portuguesa. A premia��o veio se somar a uma s�rie de outras ao longo da carreira, como o Jabuti (j� recebeu meia d�zia deles), o Machado de Assis, o Oceanos e o Jos� Donoso.
 

"N�o estou entrando para a Academia porque parei de trabalhar. Agora estou escrevendo sobre Machado de Assis e Proust, est� bastante adiantado. Vivo da melhor maneira poss�vel"

Silviano Santiago, escritor, ensa�sta e professor

 

Na posse, o novo acad�mico ser� apresentado pelo agora colega de AML Wander Melo Miranda, professor, escritor e cr�tico, autor da tese de doutorado “Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago”. Os acad�micos Maria Esther Maciel e Angelo Oswaldo tamb�m ter�o participa��o no evento.

Silviano Santiago viveu apenas 12 anos em BH, de 1948 a 1960. Na resid�ncia da Rua Mato Grosso, 935, no Bairro Santo Agostinho, o filho do meio de 11 irm�os tamb�m come�ou a trabalhar. Primeiramente no balc�o da Dental Santiago, que o pai, farmac�utico de forma��o e cirurgi�o-dentista de profiss�o, abriu no Centro.

Nas artes, a paix�o inicial foi o cinema. Com os amigos que fez em BH, escritores, atores, bailarinos e artistas pl�sticos, descobriu a vida da boemia e da cultura, que acabou o levando para a universidade. Graduou-se em letras neolatinas em 1959, pela UFMG – foi por meio do DCE da institui��o que lan�ou seu primeiro livro, “4 poetas”.

Deixou a capital mineira no ano seguinte para se especializar em literatura francesa, no Rio de Janeiro. Dali, ganhou o mundo – primeiramente como aluno, com doutorado na Universidade de Paris- Sorbonne. e, posteriormente, como docente. Nesse retorno a Minas por meio da AML, Santiago v� o “reencontro do velho com sua juventude”.
 
Em BH em 1955, lançamento da revista Complemento: sociólogo Theotônio dos Santos Júnior, cineasta Maurício Gomes Leite, Silviano Santiago, poeta Ary Xavier, produtor musical Ezequiel Neves, poeta Pierre Santos e o crítico Heitor Martins

Em Belo Horizonte em 1955, no lan�amento da revista Complemento: soci�logo Theot�nio dos Santos J�nior, cineasta Maur�cio Gomes Leite, Silviano Santiago, poeta Ary Xavier, produtor musical Ezequiel Neves, poeta Pierre Santos e o cr�tico Heitor Martins

Revista Complemento/reprodu��o
 

O senhor foi eleito em outubro de 2021 para a Academia Mineira de Letras e, em junho de 2022, retirou sua candidatura para a Academia Brasileira de Letras, onde era apontado como favorito. Por qu�?
Foi uma quest�o de foro �ntimo e se refere muito a minha pr�pria carreira. Eu me sustentei a vida inteira pela universidade, sendo professor. Ent�o, minha vida social sempre foi muito restrita � universidade. Eu nunca dei aula em mais de duas universidades simultaneamente. E assim como sempre tive uma �nica universidade, agora � uma �nica academia. N�o se acumula essas coisas. Tenho 86 anos. Estou, como se diz a respeito de rem�dios, com a data de validade a perigo. Se � para tocar no assunto, temos que ser realistas. A �nica coisa que est� acontecendo � que continuo trabalhando, produzindo. N�o estou entrando para a Academia porque parei de trabalhar. Agora estou escrevendo sobre Machado de Assis e Proust, est� bastante adiantado. Vivo da melhor maneira poss�vel, fa�o muito gin�stica, pois tenho uma lombalgia violenta, fiz uma cirurgia dos olhos... � uma realidade um pouco mais dura, mas que vale a pena tocar. Enquanto se puder, claro.

Qual o sentido das academias de letras?
Evidentemente, o reconhecimento do saber de um determinado cidad�o. No caso de uma universidade, isso se d� por concurso; na academia, por elei��o. Eu estava muito mais acostumado s� com a vida social na universidade. Essa outra vida social � uma novidade para mim. Quando entrei para a AML era isso o que esperava: uma nova experi�ncia de sociabilidade intelectual.
 

'A pandemia foi um acontecimento t�o inesperado, t�o violento, t�o absorvente que, de repente, me entregar a uma mem�ria individual me pareceu um exerc�cio meio f�til, sobretudo porque h� uma prem�ncia pela vida e n�o tenho meu tempo dispon�vel por um longo tempo'

Silviano Santiago, sobre o livro de mem�rias que desistiu de escrever

 

Sua entrada na AML � tamb�m um retorno a Minas, n�o?
Meu lado libert�rio, para falar a verdade, vem da juventude em Belo Horizonte. Aos 11 anos, minha fam�lia se transferiu para Belo Horizonte. Eu estava com muito medo porque n�o estava preparado para uma cidade como Belo Horizonte. Meu pai logo fundou a loja (Dental Santiago, no Centro) e fui trabalhar com ele no balc�o. Trabalho desde os 12 anos. Estava meio desesperan�oso, mas tive a enorme sorte de encontrar amigas e amigos que me acolheram bem. Todos se interessavam por arte, ent�o tive uma adolesc�ncia muito libert�ria. Era um grupo extraordin�rio, o Complemento (tamb�m nome da revista que ele publicou, com Maur�cio Gomes Leite e Heitor Martins, entre 1956 a 1958), que se associou ao grupo de bal� do Klauss Vianna, ao Teatro Experimental do Carlos Kroeber, �s artes pl�sticas... Era um tipo de vida bo�mia muito rica, embora meus dias fossem tomados pelo trabalho e pelo estudo. Era uma vida dividida entre trabalho, prazer e cultura. De certa forma, esse retorno a Minas agora significa o reencontro do velho com sua juventude.

No in�cio de 2021, foi publicada “Menino sem mem�ria” (Cia. das Letras), a primeira parte de suas mem�rias, com a inf�ncia em Formiga. Na �ltima vez em que nos falamos, em outubro de 2022, quando o senhor recebeu o Pr�mio Cam�es, disse que n�o continuaria com o projeto. Mudou de ideia?
N�o. A pandemia foi um acontecimento t�o inesperado, t�o violento, t�o absorvente que, de repente, me entregar a uma mem�ria individual me pareceu um exerc�cio meio f�til, sobretudo porque h� uma prem�ncia pela vida e n�o tenho meu tempo dispon�vel por um longo tempo. Por isso, optei por estancar um pouco isso. Se eu viver mais do que espero, e eu espero, talvez eu volte ao relato. Que seria exatamente sobre a minha vida em Belo Horizonte (nos anos 1950) e a primeira experi�ncia no Rio de Janeiro (no in�cio da d�cada de 1960). Achei melhor fazer outro tipo de testamento, um testamento intelectual, que � o que posso oferecer depois de n�o sei quantas d�cadas de trabalho como professor, cr�tico e criador.
 

'Machado � um romancista que trabalhou sua inser��o na literatura universal na periferia brasileira. E que, no entanto, gra�as ao seu talento, conseguiu fazer uma obra t�o grande quanto a de Proust'

Silviano Santiago, escritor, ensa�sta e professor

 

Qual � o conceito geral do trabalho que une Machado a Proust?
De maneira simplificada, seria a quest�o do ci�me em “Dom Casmurro” e “Um amor de Swann”. De maneira mais ampla, seria para mostrar como Machado � um romancista que trabalhou sua inser��o na literatura universal na periferia brasileira. E que, no entanto, gra�as ao seu talento, conseguiu fazer uma obra t�o grande quanto a de Proust. Temos que discutir com muito cuidado a no��o de universal. O valor universal n�o � necessariamente centrado no Ocidente. Hoje, o valor se encontra exatamente em uma vis�o democr�tica de cultura. S�o v�rias culturas que comp�em a cultural universal.
 

Nesta altura da sua vida e carreira, depois de ter lido e escrito sobre tantos autores, quais s�o os mestres do senhor?
Em tudo na vida eu fui muito libert�rio e vol�vel. Tenho in�meros mestres, paix�es de acordo com as esta��es da vida. Machado � a paix�o da minha velhice, eu diria. A paix�o da juventude, os mestres, foram muito mais Carlos Drummond e Guimar�es Rosa. Em seguida, houve o mestre da Sorbonne, Andr� Gide (objeto de seu doutorado, defendido em 1968). E tamb�m os autores modernistas e os cl�ssicos da literatura, que come�aram a exigir cidadania na minha vida.