Alceu Valença de braços abertos

Ap�s a ditadura militar, Alceu Valen�a tentou criar o Partido da M�sica Brasileira, mas nem se lembrava mais disso, revela o bi�grafo do cantor

Leo Aversa/divulga��o

“Pelas ruas que andei”, a rec�m-lan�ada biografia de Alceu Valen�a escrita pelo jornalista carioca Julio Moura, guarda uma curiosa particularidade: dispensou qualquer entrevista formal com o biografado. Trata-se de uma obra que nasceu da conviv�ncia, pois o autor � assessor de imprensa do artista desde 2009.

O livro � fruto de incont�veis conversas durante turn�s pelo Brasil e exterior, al�m de incurs�es de Moura por lugares que marcaram a trajet�ria de Alceu – de sua cidade natal, S�o Bento do Una (PE), ao Rio de Janeiro, onde mora atualmente, passando por Paris e Cambridge (EUA).

O autor diz que, ao longo desses quase 15 anos, viveu muito o universo de Alceu, tendo contato pr�ximo com familiares e amigos do compositor. Destaca que isso poderia ser um problema, por comprometer a objetividade do livro, mas garante que foi zeloso em contornar armadilhas armadas pela intimidade com o biografado.

“N�o �, em absoluto, um livro sobre minha conviv�ncia com Alceu. Tem a pretens�o de ser mesmo uma biografia dele. Certa vez, fiz workshop com Ruy Castro, refer�ncia no g�nero, e ele disse que se voc� conviveu com seu biografado, ent�o n�o � biografia, mas livro de mem�rias. Fiz o poss�vel para n�o cair nessa, tentei me manter distante, fora da hist�ria”, pontua.
 
Julio Moura

Julio Moura diz que h� poucos livros sobre a gera��o de m�sicos que despontou no Nordeste na d�cada de 1970

P�rcio Leandro/divulga��o
 
 
A ideia de escrever a biografia de um grande nome da MPB vem de muitos anos, desde antes de Julio come�ar a trabalhar com o autor de “Tropicana”. A experi�ncia em cadernos de cultura de jornais e no setor de comunica��o de gravadoras alimentou esse desejo.

“Pulei muito de um lado para o outro do balc�o. Na �poca das gravadoras – estive na Biscoito Fino, por exemplo –, pensava em fazer a biografia do Paulo Vanzolini ou do Jards Macal�, mas quando comecei a trabalhar com Alceu, me deu o estalo: 'Opa, este � meu personagem'. Coleciono material a respeito dele desde ent�o”, explica.

Confian�a e sinal verde

Por sua vez, Alceu Valen�a conta que Moura s� o p�s a par da ideia h� cerca de tr�s anos. Deu o sinal verde para o projeto devido � confian�a no assessor. “Julio tinha participado das grava��es do filme que dirigi, 'A luneta do tempo' (2014), e lan�ou, logo em seguida, um livro contando os bastidores da produ��o. Quando ele me falou, depois, dessa hist�ria da biografia, aquiesci.”

Foram muitas as ruas pelas quais andaram lado a lado, comenta o compositor. “Ele foi comigo para S�o Bento do Una, viu tudo l�, as casas onde morei, a feira da cidade, important�ssima na minha carreira, porque me trouxe a cultura do sert�o profundo, com emboladores, violeiros e repentistas. Julio teve contato com a 'valen�ada' toda que ainda se encontra por l�, recebeu muitas informa��es desses parentes”, revela.
 

"Ele teve acesso a tudo de maneira muito natural. Brinco que Julio nasceu em S�o Bento do Una"

Alceu Valen�a, cantor e compositor

 

A fazenda da fam�lia foi outro ponto de refer�ncia. “� o lugar onde eu, quando crian�a, ficava ouvindo os aboiadores. Ele entrou no quarto do meu av� Orestes, que fazia cord�is, versos de viola e versos de improviso. Com tudo o que viu e ouviu em S�o Bento do Una, Julio conheceu a coisa primal minha, ficou sabendo de tudo.”

Depois de S�o Bento do Una, Alceu e a fam�lia se mudaram para Garanhuns, Recife, Olinda e Rio de Janeiro, com temporadas na Fran�a e nos Estados Unidos entremeando essas paragens.

“Julio foi v�rias vezes a Garanhuns, me acompanhando em festivais. Me viu indo para a esta��o de trem, viu o Col�gio Diocesano, onde estudei. Tamb�m esteve muitas vezes em Recife e Olinda”, pontua Alceu.

O bi�grafo conheceu amigos e vizinhos do m�sico em Olinda, onde ele costuma passar as f�rias. “Foram muitas conversas e hist�rias. Julio n�o gravou entrevista comigo, porque j� sabia de tudo. Era s� uma pergunta aqui, outra ali. A gente andando de carro ou de avi�o, tinha sempre uma prosa sobre minha trajet�ria, mas nada pautado. Eram conversas informais”, destaca.

Pesquisa detalhada

Escrever a biografia demandou vasta pesquisa documental tanto em acervos de jornais e revistas quanto nos arquivos da fam�lia Valen�a, explica Moura. Uma fonte importante foi o material levantado pela pesquisadora Patr�cia Pamplona para o filme “Alceu – Na embolada do tempo” (2019).

“� uma pesquisa com centenas de mat�rias sobre Alceu desde a d�cada de 1970, material precioso. Um aspecto que procurei ressaltar na biografia, ali�s, � o di�logo dele com o jornalismo cultural. Os jornalistas s�o personagens dessa narrativa. Al�m da pesquisa da Patr�cia, tenho sido espectador privilegiado das conversas de Alceu com a imprensa, o que me permitiu resgatar coisas de que nem ele se lembrava”, aponta.

O cantor e compositor acompanhou o trabalho diligente do assessor no sentido de escarafunchar o ba� de guardados sobre seu percurso. Moura chegou a conhecer a m�e de Alceu, Adelma, a guardi� do acervo do filho.

“Depois que minha m�e morreu, minha irm� Delminha ficou tomando conta do material. � uma coisa impressionante o que tem l�: o n�mero de discos que eu vendia, as cr�ticas que sa�am na imprensa, coisas de que eu nem tomava conhecimento. Minha irm� mostrou tudo para o Julio, retratos meus quando era pequeno, de quando jogava basquete, retratos da minha fam�lia. Ele teve acesso a tudo de maneira muito natural. Brinco que Julio nasceu em S�o Bento do Una”, ressalta.
 
Alceu Valença e Orquestra Ouro Preto fazem show

Parceria de Alceu Valen�a com Orquestra Ouro Preto, no projeto Valencianas, � abordada no livro

Rafael Motta/divulga��o
 

Conex�o mineira

O bi�grafo acompanhou a aproxima��o de Alceu com a Orquestra Ouro Preto, mediada por Paulo Rog�rio Lage, escritor, produtor e idealizador do concerto “Valencianas”.

“Julio conhece meu pessoal todo em Minas Gerais, conhece os bastidores do meu espet�culo com a Orquestra Ouro Preto”, diz. Moura comenta que Lage � o autor da apresenta��o de seu livro “A luneta do tempo”.

A biografia traz resenhas, cr�ticas de discos, passagens engra�adas, dificuldades, o sucesso e problemas com a ditadura. Alceu ficou preso por uma noite, no final dos anos 1960, quando cursava a faculdade de direito no Recife.
 
O curso de ver�o em Harvard foi decisivo para Alceu. “Depois da pris�o, Alceu vai para os Estados Unidos como estudante de direito, mas j� com a verve do artista. Chegando l�, puxa o viol�o e vai tocar nas ruas. Era �poca do (festival) Woodstock, os hippies se identificam com aquela figura, com aquele som, e se juntam em torno dele para cantar e dan�ar. Alceu come�a a fazer isso direto , at� que um dia vai l� um jornalista conversar com ele”, relembra.

Moura afirma que n�o houve censura ou veto por parte do biografado. Por�m, isso n�o significa aus�ncia de diverg�ncias. “N�o teve, em momento algum, o 'n�o vamos falar disso', mas houve, sim, pontos de que ele discordava. Nesses casos, abri espa�o para o contradit�rio. Como tem muita coisa documentada em jornal, pude trabalhar com vis�o divergente da dele”, ressalta.
 

"Ruy Castro, refer�ncia no g�nero, disse que se voc� conviveu com seu biografado, ent�o n�o � biografia, mas livro de mem�rias. Fiz o poss�vel para n�o cair nessa"

Julio Moura, jornalista

 

Psicodelia nordestina

Exemplo disso � a presen�a de Alceu na cena musical de Pernambuco no in�cio dos anos 1970. “Ele diz que n�o fez parte do movimento psicod�lico nordestino. N�o se sente, de modo algum, participante dessa cena, que foi muito importante, muito forte. Mas Paulo Rafael, o 'maestro' de Alceu durante mais de 40 anos, emergiu desse ambiente. � quase uma conven��o a liga��o de Alceu com a psicodelia nordestina, mas ele refuta isso categoricamente”, aponta.

O jornalista destaca tamb�m o envolvimento do biografado com a pol�tica. Durante a campanha pelas Diretas J�, Alceu prop�s a cria��o do Partido da M�sica Brasileira, fazendo articula��es que culminaram na reuni�o no apartamento de Chico Buarque, no Rio de Janeiro, com a participa��o de diversas personalidades n�o s� da �rea da m�sica, como Fernando Henrique Cardoso e Dias Gomes.

“Era uma coisa completamente ut�pica, mas reverberou e chegou a ganhar espa�o na imprensa. Alceu mal se lembrava dessa hist�ria”, diz Moura.

O biografado discordou de algumas an�lises de �poca ou da forma como alguns epis�dios foram tratados. “Pol�tica � uma coisa quente, especialmente em Pernambuco. Coloco sempre a vis�o do Alceu, mas sem deixar de trafegar por hist�rias mais espinhosas. Ele n�o gosta de se lembrar de algumas delas, o que � normal. Um amigo meu diz que a vida dele � um livro aberto com algumas p�ginas arrancadas”, pontua.

Moura conta que, no in�cio, estava imbu�do em fazer a “biografia definitiva” de Alceu, at� porque a gera��o dele foi pouco biografada. Os jornalistas Regina Echeverria e J.B. Medeiros escreveram, respectivamente, sobre Fagner e Belchior, e n�o se tem not�cia de mais livros sobre o grupo surgido a partir dos anos 1970 entre Pernambuco, Cear� e Para�ba.

“Meu editor falou para tirar da cabe�a essa hist�ria de biografia definitiva, at� porque o cara est� a�, num momento �timo da carreira, trabalhando. Ent�o, � s� uma biografia do Alceu. Outros poder�o fazer outras, aprofundando alguns pontos pelos quais passei superficialmente. O que me cabe agora � pensar que, talvez um dia, eu fa�a um livro de mem�rias sobre o conv�vio com ele”, diz.
 
Alceu diz que ainda n�o leu o livro, “s� um pedacinho”. Admite que, em algum momento, pode encarar a empreitada de escrever uma autobiografia, mas n�o cr� que isso seja necess�rio.

“� a vis�o de outra pessoa sobre mim, mas tenho certeza de que o livro � demais. Evidentemente, posso descobrir uma coisa ou outra que Julio n�o entendeu ou interpretou direito, porque o deixei livre para fazer como quisesse. Posso at�, depois, fazer minha autobiografia, mas n�o vou fazer n�o. Estou certo de que a dele � muito boa”, pondera.

Foto de Alceu Valença na capa do livro Pelas ruas que andei

Foto de Alceu Valen�a na capa do livro Pelas ruas que andei

Cepe/reprodu��o
“ALCEU VALEN�A – PELAS RUAS QUE ANDEI”

• De J�lio Moura
• Cepe Editora e Relic�rio Produ��es Culturais
• 592 p�ginas
• R$ 70