Rio. Nasce, corre, des�gua, renasce. �gua que leva peixe, gente, hist�ria, f� e tempo. Das velhas: rio Manuelz�o. S�o Francisco: rio do adentrar, dos currais. Rio Jequitinhonha: rio esperan�a do vale. Amazonas: rio imensid�o. Araguaia: rio das chalanas, da canoa de Milton Nascimento. Capibaribe: rio Severino, de Jo�o Cabral de Melo Neto, da morte e da vida. Tiet�: rio marginal, da cidade grande. Xingu, Madeira, Tocantins, Paran�, Grande, Preto, Santo Ant�nio, Para�na, Doce, Piracicaba. �gua que n�o acaba. Rio acima. Rio abaixo.

Cr�ditos: Free-pik
Os rios, desde a Antiguidade, fazem parte dos caminhos da humanidade. Quando Her�clito, fil�sofo pr�-socr�tico, quis ilustrar o “devir”, elucidou que o homem n�o podia entrar duas vezes no mesmo rio, enfatizando o movimento e a constante transforma��o da ess�ncia. Os povos origin�rios do Brasil acreditam na for�a das �guas, depositando nelas o poder da cura e fazendo-as fonte de alimentos. Os pescadores fazem das ondas contadoras de hist�rias e sentem-se orgulhosos ao voltar com peixe grande para casa. Os ribeirinhos fazem dos rios: morada. Os antigos sabem da �poca da cheia e da seca, da hora certa de plantar e colher. Os povos das cidades, muitas vezes, v�m e v�o sem remar e sem nadar, mas por cima de rios que correm sob concretos e viadutos.
E o que ficar� escrito nas �guas? Essa pergunta, nos dias atuais, tange diferentes aspectos, sendo fundamental ressaltar os impactos ambientais, sociais e econ�micos associados aos diversos cursos d’�gua e �s popula��es que vivem em seus arredores.
Em primeiro plano, destaca-se que o frequente descumprimento de legisla��es por grandes empresas configura o acontecimento de crimes ambientais no Brasil. A neglig�ncia de uma das maiores mineradoras do pa�s, por exemplo, � apontada como causa dos rompimentos da barragem do Fund�o, em Mariana, no ano de 2015, e da barragem da Mina do C�rrego Feij�o, em Brumadinho, no ano de 2019. Segundo o
Minist�rio P�blico Federal, 40 milh�es de metros c�bicos de lama advindos do rompimento da barragem de Fund�o trouxeram dr�stica mudan�a para a Bacia do Rio Doce, destruindo grande acervo da fauna e flora local, al�m modificar o espa�o, a economia e os costumes de comunidades que dependiam das �guas para sobreviv�ncia. Em Brumadinho, a trag�dia atingiu diversas fam�lias, causando a morte de mais 260 pessoas e prejudicando o fornecimento de �gua de cidades dependentes do Rio Paraopeba, de acordo com o Instituto de Gest�o das �guas de Minas Gerais (IGAM).

N�o menos importante, a insufici�ncia dos servi�os de saneamento b�sico � uma realidade preocupante para muitos brasileiros. O Sistema de Informa��es sobre Saneamento (SNIS), em 2018, divulgou que 47% da popula��o utilizava de medidas alternativas para lidar com dejetos gerados e 16% dos brasileiros n�o tinham acesso � �gua tratada. Isso significa que, em muitas localidades, os rios ainda s�o empregados para o despejo de esgoto e, ao mesmo tempo, como fonte de �gua para o consumo. Nessa perspectiva, essa fra��o da sociedade torna-se mais suscet�vel �s verminoses e �s doen�as infecciosas em virtude de condi��es vulner�veis de sa�de a que s�o submetidas. No vale do Jequitinhonha, por exemplo, a alta incid�ncia de esquistossomose relaciona-se � falta de saneamento b�sico e � educa��o sanit�ria deficit�ria. Ademais, o despejo de mat�ria org�nica nos rios leva � eutrofiza��o das �guas, reduzindo a disponibilidade de oxig�nio e aumentando a mortalidade de peixes, o que interfere negativamente na renda de fam�lias dependentes das atividades pesqueiras
da regi�o.
Al�m disso, grandes empreendimentos, principalmente hidrel�tricos, colocam em xeque a perman�ncia da estrutura de diversos cursos d’�gua do Brasil. A constru��o da usina de Belo Monte no Rio Xingu, no estado do Par�, levanta pol�micas entre as comunidades ind�genas locais, entre os ambientalistas e entre os empres�rios desde o ano de 2006. A instala��o dessa obra modificou intrinsecamente os costumes e o modo de vida do povo Juruna, fazendo a Justi�a Federal de Altamira reconhecer o aumento da subnutri��o de crian�as e do consumo de bebidas alc�olicas e de drogas il�citas pelos ind�genas como fatores relacionados ao funcionamento da hidrel�trica Belo Monte. Atualmente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) defende a maior vaz�o de �gua da usina para o abastecimento dos ribeirinhos e para a garantia da preserva��o de esp�cies end�micas em detrimento da maior gera��o de energia, o que gera impasses entre as empresas respons�veis pela distribui��o da eletricidade que visam a maior lucratividade de suas atividades. A diminui��o do peso do peixe Pacu, por exemplo, s�mbolo pertencente � gastronomia e fundamental para subsist�ncia local, ajuda a comprovar os impactos do empreendimento sobre a seguran�a alimentar, sobretudo, das comunidades ind�genas.
Diante disso, o questionamento heraclitano persiste: em que rio deixamos de entrar para tantas mudan�as passarem despercebidas? A passagem das �guas escreve hist�rias, modela relevos, forma aqu�feros, fornece alimentos, garante subsist�ncia e impulsiona vida em diversos ecossistemas. Resgatar, reconhecer, discernir e respeitar o que as correntezas trazem e levam consigo impulsiona a constante busca da ess�ncia pelos seres humanos. Preservar os recursos h�dricos hoje � o que nos faz ter certeza da vida amanh�. Na sede, n�o se bebe dinheiro, n�o se bebe poder. Os rios precisam urgentemente renascer. E junto dele a humanidade dos seres humanos.
Artigo da Joana Lazzarini do Projeto Cais e Percurso Educacional