Jair Rodrigues sorri em frente a microfone em programa de auditório, acompanhado de músicos

Jair Rodrigues, que alcan�ou popularidade na TV e nos festivais de m�sica nos anos 1960, se tornou amigo de Rubens Rewald quando trabalhou com o diretor no filme "Super nada", em 2012

O Cruzeiro/Arquivo EM

Quando foi colher depoimentos para o document�rio “Jair Rodrigues: deixa que digam”, o diretor Rubens Rewald esperava encontrar “zonas de sombra” no personagem focalizado, de forma a ter o conflito que as narrativas cinematogr�ficas pedem. N�o encontrou. Todos os entrevistados apenas ratificaram a imagem do cantor que trazia em si – no palco ou fora dele – uma alegria inabal�vel.

A solu��o que o cineasta encontrou foi fazer um registro documental com o esp�rito de Jair Rodrigues: din�mico e alto astral. Ap�s ser exibido no Festival � Tudo Verdade, em 2020, e vencer na categoria de melhor filme pelo voto do p�blico no 13º Brazilian Film Festival, de Chicago, em 2022, o longa chegou, na semana passada, ao circuito comercial de cinema. Em BH, est� em cartaz no UNA Cine Belas Artes. 

Rewald conta que o embri�o do projeto remonta a 2012 e partiu de um pedido do pr�prio cantor. Naquele ano, o diretor rodou o filme “Super nada”. Na hora de montar o elenco, pensou em convidar Jair Rodrigues, que topou se aventurar como ator.



Ao t�rmino das filmagens, uma rela��o de amizade havia se estabelecido entre os dois. “Jair fez um trabalho �timo e, inclusive, ganhou v�rios pr�mios. Quando o ‘Super nada’ foi lan�ado, ele chegou com aquele jeito dele, me chamando de ‘meu diretorzinho’, e sugeriu que eu fizesse um filme sobre ele. Gostei da ideia, ficamos de voltar a falar a respeito, mas ele morreu antes (em maio de 2014, aos 75 anos)”, diz Rewald.

O projeto foi para a gaveta, mas, cerca de um ano depois, o cineasta considerou que um artista da estatura de Jair Rodrigues merecia que o projeto de um document�rio fosse levado adiante. Ele diz que entrou em contato com a fam�lia do cantor, que chancelou a ideia e deu todo o suporte poss�vel para que o filme fosse realizado.

Os filhos, Jair Oliveira e Luciana Mello; a vi�va, Claudine Rodrigues; e o irm�o, Jairo Rodrigues, integram a extensa lista de pessoas que deram depoimentos para a c�mera de Rewald. O document�rio se estrutura a partir desses depoimentos, que se alternam com imagens de arquivo cedidas pela fam�lia e tamb�m as que o diretor conseguiu junto a emissoras de TV. Ele diz, a prop�sito, que havia muito material dispon�vel.

"Todos, unanimemente, me disseram que nunca o viram triste ou mal-humorado. Jair era sempre aquela alegria, aquela extrovers�o. Isso era uma coisa que eu mesmo j� tinha constatado no set de filmagens de 'Super nada'. �s vezes ele vinha de um show, cansado, mas j� chegava brincando com um, com outro, plantando bananeira. Ele era a pr�pria utopia existencial da felicidade"

Rubens Rewald, cineasta



“A hist�ria do Jair se mistura um pouco com a hist�ria da TV no Brasil, cujo boom se deu nos anos 1960, sincronicamente com o estouro da carreira do cantor. O maior trabalho foi fazer a sele��o das imagens. A gente teve que deixar muita coisa de fora, com dor no cora��o, mas era necess�rio ficar com o fil�”, afirma.

Jair Rodriges e a alegria 

Entre as personalidades entrevistadas para o filme figuram nomes como Rappin’ Hood, Hermeto Pascoal, Roberta Miranda, Th�o de Barros, o cr�tico e produtor Zuza Homem de Mello (1933-2020) e os pesquisadores Bruno Baronetti e Salloma Salom�o, entre muitos outros. Para todos, Rewald perguntava sobre momentos em que Jair estava triste ou de mau humor.

“Todos, unanimemente, me disseram que nunca o viram triste ou mal-humorado. Jair era sempre aquela alegria, aquela extrovers�o. Isso era uma coisa que eu mesmo j� tinha constatado no set de filmagens de ‘Super nada’. �s vezes ele vinha de um show, cansado, mas j� chegava brincando com um, com outro, plantando bananeira. Ele era a pr�pria utopia existencial da felicidade”, diz.

Ele destaca que o filme ficou pronto em 2020, mas seu lan�amento foi comprometido pela chegada da pandemia, pela paralisa��o da Ancine (Ag�ncia Nacional de Cinema) e pelo descaso com a cultura do governo Bolsonaro. “Mas acho que estou lan�ando num bom momento, prop�cio para resgatar essa alegria de Jair Rodrigues, porque o Brasil passou, nos �ltimos anos, por um per�odo muito baixo astral”, destaca.

“Cara, eu tinha esquecido que o Brasil j� tinha sido assim”, � o coment�rio recorrente entre as pessoas que j� assistiram ao longa, segundo o diretor. “O Brasil sempre foi um pa�s com suas mazelas, mas havia um otimismo, uma alegria, um esp�rito mais festivo que Jair Rodrigues personificava. Ele nos d� uma li��o nesse sentido, por isso acho que resgatar essa alegria � importante”, aponta.

O diretor ressalta, al�m desse tra�o marcante da personalidade, o enorme talento do cantor, que – assim como Elis Regina, sua companheira no cl�ssico programa “O fino da bossa” –  era capaz de unir t�cnica e emo��o de maneira rara. “E ele cantava de tudo, do samba ao sertanejo”, diz, destacando que Jair Rodrigues � reconhecido como precursor do rap, por causa da m�sica “Deixa isso pra l�”, da qual o t�tulo do document�rio � extra�do.

“O filme � cheio de m�sica, s�o mais de 40 ao todo. Tive a preocupa��o de trabalhar isso. Para cada pessoa que deu depoimento, num dado momento durante a entrevista eu pedia que cantasse um trecho de alguma m�sica famosa na voz dele. Um dos maiores cr�ticos que a gente j� teve, Zuza Homem de Mello, tamb�m canta. Ele morreu pouco depois. Talvez tenha sido o �ltimo registro dele. � um document�rio karaok�”, aponta.

Depoimentos de amigos

Sobre as pessoas que iria entrevistar para o document�rio, Rewald diz que fez as escolhas a partir de uma divis�o em tr�s blocos – o dos familiares e amigos pr�ximos, o das personalidades que interagiram artisticamente com Jair Rodrigues e o dos cr�ticos e pesquisadores. O diretor destaca que pretendeu fazer um retrato tridimensional de seu personagem, com diferentes pontos de vista e diferentes �ngulos.

De acordo com ele, esse processo de coleta de depoimentos teve in�cio no segundo semestre de 2018 e foi conclu�do no segundo semestre de 2019. “O document�rio tem uma forma de produ��o diferente da fic��o, em que voc� primeiro filma tudo e depois vai para a montagem. Neste projeto, a partir de um certo material, a gente j� ia montando e, ali nesse processo era poss�vel identificar lacunas que levavam a outros entrevistados”, explica.

Al�m de Zuza Homem de Mello, o diretor destaca como depoimentos marcantes o de Simoninha, filho de Wilson Simonal – “Que, apesar de curto, � muito bonito e emocionante” – e o de Rappin’ Hood, expoente do hip hop brasileiro nos anos 2000, que se tornou muito amigo de Jair Rodrigues. “A fala dele � carregada de conhecimento e afetividade”, aponta.

Ele diz que Rappin’ Hood, a prop�sito, � uma das personalidades que toca numa quest�o que vem sendo revisada ao longo dos �ltimos tempos: uma suposta postura apol�tica de Jair Rodrigues. O cineasta conta que acabou ampliando no filme o espa�o dedicado a esse assunto, que n�o foi pr�-determinado; surgiu a partir dos depoimentos.

“Sempre houve quem acusasse Jair Rodrigues de ser alienado, tanto na quest�o pol�tica quanto na racial. Rappin’ Hood, que tem uma vis�o aguda e muito forte sobre esses dois campos, disse que ele agia politicamente nas entrelinhas, n�o s� por meio das m�sicas, que eram carregadas de tem�ticas sociais e raciais, mas tamb�m na postura, na performance, porque, com aquele jeito brincalh�o, Jair foi ocupando espa�os”, observa.

Ele diz, por exemplo, que o cantor foi um dos primeiros, sen�o o primeiro apresentador negro da TV brasileira (com “O fino da bossa”), al�m de conseguir colocar a si pr�prio, com a prole e a esposa, como uma refer�ncia da fam�lia brasileira –  tudo isso num momento hist�rico do pa�s muito adverso, em pleno regime militar, quando a livre express�o era fortemente cerceada.

“Jair Rodrigues fez mais em termos de pol�tica racial do que muitos artistas com discurso afiado e proeminente. S� que foi uma outra forma de agir, que hoje est� sendo revista. Mas isso n�o � algo que eu j� tinha como hip�tese; surgiu com os depoimentos e acabou ocupando um espa�o relativamente grande no filme”, diz o diretor.

O document�rio, por vezes, passa a impress�o de que tudo na vida art�stica de Jair Rodrigues aconteceu meio por acaso, porque ele estava no lugar certo, na hora certa. Rewald assente que, com efeito, o cantor n�o era um empres�rio, n�o tinha vis�o de marketing ou um entendimento de gest�o de carreira, mas compensava isso com uma sensibilidade musical agu�ada.

Primeira grandeza

“Quando sentia que uma m�sica era para ele, batalhava por essa m�sica, e ela acontecia. ‘Majestade, o sabi�’, de Roberta Miranda, por exemplo, tinha sido recusada por Chit�ozinho e Xoror�. Quando ela mostrou a m�sica para Jair Rodrigues, ele identificou o potencial da can��o”, diz, destacando que o cantor tamb�m costumava ir habitualmente nas escolas de samba para se inteirar da obra de compositores desconhecidos.

“Jair Rodrigues n�o era uma Madonna, que tem total controle art�stico da carreira, mas, quando uma m�sica lhe chegava e ele sentia que era boa, agarrava e fazia dela um grande sucesso. Ele tinha um ouvido musical rar�ssimo. O que tento mostrar no filme � que se trata de um artista de primeira grandeza, que poderia estar no mesmo pante�o de Gil ou Paulinho da Viola, mas muitas vezes � colocado s� nesse lugar caricatural do cara alegre e brincalh�o”, afirma.

Uma curiosidade do document�rio sobre Jair Rodrigues � que o filho, que � m�sico, produtor e ator, al�m de dar seu depoimento, faz, em certas passagens, o papel do pai. E Jair Oliveira – ou Jairzinho, como � conhecido – se sai muito bem imitando a voz e os trejeitos do pai. Essa atua��o foi ideia de Rewald.

“Comecei a pensar em ter cenas ficcionais por duas raz�es. Primeiro, porque havia muitas hist�rias boas, saborosas, passagens importantes da vida de Jair Rodrigues que n�o estavam contempladas em nenhum depoimento e em nenhum material de arquivo. Segundo, eu queria fazer um filme com a cara dele, descontra�do, imprevis�vel. Pensei: por que n�o criar uma camada ficcional. Me veio a ideia de ter um ator interpretando Jair, e Jairzinho � ator”, diz.

“JAIR RODRIGUES: DEIXA QUE DIGAM”
• (Brasil, 2019, 90 min.). Dire��o: Rubens Rewald. Document�rio, com depoimentos de Jair Oliveira, Luciana Mello, Jairo Rodrigues, Claudine Rodrigues, Rappin’ Hood, Zuza Homem de Mello, Hermeto Pascoal, entre outros.
•Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, �s 18h40) e, a partir de quinta (4/5), tamb�m no Centro Cultural Unimed-BH Minas T�nis Clube.