
Desde os 5 anos de idade, Sophia se percebe como menina e age como uma. Colocava a toalha enrolada na cabe�a para simular o cabelo comprido, caracter�stica que costumamos associar �s pessoas do g�nero feminino.
A situa��o de ser autista e a inadequa��o entre o g�nero com que foi registrada e o que realmente ela � tornou o processo de busca de identidade por Sophia um pouco mais dif�cil.
Ela teve que ir atr�s de informa��es para demonstrar que n�o havia nada de errado com ela, demonstrando que era necess�rio que a sociedade compreendesse a sigularidade de sua exist�ncia: uma mulher transg�nero e autista.
No dia 23 de fevereiro, defender� a disserta��o "A interseccionalidade entre autismo e transgeneridade: di�logos afetivos no Twitter" pelo Programa de P�s-gradua��o em Comunica��o da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"� uma pesquisa com dimens�o afetiva. Parto da minha experi�ncia singular como mulher autista e transg�nero e produtora de conte�do para tecer di�logos e intera��es com viv�ncias de outras que tamb�m s�o autistas e transg�neras que publicaram no Twitter."
O percurso Sophia transformou em conhecimento, que n�o ficou s� com ela. Deu um jeito de compartilhar. Viu como possibilidade as redes sociais. A coluna de Sophia � publicada semanalmente no DiversEM.
A jovem entendeu que era preciso produzir conhecimento a partir da pr�pria viv�ncia, deixando para tr�s o papel de ser apenas objeto das pesquisas acad�micas. Entrou para a universidade, j� est� no mestrado.
A pesquisa

A pesquisa de Sophia traz diversos ensinamentos. O primeiro deles � uma maneira distinta de ser. O autismo n�o � uma doen�a a ser curada, mas uma varia��o da condi��o humana, espectro em que est�o pessoas neurologicamente diferentes, um grupo social.
Outro ensinamento diz respeito ao que usualmente as pessoas pensam em rela��o � transi��o de g�nero, como se fosse um processo necess�rio para que a pessoa performar o g�nero do qual se identifica. Sophia demonstra que para quem � transg�nero o processo de transi��o somente � a confirma��o social do g�nero na qual ela sempre se percebeu desde a inf�ncia.
A pesquisa tamb�m nos revela que a preval�ncia de transgeneridade entre pessoas autistas � oito vezes mais prevalente do que das pessoas que n�o est�o neste espectro. No entanto, por a pessoa ser autista, muitas vezes, a identifica��o do g�nero apontada por ela � ignorada.
Por essa raz�o, Sophia entendeu que era importante dar visibilidade aos processos de pessoas autistas e transg�neras como ela. Na pesquisa para o mestrado, ela acompanha o perfil de quatro pessoas no Twitter, que narram como � viver nesse lugar de intersec��o, de ser autista e transg�nero.
"� uma pesquisa realizada em dimens�o afetiva, ou seja, estou inserida naquele contexto. Busco deixar os processos de afeta��o, que s�o esse di�logo com o que estou pesquisando. N�o � uma pesquisa com o distanciamento tradicional. N�o estou aqui em cima olhando para as pessoas l� embaixo", revela.
Na disserta��o ela aborda cinco eixos: reflex�es pertinentes �s identidades de g�nero; o paradigma da neurodiversidade no espectro autista; interseccionalidade entre autismo e transgeneridade; comunica��o mediada por computador e narrativas de vida.
Sophia observa como as pessoas constr�em as narrativas de vida. "Narrativa de vida surge de maneira expont�nea numa conversa, numa comunica��o corriqueira nas m�dias digitais".
S�o narrativas que demonstram que essas pessoas existem, querem ser vistas e t�m demandas espec�ficas. "Ao longo da minha pesquisa fui descobrindo algo que eu vivi nas narrativas de outras pessoas e tamb�m na pesquisa de estudiosos, muitos at� fora do Brasil, que olharam para autismo e interseccionalidade. A condi��o se ser trans � oito vezes mais comum em pessoas autistas do que em pessoas que n�o s�o autistas. Isso � demonstrado por um estudo quantitivo que usa metodologia muito boa".
Como autismo e transgeneridade s�o tratados
Estudos apontam que h� maior preval�ncia de autistas trans do que entre popula��o de forma geral. Apesar disso, os profissionais de sa�de, que lidam com a popula��o autista, costumam ver essa condi��o a partir de uma perspectiva capacitista.
"� muito comum pessoas autistas que s�o trans terem a condi��o de transg�nero invalidada ou desqualificada por serem autistas, at� mesmo por avaliadores que deveriam conhecer as trajet�rias delas", diz Sophia. Na disserta��o, ela mostra que as pessoas trans e autistas existem.
Sophia lembra que a pessoa com autismo pode ter uma dificudade de autopercep��o da hora que est� com fome. O autista pode perceber um mal-estar mas sem identificar, por exemplo, se � fome ou vontade de ir ao banheiro. No entanto, ela refor�a que a pessoa autista percebe a incongru�ncia entre o g�nero que foi designado no naascimento e a forma como o autista se v� e quer se expressar socialmente.
A transi��o
Sophia est� com 25 anos e h� dois anos ela passou a fazer a transi��o social do g�nero. "Como diz Simone de Beauvoir n�o se nasce mulher se torna. O meu tornar-se mulher foi muito cedo e n�o estou falando da transi��o em si. Desde a primeira inf�ncia, eu dou mostras de comportamento, jeito de agir, mais feminino. Tinha uma forte disforia de g�nero. Colocava uma toalha na cabe�a para simular um cabelo grande".
Aos cinco anos, uma psic�loga falou aos pais de Sophia que ela estava preocupada com a homossexualidade da menina. "Eu sabia que n�o era isso. N�o era uma quest�o de atra��o sexual. Era uma quest�o de como eu me sentia, me percebia no mundo e como queria me expressar. Na adolesc�ncia tentei falar com profissionais de sa�de sobre isso, mas fui muito recha�ada por causa de preconceitos por eu ser autista. Achavam que eu n�o tinha capacidade de perceber qual era o meu g�nero".
� uma transi��o social, porque o g�nero j� se manifesta na pessoa, na intera��o com o mundo. "A sociedade que vai perceber a mudan�a para que a pessoa possa se expressar do jeito que ela �."
Aos 23 anos, no in�cio da pandemia, Sophia ficou muito depressiva, porque n�o se identificava com o r�tulo de homem gay. "Na �poca, falei com a minha m�e que n�o dava conta mais". Ela come�ou a frequentar um psiquiatra especialista em g�nero, fez tratamento multidisciplinar com psic�loga e endocrinologista. "Muita gente achou que poderia ser um grande erro essa minha transi��o como se fosse uma escolha. E n�o �".
Ela lembra que, como pessoa p�blica, ficou muito exposta, mas que foi muito bem recebida por seguidores, no meio acad�mico e no meio religioso - ela segue o budismo. "Estou com o cabelo maior, domino muito mais os aspectos de performar a feminilidade, maquiagem e o jeito que me visto".
Sophia obteve aprova��o dos m�dicos para fazer cirurgia de redesigna��o sexual. "N�o � o desejo de todas as pessoas trans, mas � o meu desejo como a mulher que eu sou."