'O milagre do afeto' est� em cartaz no palco do Galp�o Cine Horto
O palha�o Garniz� volta � cena depois do AVC que afetou sua vis�o, mem�ria e movimentos. Guiado pela poesia, ele contracena com os filhos Gergilin e Rabisco
Francisco Dornellas, ladeado pelos filhos, retoma o nariz vermelho de palha�o ap�s escapar da morte
�tallo Vieira/divulga��o
'Meu pai ficou cego de um olho, anda cambaleando, tem lapsos de mem�ria - enfim, uma s�rie de dificuldades. Mesmo assim, est� com uma pilha enorme, com muita anima��o em cena'
Victor Dornellas, palha�o Rabisco
A costura de palha�aria, poesia, magia, supera��o, afeto, astrologia e hist�ria de vida forma o espet�culo “Ligados em uma nota de sol”, da Trupe Garniz�, integrada pelos palha�os Garniz�, Gergilin e Rabisco - ou seja, Francisco Dornellas e os filhos, Daniel e Victor. Em cartaz no Galp�o Cine Horto at� o pr�ximo domingo (27/8), a montagem � dirigida por Rafael Protzner.
“Ligados em uma nota de sol” come�ou a surgir a partir do livro “Escrevivido”, lan�ado no ano passado (com poemas de Francisco Dornellas), e da interven��o realizada pela fam�lia circense na Comunidade Espiritualista Crist� da Doutrina do Santo Daime C�u da Divina Estrela.
O impulso inicial, no entanto, remonta h� mais tempo e se relaciona a um epis�dio dram�tico. Em 2017, Francisco, ent�o com 71 anos, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) isqu�mico e hemorr�gico. Victor Dornellas conta que foi “milagre” o pai ter sobrevivido. O veterano artista escapou da morte, mas ficou com parte da capacidade motora comprometidas, al�m de sequelas na vis�o, audi��o e mem�ria.
Escrita e cura
Foi um longo processo de recupera��o. “Contratamos fisioterapeuta, mas ele se deprimiu seriamente, porque ficou com o lado direito do corpo paralisado. Apesar de nunca ter publicado nada, meu pai � poeta h� mais de 40 anos. O que o ajudou, mesmo, foi voltar a escrever, depois de aprender a fazer isso com a m�o esquerda. A retomada da escrita acabou resultando no 'Escrevivido', que conseguimos lan�ar gra�as a financiamento coletivo”, diz.
Em setembro do ano passado, a fam�lia foi convidada pela Comunidade C�u da Divina Estrela para realizar um trabalho xam�nico ancorado na palha�aria. “Era o ritual da fogueira, na madrugada. Quando o dia estava amanhecendo, entramos caracterizados como os palha�os Rabisco, que sou eu, Gergilin, meu irm�o, e Garniz�”, conta Victor. A experi�ncia ao nascer do dia explica o t�tulo do espet�culo.
Palha�o Garniz� lan�a o livro de poesia "Entrevividos", escrito com a m�o esquerda
�tallo Vieira/divulga��o
Tendo como eixo os poemas de “Escrevivido”, a interven��o foi filmada e o v�deo encaminhado para o Festival de Cenas Curtas do Galp�o Cine Horto. Material aprovado, a dire��o do esquete coube a Rafael Protzner, que havia ministrado oficinas e cursos dos quais a trupe eventualmente participava. A cena “Ligados em uma nota de sol” venceu o festival, credenciando-se para o projeto Cena Espet�culo e obtendo financiamento para que fosse desenvolvida.
O palha�o poeta
Na trama, uma fam�lia de palha�os monta o Circo do Amanhecer. O pai, de idade mais avan�ada, escreve suas mem�rias antes que as esque�a. A partir da�, poemas brotam de corpos, l�nguas e indument�ria da Trupe Garniz�.
De acordo com Victor Dornellas, a poesia brotou, na verdade, da constru��o c�nica singela que buscava um caminho para a cura. “No dia daquele trabalho xam�nico, estabeleceu-se o lugar do palha�o poeta. A cena nasceu naquele momento, nasceu ali tamb�m o palha�o Paj� Garniz� C�mico de Cura, porque meu pai tamb�m � terapeuta corporal, trabalha com medicinas alternativas”, diz.
Um dos pacientes de Francisco Dornellas, ali�s, foi o diretor e dramaturgo Eid Ribeiro, que acabou assinando a consultoria c�nica do espet�culo da trupe.
“Mesmo com os recursos limitados que o Galp�o Cine Horto tem condi��o de prover, a gente conseguiu reunir uma equipe muito legal”, diz Victor. Por meio dos poemas de Francisco Dornellas, “Ligados em uma nota de sol” perpassa temas como a passagem do tempo.
“Tem a coisa simb�lica de ele entregar o chap�u para mim e a bengala para o meu irm�o ao final do espet�culo”, destaca Victor, o palha�o Rabisco.
Os irm�os Gergelin e Rabisco conduzem o jogo c�nico guiados por improviso, poesia e carinho
�tallo Vieira/divulga��o
Al�m da quest�o do tempo, o espet�culo se sustenta sobre outros dois pilares: o cruzamento da poesia com a palha�aria e os la�os familiares. “A montagem funciona como se fosse os bastidores de uma fam�lia abertos ao p�blico. � uma coisa mais �ntima, que abra�a a inst�ncia do afeto e do cuidado entre pai e filhos”, pontua.
A montagem apresenta um enredo. A hist�ria parte do raiar do dia em que Rabisco e Gergilin tentam organizar o lan�amento do livro de Garniz�. Ao final da sess�o, � montada a banquinha para a venda de “Escrevivido”.
“O espet�culo � sobre esse lan�amento. Sou o palha�o mais pr�tico, preocupado com a organiza��o de tudo, enquanto o Gergilin � mais relaxado. Tem um momento em que somos s� n�s dois em cena. Eu meio pilhado, preocupado, e a gente acaba fumando um poema e ficando doid�o de poesia. A hist�ria � a viv�ncia da fam�lia”, diz.
O enredo � constantemente atravessado por imprevistos, devido �s limita��es de Francisco. “A gente lida com isso se valendo da pr�pria linguagem do palha�o. N�o o corrigimos em cena em momento algum, o erro � muito bem-vindo”, diz Victor.
“Meu pai ficou cego de um olho, anda cambaleando, tem lapsos de mem�ria – enfim, uma s�rie de dificuldades. Mesmo assim, est� com uma pilha enorme, com muita anima��o em cena. E n�s estamos neste novo lugar do entendimento do prazer de estar em cena. Cada um com seu potencial, fazendo o melhor que pode”, ressalta.
Garniz� brinca com as pr�prias limita��es, descobrindo novas possibilidades de fazer gra�a. Rafael Protzner explica que para superar as dificuldades de Francisco, muitas vezes cabe a Daniel e Victor dirigi-lo em cena.
“Estamos falando de um ator que teve grande parte dos movimentos do corpo afetada, al�m da vis�o, da audi��o e da perda de mem�ria. Isso o colocou num estado do jogo do palha�o bem interessante de se ver, muito rico”, diz o diretor.
'Francisco est� em estado de presen�a muito integral, que cheguei a comparar com o nirvana, que ele alcan�a por meio do nariz vermelho'
Rafael Protzner, diretor
O jogo do aqui e agora
A rela��o com o instante prescinde de roteiro ou marca��o. “Da mesma foma que Francisco esquece completamente o que deve fazer e � lembrado pelos filhos, por meio do jogo da palha�aria, ele entra num estado que � pura bagagem. O maior princ�pio da palha�aria � o presente. Francisco est� em estado de presen�a muito integral, que cheguei a comparar com o nirvana, que ele alcan�a por meio do nariz vermelho”, destaca.
A condi��o especial de Francisco abastece o enredo. Daniel e Victor conduzem o pai no jogo c�nico para as marca��es, trazendo � baila a quest�o dos cuidados que a idade avan�ada demanda.
“Isso potencializou muito a dramaturgia da passagem do tempo, da hist�ria e da fam�lia. Francisco, que diz ter o estilo �pico, n�o est� nem a� para o roteiro; est� ali s� jogando e lendo os poemas. Enquanto Gergilin e Rabisco organizam o lan�amento do livro, o Garniz� fica surfando nisso”, observa Protzner.
Entendendo “Ligados em uma nota de sol” como o reconhecimento da trajet�ria de Francisco Dornellas e, principalmente, como elogio a seu momento presente, o diretor comenta que assim como Eid Ribeiro prestou consultoria c�nica, Ad�lia Carvalho elaborou a consultoria dramat�rgica com foco na passagem do tempo. O tempo da vida, mas tamb�m do alvorecer.
“Sou bem da filosofia do palha�o, que n�o est� ali para contar uma hist�ria. A dramaturgia do palha�o � bem ca�tica, bem an�rquica. H� a sucess�o de acontecimentos que voc� vai implementando, colocando as situa��es, engajando o p�blico, compartilhando com o p�blico. Esta � a arte da palha�aria, em primeiro lugar. Temos ali a trupe tentando organizar um livro. Esse � o fio narrativo, com todo mundo ajudando, entrando no processo criativo para chegar no jogo do palha�o com o p�blico”, ressalta o diretor.
Integrante do grupo Trampulim, Protzner est� estreando, de certa forma. “Dirigi coisas internas para o Trampulim, mas � a primeira oportunidade que tenho de me ver como diretor. Ent�o, � um trabalho que tamb�m me atravessa muito. A palha�aria � central na minha trajet�ria. H� a cena de m�scaras, pilar do meu trabalho. Acho legal a chance de colocar um pouco de identidade nesta dire��o”, conclui.
“LIGADOS EM UMA NOTA DE SOL”
Com Trupe Garniz�, para o projeto Cena Espet�culo. Galp�o Cine Horto (Rua Pitangui, 3.613, Horto). Temporada at� 27/8. Sexta e s�bado, �s 20h, e domingo, �s 19h. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada), � venda pelo site Sympla. Informa��es: (31) 3481-5580. Classifica��o: livre
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