O U2 nunca se esquivou de procurar a grandiosidade. No in�cio dos anos 1990, o grupo repaginou sua imagem de bons mo�os com a Zoo TV, turn� multim�dia que foi pioneira em transmiss�es via sat�lite. No fim daquela d�cada, o quarteto irland�s reapareceu com a PopMart e seu arco gigante, lim�o motorizado e uma tela de 50 metros quadrados. Em 2009, a 360º entregou o maior palco j� constru�do para shows com visibilidade total.

 

Todos esses esfor�os culminam na passagem do U2 em Las Vegas, onde a banda inaugurou, neste fim de semana, a Sphere, a casa de shows mais avan�ada do planeta ao custo de cinco anos de constru��o e US$ 2,3 bilh�es investidos pela Madison Square Garden Sports. Valeu a pena. O "U2:UV Achtung Baby" � o casamento mais definitivo entre rock'n'roll e alta tecnologia de entretenimento.

 

Erguida no complexo do resort The Venetian, a estrutura foi desenhada pela empresa arquitet�nica Populous, mesma do est�dio Arena das Dunas, em Natal. Ela tem a capacidade m�xima de receber quase 19 mil pessoas e possui a maior tela de LED do mundo, com 15 mil metros quadrados envelopando as paredes esf�ricas em quase 360 graus com capacidade de resolu��o em 16k e 160 mil autofalantes por tr�s, criando uma ac�stica impec�vel nos seis n�veis com presen�a de p�blico.

 

Uma banda qualquer poderia ter sido facilmente tragada por tamanha fa�anha tecnol�gica, mas n�o o U2. Para a resid�ncia de 25 shows que segue em Las Vegas at� dezembro, os irlandeses apostam na comemora��o atrasada de um dos seus �lbuns mais emblem�ticos, "Achtung Baby", que completou 30 anos em 2021. Tanto visualmente, quanto conceitualmente, a escolha n�o poderia ter sido mais feliz.

 

U2 na Sphere, em Vegas

U2 na Sphere, em Las Vegas

@richfury / Sphere Entertainment
 

 

A apresenta��o come�a com "Zoo Station", numa esp�cie de atualiza��o high-tech da abertura da Zoo TV. As paredes da Esfera, que parecem lembrar o interior de uma nave espacial futurista --clima apoiado pela trilha sonora de "Blade Runner" ecoando antes do show-- e o Pante�o romano, come�aram a rachar, deixando escapar luzes at� revelar a silhueta de Bono, vocalista e l�der do U2, que parece rejuvenescido com �culos escuros, casaco preto e quilos a menos.

 

Nas duas m�sicas seguintes, "The Fly" e "Even Better Than the Real Thing", o potencial da Esfera � desfraldado para o p�blico que lota o lugar. As paredes se transformam em um gigantesco cinema ultrarrealista. � quando voc� entende que n�o est� mais num show normal, mas no maior espet�culo que o rock pode produzir com a tecnologia ao seu favor: o pequeno palco parece subir e rodopiar com imagens de centenas de Elvis em uma arte barroca que engloba tudo que se espera de Vegas, dos exageros � devo��o pelos seus personagens.

 

Bono sabe onde est�. Canta trechos de "My Way" e "Love Me Tender", famosas nas vozes de Frank Sinatra e . "Vamos nos casar na Capela de Elvis", brinca o cantor antes de tocar "Mysterious Ways". Em "Tryin' to Throw Your Arms Around the World", m�sica que a banda n�o tocava h� mais de 30 anos, �nico momento que a intera��o de tela e espet�culo parece falhar, com a tentativa de criar um balan�o feito por len��is amarrados que se conecta com um bal�o virtual para trazer uma f� ao palco.

 

O momento fecha o que o U2 chama de "Lado A" do show, quando o grupo forma um set semiac�stico sem a ajuda da tela gigante. "Vamos colocar 'Achtung Baby' para dormir. � uma crian�a muito intensa, talvez esteja com os dentes nascendo", diz Bono ao desenterrar uma sequ�ncia de faixas do "Rattle and Hum", �lbum de 1988, repaginadas no estilo de "Songs of Surrender", disco mais recente do quarteto: "All I Want Is You", "Desire", "Angel of Harlem" e "Love Rescue Me".

 

A pausa sensorial � bem-vinda. O U2 volta a ser uma banda de quatro amigos tocando em um palco minimalista baseado numa pe�a de arte de Brian Eno que simula um toca-discos. Mesmo que um dos amigos originais, o baterista Larry Mullen, esteja fora da resid�ncia por ter se submetido � uma cirurgia nas costas --ele foi substitu�do pelo holand�s Bram Van den Berg. "Isso n�o vai funcionar", conta Bono sobre o primeiro ensaio com "novo membro", ainda em Dublin. "Ele � alto demais e muito bonito".

 

Apesar do pequeno atraso para subir ao palco na segunda noite, a banda parece se divertir. Ao anunciar que estava na hora de "Acordar o beb�" e iniciar o Lado B do show, Bono dispara. "Estes sussurros s�o para voc� a� em cima. Eles s� custaram US$ 2,3 bilh�es", diz ao come�ar "So Cruel", balada pouco tocada na carreira do grupo.

 

A faixa parece deslocada no tempo. E � um atestado da qualidade do "Achtung Baby", que, algumas vezes, parece ter envelhecido melhor que o pr�prio U2. Mas o grupo trata de mostrar que n�o vai desistir sem luta com uma performance urgente e raivosa de "Acrobat".

 

Se "Ultraviolet (Light My Way)" coloca a Esfera numa esp�cie de limbo enevoado roxo, a cortante "Love Is Blindness" ganha efeitos mais dram�ticos com as luzes dos LEDs parecendo transformar todo o ambiente num filme em preto e branco, inclusive a plateia.

A se��o final do show � dedicada � m�sica nova, "Atomic City", um p�s-punk viciante que funciona ao vivo, e aos hits.

 

A Esfera parece expandir seus horizontes com "Elevation" e "Where the Streets Have No Name". Assim como nos cassinos locais, n�o sabemos mais se � noite ou dia, se estamos no deserto do Nevada ou em um pa�s da Europa. � exagerado, � espantoso e � magia disfar�ada de tecnologia. Nada mais vai ser o mesmo depois disso.

 

At� "With or Without You", que, nos �ltimos anos, era tocada de forma autom�tica e meio obrigat�ria, ganhou nova vida com as paredes projetando uma sequ�ncia que uma mistura de nascimento e espa�onave greco-romana que parece nos tragar para dentro da tela. A arte da brit�nica Es Devlin ganha formas menos abstratas ao longo da m�sica e invade "Beautiful Day" com uma escultura de quase 360 graus formada por imagens de animais locais � beira da extin��o. Um final t�o assustador quanto apote�tico.