Liam Neeson � o detetive Marlowe em "Sombras de um crime"
Na trama ambientada em 1939, ele � contratado por uma socialite para encontrar seu amante desaparecido; diretor Neil Jordan faz uma releitura do g�nero noir
Como Sam Spade, detetive criado por Dashiell Hammett, Philip Marlowe, inven��o de Raymond Chandler, costuma se arriscar bastante em suas investiga��es, sendo constantemente aprisionado ou v�tima de espancamentos. Ser detetive, para ele, envolve risco f�sico.
Marlowe surgiu em "O sono eterno", primeiro romance de Chandler, publicado em 1939. O livro seria adaptado ao cinema por Howard Hawks, em 1946, num filme aqui chamado de "� beira do abismo", com Humphrey Bogart e Lauren Bacall.
Em 2014, o escritor irland�s John Banville, sob o pseud�nimo Benjamin Black, lan�a "A loura de olhos negros", romance protagonizado por Philip Marlowe, com autoriza��o e incentivo dos herdeiros de Chandler.
Personagem criado pelo escritor Raymond Chandler, o detetive Marlowe, vivido por Liam Neeson na tela, � contratado por uma socialite para encontrar seu amante desaparecido
Diamond Films/Divulga��o
Esse romance � agora adaptado por Neil Jordan, que aproveita e faz uma nova releitura do filme noir. O longa se chama "Marlowe", no original, "Sombras de um crime", no Brasil. � protagonizado por Liam Neeson e ambientado em 1939, na Calif�rnia.
Na trama, menos rocambolesca que a de um noir t�pico, Marlowe � contratado por Clare Cavendish, socialite vivida por Diane Kruger, para encontrar o amante misteriosamente desaparecido e acaba se envolvendo com um est�dio de Hollywood e contrabando de drogas.
Que n�o se espere um ve�culo de a��o nos moldes da s�rie "Busca implac�vel". Embora o detetive n�o se esquivasse do perigo, os dom�nios do cinema noir s�o muito mais cerebrais e enigm�ticos, fazendo com que a a��o desta adapta��o seja mais contida do que nos ve�culos usuais para Neeson.
Releituras
Em 1973, Robert Altman inaugura, com "O perigoso adeus", um ciclo moderno de releituras do noir. O filme mostra o caminho para todas as releituras de noir desde ent�o. Curiosamente, de 1973 at� hoje h� menos diferen�as est�ticas no cinema do que de 1973 para 1946, quando surgiu o filme de Hawks.
Essa constata��o nos serve para lembrar que o cinema mudou muito mais dos anos 1940 aos anos 1970 do que destes para os anos 2020. A maior diferen�a das releituras de antes com as de agora est� na frontalidade das quest�es sexuais.
Nos chamados neo-noirs dos anos 1970 e 1980, o erotismo � um dos principais elementos. Muitas vezes, o sufocante preto e branco do ciclo cl�ssico d� lugar a um calor insuport�vel, que transformava atores e atrizes em po�as de suor. O exemplo m�ximo dessa estrat�gia foi "Corpos Ardentes", 1981, de Lawrence Kasdan.
Hoje, o erotismo existe quase exclusivamente em filmes que exploram esse nicho, como o recente "�guas Profundas", de Adrian Lyne, ou a s�rie de longas "Cinquenta Tons...". Fora disso, costuma imperar o puritanismo no cinema contempor�neo atual.
Para Neil Jordan, o que sobra? Um maneirismo pict�rico que provoca uma explos�o de cores por vezes constrangedora, como numa cena que envolve um aqu�rio, toda em azul e laranja, ou no exagero entediante dos tons de s�pia habitualmente usados para representar o passado. Eventualmente, contudo, o tratamento visual de seu filme � muito bem-sucedido.
Cineasta irland�s que despontou nos anos 1980 com longas talentosos como "A companhia dos lobos", de 1984, e "Mona Lisa", de 1986, Jordan foi cooptado por Hollywood em "Com fantasmas n�o se brinca", seu quarto longa para cinema, de 1988.
A partir da�, tem alternado projetos mais ambiciosos com refilmagens ou releituras de g�nero. Seu ecletismo permite tanto a realiza��o de grandes filmes como "Fim de caso", de 1999, quanto uma bobagem como "Valente", de 2007.
Podemos entender, por seus melhores filmes, que sua capacidade � alta. E � por isso que "Sombras de um crime", filmado principalmente na Espanha, decepciona um pouco.
Nas primeiras imagens, vemos um cuidado de composi��o do espa�o pouco comum no cinema contempor�neo. O problema � que esse cuidado nem sempre se repete. Pelo contr�rio, por vezes o que domina � a imagem que parece pouco pensada. O "mirar a c�mera e filmar do jeito que estiver" t�o em voga no cinema atual.
Felizmente, Jordan d� um pouco de seu melhor em algumas cenas em que Neeson contracena com Kruger. H� um di�logo curioso em que Marlowe menciona um encontro com um irland�s que citou Marlowe. Clare pergunta se ele tem falas famosas para ser citado, ao que Marlowe informa que se referia ao antigo escritor Christopher Marlowe, contempor�neo de Shakespeare.
Tempero
Outros dos melhores momentos do filme � quando Marlowe encontra a m�e de Clare, Dorothy Quincannon, interpretada brilhantemente - e estranhamente, o que conv�m ao universo noir - por Jessica Lange. � uma personagem forte, com passado intrigante, que coloca um tempero bem especial na trama.
Jordan traduz com alguma fidelidade o clima do filme noir tal como surgiu: o visual cheio de listras provocadas pela incid�ncia da luz, situa��es em que ningu�m presta e todos s�o corrupt�veis, em que a dan�a dos poderosos ao redor do dinheiro provoca a capitula��o de todos que n�o est�o � altura de acompanh�-los ou enfrent�-los.
Como escreveu Mar�a Negroni, em "La noche tiene mil ojos", o noir � tido como "um g�nero essencialmente apol�tico, capaz de representar o modernismo em chave popular, mas incapaz de propor �s massas uma vis�o �tica do mundo".
Marlowe circula por Hollywood. Na trama, vemos a produ��o de um filme hollywoodiano de ent�o, no qual aparece destacadamente, j� perto do fim, a su�stica nazista. Isso parece insinuar que a �poca atual, com o fortalecimento da extrema-direita no mundo, permite o tom desesperan�oso que dominava o noir cl�ssico. A releitura desse g�nero t�o rico, portanto, � de incr�vel pertin�ncia.
“SOMBRAS DE UM CRIME”
(Irlanda, Espanha, Fran�a, 2022, 109 min.) Dire��o: Neil Jordan. Com Liam Neeson, Diane Kruger, Jessica Lange. Classifica��o: 16 anos. Em cartaz no Cidade, 21h (dub), Ponteio, 13h45 (leg), UNA Cine Belas Artes, 14h.
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