Mickey, na Disney

Mickey, na Disney

meeko_ /Flickr
Tudo come�ou com um rato. Cem anos depois, o rato j� n�o importa tanto assim.

Apesar de sintetizar a hist�ria de sua cria��o com a frase rom�ntica e pueril, que nem � t�o aut�ntica assim, j� que seu principal personagem seria criado cinco anos depois, a The Walt Disney Company chega ao seu centen�rio como muito mais do que a casa de Mickey Mouse. Muito mais at� do que uma produtora de anima��o.

Uma das marcas mais reconhecidas mundialmente, respons�vel por moldar gera��es e criar um imagin�rio coletivo por meio de seus filmes, a Disney virou sin�nimo de soft power dos Estados Unidos ao expandir seus neg�cios para esportes, m�sica, teatro, livros, games, parques tem�ticos, cruzeiros e toda sorte de produto.

Hoje avaliada em US$ 155 bilh�es, a Disney tem uma trajet�ria que serve como cr�nica do pr�prio sonho americano. Foi em meio aos loucos anos 1920 e aos del�rios de grandeza que Hollywood desenhava para si, afinal, que um Walt Disney de 21 anos sem dinheiro no bolso deixou para tr�s o pequeno e falido est�dio que havia fundado em Kansas rumo � Calif�rnia.

Ao lado do irm�o, Roy O. Disney, e do ilustrador Ub Iwerks, fundou em 16 de outubro de 1923 a Disney Brothers Studio, como a companhia foi originalmente chamada, prosperando com o coelho Oswald, mais tarde perdido numa negociata de direitos autorais, e com curtas que misturavam anima��o e live-action.

Mas o sucesso e a independ�ncia financeira vieram mesmo com Mickey, em 1928, que no curta "O Vapor Willie", ou "Steamboat Willie", estrelou a primeira anima��o com som sincronizado da hist�ria. Com um personagem carism�tico e tecnologia nas m�os, os neg�cios prosperaram.

N�o deixa de ser ir�nico, portanto, que a Disney chegue agora ao centen�rio sob a amea�a de perder a exclusividade de Mickey Mouse, que deve entrar em dom�nio p�blico no ano que vem. N�o espere ver, por�m, o ratinho em qualquer canto.

A empresa tem tomado precau��es e se associado de forma mais umbilical ao personagem para embaralhar o que � s� mais uma propriedade intelectual e o que � a sua pr�pria marca –esta tem restri��es mais rigorosas de uso. Percebeu que, nos �ltimos anos, todas as anima��es do est�dio acompanham uma vinheta que rememora "O Vapor Willie", como um selo?

Este, no entanto, � o menor dos problemas da Disney. A empresa completa um s�culo com o barquinho Willie navegando em �guas turbulentas. N�o bastassem as greves que chacoalharam a produ��o audiovisual americana nos �ltimos meses e puseram sob escrut�nio os sal�rios exuberantes de seu CEO, seu valor de mercado tem ca�do.

Suas a��es, na festa de comemora��o, valem menos do que nos primeiros e incertos meses de pandemia. N�o s�o n�meros exatamente ruins, mas est�o longe de permitir serenidade no trato dos neg�cios, que passaram por um pico de crescimento a partir de janeiro de 2014, �ltima vez em que o valor de mercado esteve t�o baixo.

E a dire��o da Disney j� percebeu isso. Tirou da aposentadoria, em novembro, o antigo CEO Bob Iger, ap�s a desastrosa gest�o de Bob Chapek e dos n�meros vacilantes do streaming Disney+. A esperan�a � a de que Iger consiga reverter o cen�rio desfavor�vel, como j� havia feito quando assumiu o cargo pela primeira vez, em 2005.

Os 15 anos em que ele esteve � frente da companhia foram marcados pela diversifica��o dos neg�cios e por aquisi��es importantes. Partiu de sua gest�o a iniciativa de comprar a Pixar, a Marvel Entertainment e a Lucasfilm, ampliando a biblioteca de personagens valiosos. Sem falar no arremate da 21st Century Fox, seu canto do cisne, que deu � Disney um controle sem precedentes do calend�rio de estreias.

Iger tem dois anos, pelo novo contrato, para p�r a casa em ordem e escolher um sucessor. Entre as medidas j� tomadas est�o o corte de US$ 5,5 bilh�es em custos e a demiss�o de 7.000 funcion�rios. Decis�es duras, semelhantes �s que v�rias outras empresas do setor v�m tomando, embora mascaradas pelo clima de festa das bodas centen�rias.

N�o que essa seja a primeira crise vivida pelo est�dio. Em cem anos de trajet�ria, afinal, h� espa�o de sobra para maus momentos. Nos anos 1940, a Segunda Guerra fez minguar o interesse pelas anima��es simp�ticas que eram o bem mais precioso da empresa.

Na virada da d�cada de 1960 para 1970, a morte de Walt Disney imp�s ao Walt Disney Animation Studios um bloqueio criativo, e nenhum filme parecia agradar ao p�blico. A concorr�ncia aproveitou para florescer, deixando a divis�o de desenhos da empresa � beira do fechamento at� que esta fosse salva pelo sucesso de "A Pequena Sereia", em 1989.

E nos anos 2000, quando a f�rmula dos musicais teatrais se esgotou, outra crise veio. Nenhuma, no entanto, teve o escopo da enfrentada agora, que vai muito al�m dos dados de bilheteria e, pior, parece ser fruto n�o do destino, mas das pr�prias estrat�gias tra�adas em anos recentes –com uma ajudinha da pandemia e da inseguran�a do streaming.

Sair dela vai ser mais dif�cil, sem d�vida. E os planos anunciados at� agora parecem ir na contram�o do que tornou a empresa um tit� do capitalismo americano –inova��o. Basta olhar para "Branca de Neve e os Sete An�es", primeiro longa americano animado, recordista de bilheteria ao ser lan�ado, em 1937, e respons�vel por fundar a anima��o enquanto g�nero cinematogr�fico.

Aos poucos, a f�rmula foi sendo revista, adaptada e aprimorada. Das anima��es em 2D como "Pin�quio" e "Peter Pan" � xerografia de "101 D�lmatas"; das extravag�ncias musicais de "H�rcules" e "O Rei Le�o" � pegada pop de "Tarzan"; do abra�o na computadoriza��o de "Dinossauro" � moderniza��o da receita com "Frozen".

Inova��o n�o s� entre os desenhos. Se "Mary Poppins" inovou ao p�r Julie Andrews, em carne e osso, para dan�ar com pinguins ilustrados, "Avatar", agora uma franquia da Disney, inundou os cinemas com c�meras � prova d’�gua.

Enquanto "Star Wars" era apresentado para uma nova gera��o, o Universo Cinematogr�fico Marvel moldou a forma de fazer e lan�ar filmes na �ltima d�cada –mesmo que ambas as franquias agora apresentem sinais de desgaste.

A solu��o encontrada para a crise parece ser justamente hiper-saturar, apesar de as experi�ncias com Jedi e super-her�is indicarem que essa � uma aposta com prazo de validade. Em meio aos dados financeiros frustrantes dos �ltimos meses, a Disney pin�ou de seu acervo bens valiosos e anunciou "Toy Story 5", "Frozen 3", "Zootopia 2", "Divertida Mente 2" e live-actions de "Moana" e "Os Incr�veis".

H� uma crise de identidade pairando no ar. N�o s� nos est�dios da Disney, mas em toda Hollywood, bagun�ada em meio � reorganiza��o entre cinema, televis�o e streaming. Enquanto sequ�ncias, refilmagens e derivados n�o ficam prontos, apostas mais singelas podem apontar para um novo caminho.

Em janeiro, a Disney lan�a "Wish", sua 62ª anima��o em longa-metragem. O filme recupera t�cnicas empregadas nos prim�rdios da companhia, como os desenhos em 2D feitos � m�o, e as moderniza. Tamb�m retoma as fanfarras musicais que marcaram a chamada "Renascen�a Disney" nos anos 1990.

E, nesta segunda, a festa vai come�ar com um rato. Mickey vai guiar o espectador pela hist�ria da companhia no curta "Era Uma Vez um Est�dio", que levar� para os corredores da sede da Disney Animation todos os personagens aos quais seus l�pis, pinc�is e computadores deram vida.