Robert Oppenheimer de chapéu em foto em preto e branco

Robert Oppenheimer de chap�u em foto em preto e branco

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Eram as primeiras horas do dia 16 de julho de 1945. Robert Oppenheimer esperava em um bunker de controle por um momento que mudaria o mundo.

A cerca de 10 km de dist�ncia dali, ocorreria o primeiro teste de uma bomba at�mica do mundo – o chamado teste Trinity – nas areias brancas do deserto de Jornada del Muerto, no Novo M�xico (Estados Unidos).

Oppenheimer era o retrato da exaust�o nervosa.

Ele sempre foi magro, mas tr�s anos como diretor do “Projeto Y” (o bra�o cient�fico do “Distrito de Engenharia de Manhattan”, que havia projetado e constru�do a bomba) fizeram com que seu peso ca�sse para apenas 52 kg. E, com 1,78 m de altura, ele parecia extremamente magro.

Naquela noite, Oppenheimer havia dormido apenas quatro horas. Sua ansiedade e a tosse causada pelo fumo o mantiveram acordado.

Aquele dia em 1945 � um dos diversos momentos importantes da vida de Robert Oppenheimer descritos pelos historiadores Kai Bird e Martin J. Sherwin na sua biografia American Prometheus (“Oppenheimer: O triunfo e a trag�dia do Prometeu americano, Ed. Intr�nseca, 2023), publicada em 2005. O livro foi a base do novo filme biogr�fico Oppenheimer, que estreia no Brasil e nos Estados Unidos em julho.

Nos minutos finais da contagem regressiva, segundo Bird e Sherwin, um general do Ex�rcito observou o estado de esp�rito de Oppenheimer bem de perto: “o Dr. Oppenheimer... ficou mais tenso quando soaram os �ltimos segundos. Ele mal respirava...”

A explos�o ofuscou o sol. Com pot�ncia equivalente a 21 mil toneladas de TNT, aquela foi a maior detona��o j� observada. Ela criou uma onda de choque que foi sentida a 160 km de dist�ncia.

 

Enquanto o estrondo tomava conta do cen�rio e a nuvem em forma de cogumelo subia no c�u, a express�o de Oppenheimer ficava relaxada, em sinal de “tremendo al�vio”. E, minutos depois, seu amigo e colega Isidor Rabi pode observ�-lo � dist�ncia.

“Nunca esquecerei seus passos; nunca esquecerei a forma como ele saiu do carro...”, contou ele. “Seu andar era como [no filme] Matar ou Morrer... empertigado daquela forma. Ele havia conseguido.”

Em entrevistas concedidas nos anos 1960, Oppenheimer acrescentou ainda mais seriedade � sua rea��o. Ele afirmou que, nos momentos ap�s a detona��o, veio � sua mente um verso do Bhagavad Gita, o livro sagrado do hindu�smo: “Agora, eu me tornei a morte, o destruidor de mundos.”


%u2018The Gadget%u2019 (%u2018O Dispositivo%u2019), colocado no alto de uma torre para o teste Trinity em 1945

%u2018The Gadget%u2019 (%u2018O Dispositivo%u2019) foi colocado no alto de uma torre para o teste Trinity em 1945, a primeira bomba nuclear detonada no planeta.

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Nos dias que se seguiram, seus amigos relataram que ele parecia cada vez mais deprimido.

“Robert ficou muito quieto e ruminando durante aquelas duas semanas”, relembrou um deles, “porque ele sabia o que estava para acontecer.”

Certa manh�, ele foi ouvido lamentando (em termos condescendentes) o inevit�vel destino dos japoneses: “aquelas pobres pessoas, aquelas pobres pessoas”, dizia ele. Mas, poucos dias depois, ele estava novamente nervoso, concentrado e rigoroso.

Em uma reuni�o com seus colegas militares, ele parecia ter esquecido tudo sobre as “pobres pessoas”. Bird e Sherwin relatam que, na verdade, ele estava concentrado na import�ncia das condi��es certas para o lan�amento da bomba.

“� claro que eles n�o devem lan��-la na chuva ou na neblina... n�o os deixem deton�-la alto demais”, instru�a ele. “A ilustra��o colada nela � exatamente o certo. N�o deixem que ela suba [mais alto] ou o alvo n�o sofrer� tantos danos.”

Quando ele anunciou a uma multid�o de colegas o sucesso do bombardeio em Hiroshima, no Jap�o, menos de um m�s depois do teste Trinity, um observador notou a forma com que Oppenheimer “apertava e movia sua m�o sobre a cabe�a, como um pugilista vitorioso” – tudo ao som de entusi�sticos aplausos.

O 'enigma'

Robert Oppenheimer (1904-1967) era o cora��o intelectual e emocional do Projeto Manhattan, que produziu a primeira bomba at�mica. Mais do que qualquer outra pessoa, ele fez da bomba uma realidade.

Seu colega Jeremy Bernstein trabalhou com Oppenheimer depois da guerra e ficou convencido de que ningu�m mais poderia ter desenvolvido aquele projeto. Em sua biografia publicada em 2004, Portrait of an Enigma (“Retrato de um enigma”, em tradu��o livre), ele escreveu:

“Se Oppenheimer n�o tivesse sido diretor em Los Alamos [o laborat�rio onde a bomba at�mica foi desenvolvida], tenho a certeza de que, para o bem ou para o mal, a Segunda Guerra Mundial teria terminado... sem o uso de armas nucleares.”

A variedade das rea��es de Oppenheimer que foram relatadas enquanto ele presenciava o resultado dos seus trabalhos pode parecer desconcertante – sem falar na velocidade com que ele mudava de uma rea��o para outra.

� dif�cil esquadrinhar em uma �nica pessoa essa combina��o de fragilidade nervosa, ambi��o, grandiosidade e pessimismo m�rbido, especialmente por se tratar de algu�m t�o instrumental para o pr�prio projeto que despertou essas rea��es.

Bird e Sherwin tamb�m chamam Oppenheimer de “enigma”: “um f�sico te�rico que exibia as qualidades carism�ticas de um grande l�der e cultivador da est�tica e de ambiguidades”, segundo eles.

Oppenheimer era um cientista, mas tamb�m, segundo descreveu outro amigo, “um manipulador da imagina��o de primeira classe”.

Pelo relato de Bird e Sherwin, as contradi��es do car�ter de Oppenheimer – as qualidades que seus amigos e bi�grafos tiveram dificuldade de explicar – parecem ter estado presentes desde o in�cio da vida.

O f�sico nasceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 1904, filho de imigrantes judeus alem�es de primeira gera��o que ganharam dinheiro com o com�rcio de tecidos.

A fam�lia morava em um grande apartamento no lado superior oeste de Manhattan, com tr�s empregadas e um motorista. Obras de arte europeias adornavam as paredes da resid�ncia.

Mesmo com essa cria��o luxuosa, seus amigos de inf�ncia relembravam Oppenheimer como uma crian�a generosa e que n�o era mimada.

Sua amiga de escola Jane Didisheim lembrava-se dele como algu�m que “ficava corado com extraordin�ria facilidade”, era “muito fr�gil, tinha o rosto muito rosado, muito t�mido...”, mas era tamb�m “muito brilhante”.

“Todos perceberam com muita rapidez que ele era superior e diferente de todos os demais”, contou ela.

Com nove anos de idade, o pequeno Oppenheimer lia filosofia em grego e latim e era obcecado por mineralogia. Ele passeava pelo Central Park e escrevia cartas para o Clube de Mineralogia de Nova York sobre o que encontrava.

Suas cartas eram t�o competentes que o clube pensou que ele fosse adulto e o convidou para dar uma palestra.

Essa natureza intelectual gerou um certo grau de solid�o para o jovem Oppenheimer, segundo Bird e Sherwin. “Ele estava frequentemente apreensivo com o que quer que estivesse fazendo ou pensando”, relembrou um amigo.

Oppenheimer n�o se preocupava em adequar-se �s expectativas de g�nero. Ele n�o se interessava por esportes, nem pelas “confus�es e dificuldades inerentes � sua faixa et�ria”, segundo seu primo. “Ele era provocado e ridicularizado com frequ�ncia por n�o ser como seus colegas.”

Mas seus pais tinham certeza de que ele era um g�nio.

“Retribu� a confian�a dos meus pais em mim desenvolvendo um ego desagrad�vel”, comentou Oppenheimer posteriormente, “o que certamente deve ter afrontado as crian�as e os adultos que tiveram a infelicidade de entrar em contato comigo.”

“N�o � engra�ado virar as p�ginas de um livro e dizer ‘sim, sim, � claro, eu sei disso’”, comentou ele certa vez com outro amigo.

Quando saiu de casa para estudar qu�mica na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, a prec�ria estrutura psicol�gica de Oppenheimer ficou exposta. Sua fr�gil arrog�ncia e sensibilidade pouco disfar�ada, aparentemente, tinham pouca utilidade para ele.

Em uma carta de 1923, publicada em uma cole��o de 1980 editada por Alice Kimbal Smith e Charles Weiner, ele escreveu:

“Trabalho e escrevo in�meras teses, observa��es, poemas, contos e inutilidades... crio mau cheiro em tr�s laborat�rios diferentes... sirvo ch� e falo com conhecimento para algumas almas perdidas, saio no fim de semana para destilar a energia negativa na forma de risadas e exaust�o, leio grego, cometo gafes, procuro cartas na minha mesa e desejo que estivesse morto. Voil�.”

Cartas posteriores reunidas por Smith e Weiner revelam que os problemas prosseguiram ao longo da sua p�s-gradua��o em Cambridge, no Reino Unido. O tutor de Oppenheimer insistia em aplicar trabalho de laborat�rio, o que era uma das fraquezas do cientista.

“Estou tendo momentos bastante ruins”, escreveu ele em 1925. “O trabalho no laborat�rio � terrivelmente ma�ante e sou t�o ruim nele que � imposs�vel sentir que estou aprendendo alguma coisa.”

Ainda naquele ano, a intensidade de Oppenheimer quase causou um desastre, quando ele deixou deliberadamente uma ma�� envenenada com subst�ncias qu�micas do laborat�rio na mesa do seu tutor. Seus amigos especularam posteriormente que sua a��o pode ter sido causada por inveja e sentimentos de inadequa��o.

O tutor n�o comeu a ma��, mas a vaga de Oppenheimer em Cambridge ficou amea�ada. Ele s� foi mantido sob a condi��o de consultar um psiquiatra. O m�dico diagnosticou psicose, mas depois deu alta ao f�sico, afirmando que o tratamento n�o traria benef�cios.

Relembrando esse per�odo, Oppenheimer contaria mais tarde que considerou seriamente a possibilidade de suicidar-se na �poca do Natal daquele ano.

No ano seguinte, durante uma viagem a Paris, seu amigo pr�ximo Francis Fergusson contou a ele que havia pedido sua namorada em casamento. Oppenheimer reagiu tentando estrangul�-lo.

“Ele pulou em cima de mim por tr�s com uma al�a de bagagem”, relembrou Fergusson, “e a enrolou no meu pesco�o... Consegui sair de lado e ele caiu no ch�o, chorando.”

Ci�ncia e poesia

Aparentemente, quando a psiquiatria n�o era suficiente para Oppenheimer, a literatura vinha em seu aux�lio.

Segundo Bird e Sherwin, ele leu Em Busca do Tempo Perdido, do escritor franc�s Marcel Proust (1871-1922), durante um feriado na C�rsega (It�lia). No livro, ele encontrou um pouco de reflex�o sobre o seu pr�prio estado de esp�rito, o que o tranquilizou, abrindo espa�o para um modo de ser mais solid�rio.

Ele decorou um trecho do livro sobre a “indiferen�a aos sofrimentos causados”, que � uma “forma terr�vel e permanente de crueldade”. Essa quest�o do comportamento em rela��o ao sofrimento se tornaria um interesse permanente para Oppenheimer, orientando suas prefer�ncias sobre textos filos�ficos e espirituais por toda a vida – o que teria papel importante no trabalho que definiria sua carreira.

Naquelas mesmas f�rias, ele fez um coment�rio para seus amigos que parecia prof�tico: “o tipo de pessoa que mais admiro � aquela que se torna extraordinariamente boa em fazer muitas coisas, mas ainda mant�m o semblante marcado pelas l�grimas”.

Oppenheimer voltou para Cambridge com o esp�rito mais leve e sentindo-se “muito mais gentil e mais tolerante”, como ele pr�prio relembraria mais tarde.

No in�cio de 1926, ele conheceu o diretor do Instituto de F�sica Te�rica da Universidade de G�ttingen, na Alemanha, que se convenceu rapidamente dos talentos de Oppenheimer como te�rico e o convidou para estudar ali.

Posteriormente, Oppenheimer descreveria 1926 como o ano da sua “entrada na f�sica”, segundo Smith e Weiner. E, de fato, aquele ano acabou representando uma reviravolta.

Ele conseguiu seu t�tulo de PhD e cursou p�s-doutorado no ano seguinte. O f�sico tamb�m passou a fazer parte de uma comunidade que estava liderando o desenvolvimento da f�sica te�rica, conhecendo cientistas que se tornariam amigos de toda a vida. Muitos acabariam trabalhando com ele em Los Alamos.

O professor


Robert Oppenheimer com cachimbo na boca em foto em preto e branco

Robert Oppenheimer lia de tudo, desde poesia at� filosofia oriental

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De volta aos Estados Unidos, Oppenheimer passou alguns meses em Harvard antes de se mudar em busca de sua carreira de f�sico na Calif�rnia.

O tom das suas cartas daquele per�odo reflete uma mentalidade mais firme e generosa. Ele escreveu para seu irm�o mais novo sobre romance e seu cont�nuo interesse em artes.

Na Universidade da Calif�rnia em Berkeley, o f�sico trabalhou ao lado de experimentalistas, interpretando seus resultados sobre raios c�smicos e desintegra��o nuclear. Posteriormente, ele descreveu ter descoberto que era “o �nico que compreendia do que tudo isso se tratava”.

Ele acabou criando um departamento, levado, segundo ele, pela necessidade de comunicar a teoria que ele amava.

“Explicar primeiro para a faculdade, os funcion�rios e colegas e, depois, para quem quiser ouvir... o que aprendi, quais eram os problemas n�o resolvidos”, contou ele.

Oppenheimer descrevia a si pr�prio como um professor inicialmente “dif�cil”, mas foi com esse cargo que ele aperfei�oou o carisma e a presen�a social que o conduziriam durante sua passagem pelo Projeto Y.

Citado por Smith e Weiner, um colega relembrou como seus alunos “o imitavam o melhor que podiam. Eles copiavam seus gestos, seus maneirismos, suas entona��es. Ele realmente influenciou a vida deles.”

A filosofia hindu

No in�cio dos anos 1930, enquanto desenvolvia sua carreira acad�mica, Oppenheimer continuou a explorar as ci�ncias humanas.

Foi nesse per�odo que ele descobriu os textos hindus. Ele aprendeu s�nscrito para ler o Bhagavad Gita no idioma original. Foi dali que extrairia a famosa cita��o “agora, eu me tornei a morte”.

Parece que seu interesse n�o era apenas intelectual, mas a continua��o da biblioterapia que ele havia receitado a si mesmo a partir da leitura de Proust, quando ele tinha pouco mais de 20 anos de idade.

A hist�ria do Bhagavad Gita, baseada na guerra entre dois ramos de uma fam�lia aristocr�tica, ofereceu a Oppenheimer uma base filos�fica que se aplicava diretamente � ambiguidade moral confrontada por ele no Projeto Y.

O livro enfatiza as ideias de dever, destino e distanciamento dos resultados, destacando que o medo das consequ�ncias n�o pode ser usado como justificativa para a falta de a��o.

Em uma carta ao seu irm�o em 1932, Oppenheimer faz refer�ncia espec�fica ao Bhagavad Gita e indica a guerra como uma circunst�ncia que poderia oferecer a oportunidade de colocar essa filosofia em pr�tica:

“Acredito que, por meio da disciplina... podemos atingir a serenidade... Acredito que, por meio da disciplina, aprendemos a preservar o que � essencial para a nossa felicidade em circunst�ncias cada vez mais adversas...”, escreveu ele.

“Portanto, acho que tudo aquilo que evoca a disciplina: o estudo e nossos deveres para com os homens e a comunidade, a guerra... deve ser acolhido por n�s com profunda gratid�o; pois, somente com isso, podemos atingir o m�nimo de desapego; e, s� assim, podemos conhecer a paz.”

Em meados dos anos 1930, Oppenheimer tamb�m conheceu a f�sica e psiquiatra Jean Tatlock (1914-1944), por quem se apaixonou.

Segundo o relato de Bird e Sherwin, Tatlock tinha um car�ter t�o complexo quanto o de Oppenheimer. Em grande parte, ela era compreendida e dirigida por sua consci�ncia social. Um amigo de inf�ncia descreveu Tatlock como tendo sido “tocada pela grandeza”.

Oppenheimer pediu Tatlock em casamento mais de uma vez, mas ela recusou. Acredita-se que ela o tenha apresentado a pol�ticos radicais e � poesia do ingl�s John Donne (1572-1631).

Os dois continuaram a se ver ocasionalmente depois que Oppenheimer se casou com a bi�loga Katherine “Kitty” Harrison (1910-1972) em 1940. Harrison trabalharia com Oppenheimer no Projeto Y como flebotomista, pesquisando os perigos da radia��o.


Robert Oppenheimer em momento de descontração com a família na praia em foto em preto e branco

Robert Oppenheimer em momento de descontra��o com a fam�lia. Sua esposa, Katherine %u2018Kitty%u2019 Harrison, era bi�loga e trabalhou com ele no Projeto Y

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Surge o Projeto Manhattan

Em 1939, os f�sicos estavam muito mais preocupados com a amea�a nuclear do que os pol�ticos. Foi uma carta de Albert Einstein que chamou a aten��o dos principais l�deres do governo americano para o assunto.

A rea��o foi lenta, mas o alarme continuou a soar na comunidade cient�fica, at� que o presidente americano Franklin D. Roosevelt (1882-1945) foi convencido a agir. E, como um dos principais f�sicos do pa�s, Oppenheimer esteve entre os diversos cientistas indicados para come�ar a examinar com mais seriedade o potencial das armas nucleares.

Em setembro de 1942, gra�as, em parte, � equipe de Oppenheimer, ficou claro que a bomba era poss�vel e os planos concretos para o seu desenvolvimento come�aram a tomar forma.

Bird e Sherwin contam que, quando ouviu que seu nome estava sendo sugerido para liderar a empreitada, Oppenheimer come�ou suas pr�prias prepara��es.

“Estou eliminando todas as conex�es com comunistas”, disse ele a um amigo na �poca. “Porque, se n�o o fizer, o governo ter� dificuldade de me usar. N�o quero deixar que nada interfira com minha utilidade para a na��o.”

Einstein afirmaria posteriormente que “o problema de Oppenheimer � que ele ama [algo que] n�o o ama – o governo dos Estados Unidos”. E, de fato, seu patriotismo e o desejo de agradar claramente influenciaram seu recrutamento.

O general Leslie Groves (1896-1970), l�der militar do Distrito de Engenharia de Manhattan, era o respons�vel por encontrar um diretor cient�fico para o projeto da bomba. Uma biografia de 2002, Racing for the Bomb (“A corrida para a bomba”, em tradu��o livre), afirma que Groves enfrentou oposi��o quando prop�s que Oppenheimer fosse esse l�der cient�fico.

Os “antecedentes extremamente liberais” de Oppenheimer eram uma preocupa��o. Mas, al�m de observar seu talento e seu conhecimento da ci�ncia, Groves tamb�m destacou sua “arrogante ambi��o”.

“Eu me convenci de que n�o s� ele era leal, mas que n�o deixaria que nada interferisse com o desempenho bem sucedido da sua tarefa e, portanto, com o seu lugar na hist�ria da ci�ncia”, declarou o chefe de seguran�a do Projeto Manhattan.

No livro The Making of the Atomic Bomb (“A fabrica��o da bomba at�mica”, em tradu��o livre), de 1988, o amigo de Oppenheimer Isidor Rabi (1898-1988) � citado dizendo que esta era “uma nomea��o muito improv�vel”, mas ele concordou posteriormente que havia sido “um verdadeiro golpe de g�nio da parte do general Groves”.


Robert Oppenheimer analisando com o general Leslie Groves os restos da torre de aço após o teste Trinity em foto em preto e branco

Robert Oppenheimer examina com o general Leslie Groves os restos da torre de a�o ap�s o teste Trinity

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Em Los Alamos, Oppenheimer aplicou suas convic��es interdisciplinares diferenciadas da mesma forma que em outros lugares. Na sua autobiografia de 1979, What Little I Remember (“O pouco de que me lembro”, em tradu��o livre), o f�sico austr�aco de nascimento Otto Frisch (1904-1979) relembrou que Oppenheimer havia recrutado n�o s� os cientistas necess�rios, mas tamb�m “um pintor, um fil�sofo e alguns outros personagens improv�veis; ele sentia que uma comunidade civilizada seria incompleta sem eles”.

Sangue nas m�os

Depois da guerra, o comportamento de Oppenheimer aparentemente sofreu mudan�as.

Ele descreveu as armas nucleares como instrumentos “de agress�o, de surpresa e de terror” e a ind�stria das armas como “o trabalho do dem�nio”.

Em uma reuni�o em outubro de 1945, ele disse ao ent�o presidente norte-americano Harry S. Truman (1884-1972) a frase que ficou famosa: “sinto que tenho sangue nas m�os”. Truman depois declarou: “eu disse a ele que o sangue estava nas minhas m�os – e que eu deveria me preocupar com aquilo”.

Este di�logo � uma repeti��o surpreendente de outra cita��o do Bhagavad Gita, entre o pr�ncipe Arjuna e o deus Krishna.

Quando Arjuna se recusa a lutar porque acredita que ser� respons�vel pelo assassinato dos seus companheiros, Krishna retira o fardo dos seus ombros, dizendo: “Veja em mim o real assassino desses homens... Ergue-te sobre a fama, sobre a vit�ria, sobre a feliz inten��o real. Eles j� est�o mortos por mim; seja voc� o meu instrumento.”

Durante o desenvolvimento da bomba, Oppenheimer havia usado um argumento similar para aplacar as hesita��es �ticas dos colegas e as suas pr�prias.

Ele disse que, como cientistas, eles n�o eram respons�veis pelas decis�es sobre a forma de uso da arma, mas apenas por fazer o seu trabalho. O sangue, se houvesse, estaria nas m�os dos pol�ticos.

Mas, aparentemente, quando a fa�anha foi alcan�ada, a confian�a de Oppenheimer sobre essa posi��o ficou abalada. Bird e Sherwin relatam que, no seu cargo na Comiss�o de Energia At�mica no per�odo do p�s-guerra, ele combateu o desenvolvimento de outras armas, incluindo a bomba de hidrog�nio, mais poderosa, cujo caminho havia sido aberto pelo seu pr�prio trabalho.

Estes esfor�os fizeram com que Oppenheimer fosse investigado pelo governo americano em 1954 e tivesse sua licen�a de seguran�a cancelada, encerrando seu envolvimento no trabalho pol�tico.

A comunidade acad�mica saiu em sua defesa. No jornal The New Republic, em 1955, o fil�sofo Bertrand Russel (1872-1970) comentou que a “investiga��o tornou ineg�vel que ele cometeu erros, um deles com gravidade do ponto de vista de seguran�a. Mas n�o houve provas de deslealdade, nem de nada que pudesse ser considerado trai��o... Os cientistas foram pegos em um tr�gico dilema.”

Em 1963, o governo dos Estados Unidos concedeu a Oppenheimer o Pr�mio Enrico Fermi, como gesto de reabilita��o pol�tica. Mas foi apenas em 2022, 55 anos depois da sua morte, que o governo americano reverteu sua decis�o de 1954 de cancelar sua licen�a e reafirmou a lealdade do f�sico.

Nas �ltimas d�cadas da vida de Oppenheimer, ele manteve express�es paralelas de orgulho pelas conquistas t�cnicas da bomba e de culpa pelos seus efeitos.

Seus coment�rios tamb�m demonstravam resigna��o. Ele afirmou mais de uma vez que a bomba era simplesmente inevit�vel.

Robert Oppenheimer passou seus �ltimos 20 anos de vida como diretor do Instituto de Estudos Avan�ados da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, trabalhando ao lado de Einstein e de outros f�sicos.


Oppenheimer sentado ao lado de Albert Einstein em foto em preto e branco

'O problema de Oppenheimer � que ele ama [algo] que n�o o ama %u2013 o governo dos Estados Unidos' (Albert Einstein, 1879-1955).

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A influ�ncia das ci�ncias humanas

Em Los Alamos, Oppenheimer dedicou-se � promo��o do trabalho interdisciplinar.

Nas suas palestras, ele enfatizava a convic��o de que as ci�ncias exatas precisavam das humanas para melhor compreender suas pr�prias implica��es, segundo Bird e Sherwin. Para isso, ele recrutou um grupo de especialistas em ci�ncias humanas, que inclu�a estudiosos dos cl�ssicos, poetas e psic�logos.

Mais tarde, ele veio a considerar a energia at�mica como um problema que superava as ferramentas intelectuais da sua �poca. Como disse o presidente Truman, era “uma nova for�a, revolucion�ria demais para considerar a estrutura das velhas ideias”.

Em uma palestra de 1965, publicada posteriormente na cole��o Uncommon Sense (“Senso incomum”, em tradu��o livre), de 1984, ele afirmou: “ouvi de alguns dos grandes homens do nosso tempo que, quando eles encontravam algo brilhante, sabiam que era bom porque tinham medo”.

Ao comentar sobre os momentos de descobertas cient�ficas perturbadoras, Oppenheimer adorava citar John Donne: “est� tudo em peda�os, toda a coer�ncia se perdeu”.

O cientista tamb�m admirava outro poeta ingl�s, John Keats (1795-1821), que cunhou a express�o “capacidade negativa” para descrever uma qualidade comum nas pessoas que ele admirava: “quando um homem � capaz de enfrentar incertezas, mist�rios e d�vidas, sem qualquer sinal de irrita��o depois de [procurar por] fatos e raz�es”.

Aparentemente, era algo que Russell estava descobrindo quando escreveu sobre Oppenheimer e sua “incapacidade de ver as coisas com simplicidade, uma incapacidade que n�o � surpreendente em algu�m com um aparelho mental complexo e delicado”.

Quando descrevemos as contradi��es de Oppenheimer, sua mutabilidade, sua cont�nua altern�ncia entre a poesia e a ci�ncia e seu h�bito de desafiar as descri��es simples, talvez estejamos identificando as pr�prias qualidades que possibilitaram a ele a busca pela cria��o da bomba.

Mesmo em meio �quela importante e terr�vel tarefa, Oppenheimer manteve vivo o “semblante marcado pelas l�grimas” que ele havia previsto com pouco mais de 20 anos de idade.

Acredita-se que o nome do teste Trinity tenha vindo do poema de John Donne intitulado Bate em Meu Cora��o, Deus de Trina Pessoa:

“Para que eu possa me levantar e permanecer de p�, derruba-me e inflige

Tua for�a para partir, golpear, queimar e me renovar.”

Jean Tatlock, que apresentou Donne a Oppenheimer – e por quem, segundo acreditam alguns, ele teria permanecido apaixonado –, cometeu suic�dio no ano anterior ao teste.

O projeto da bomba foi totalmente marcado pela imagina��o do f�sico e pelo seu sentido de romance e trag�dia. Talvez fosse a “arrogante ambi��o” identificada pelo general Groves durante a entrevista de emprego de Oppenheimer para o Projeto Y, ou talvez sua capacidade de adotar, pelo tempo que fosse necess�rio, a ideia dessa ambi��o arrogante.

Al�m de resultado das pesquisas cient�ficas, a bomba foi tamb�m produto da capacidade e da disposi��o de Oppenheimer de imaginar-se como o tipo de pessoa que poderia fazer a arma acontecer.

Fumante inveterado desde a adolesc�ncia, Oppenheimer sofreu epis�dios de tuberculose ao longo da vida. Ele morreu de c�ncer da garganta em 1967, com 62 anos de idade.

Em um raro momento de simplicidade, dois anos antes da morte, o f�sico tra�ou uma distin��o entre a pr�tica da ci�ncia e a poesia.

Ao contr�rio da poesia, segundo ele, “a ci�ncia � a arte de aprender a n�o cometer o mesmo erro duas vezes”.

O filme

Com lan�amento em julho no Brasil e nos Estados Unidos, o filme Oppenheimer � baseado no livro vencedor do pr�mio Pulitzer, Oppenheimer: O triunfo e a trag�dia do Prometeu americano (Ed. Intr�nseca, 2023).

O ator Cillian Murphy interpreta Robert Oppenheimer. O filme tamb�m retrata diversas outras pessoas reais, como o general Leslie Groves (interpretado por Matt Damon), que recrutou Oppenheimer, al�m de figuras da sua vida pessoal, como a psiquiatra Jean Tatlock (Florence Pugh), que namorou o f�sico nos anos 1930, e sua esposa Kitty Oppenheimer (Emily Blunt).

Ben Platts-Mills � escritor e artista. Seu trabalho investiga o poder, o racioc�nio, a vulnerabilidade e como a ci�ncia � representada na cultura popular. Seu livro Tell Me The Planets (“Conte-me sobre os planetas”, em tradu��o livre) foi publicado em 2018 e sua conta no Instagram � @benplattsmills.

Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.