
Antes da forte queda no n�mero de inscritos que marcou o Enem (Exame Nacional do Ensino M�dio) em 2021, o principal meio de entrada para o ensino superior no Brasil registrava uma mudan�a significativa.
Entre 2010 e 2016, a propor��o de pretos e pardos — grupos que juntos formam a popula��o negra brasileira — entre os candidatos saltou de 51% para 60%, enquanto a parcela de brancos diminuiu de 43% para 35%.
Intrigado com a mudan�a, num per�odo marcado pela ado��o das cotas sociais e raciais nas universidades p�blicas, mas tamb�m pelo avan�o do orgulho de ser negro no pa�s, o pesquisador Adriano Senkevics decidiu investigar os motivos por tr�s dessa tend�ncia.
Seria o forte aumento no n�mero de candidatos — que saltou de 4,6 milh�es para 8,6 milh�es em apenas seis anos — que estaria ampliando o acesso de grupos antes exclu�dos?
Ou, diante da alta concorr�ncia, candidatos negros teriam de fazer a prova mais vezes at� serem aprovados?
E qual o peso nessa mudan�a de pessoas que antes se consideravam brancas mas, ao tentar a prova mais de uma vez, passavam a se autodefinir como pardas?Ou ent�o, que passavam de pardas a pretas, num processo de "escurecimento" da popula��o tamb�m identificado em outras pesquisas demogr�ficas, como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domic�lios) e o Censo do IBGE, que nenhuma rela��o t�m com o acesso ao ensino superior.
Doutor em educa��o pela USP (Universidade de S�o Paulo) e pesquisador do Inep, �rg�o respons�vel pela realiza��o do Enem, Senkevics descobriu que cada um desses tr�s fatores contribu�ram para a mudan�a, ainda que com pesos distintos.
Em artigo publicado neste m�s pela Dados Revista de Ci�ncias Sociais, peri�dico cient�fico mantido pelo Instituto de Estudos Sociais e Pol�ticos da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o pesquisador se debru�ou sobre o tema.
A BBC News Brasil conversou com ele para entender melhor os principais resultados desse estudo, que � o primeiro a investigar o fen�meno da "reclassifica��o racial" — isto �, das pessoas que mudam sua autodefini��o de ra�a ou cor — no Enem.
Uma mudan�a cultural no Brasil
Senkevics conta que muita gente pensa que ele decidiu olhar para o aumento da propor��o de negros no Enem e o fen�meno da reclassifica��o racial dos candidatos pensando em captar fraudes nas cotas, mas ele deixa bem claro que essa n�o � a inten��o do estudo.
"O que me motivou foi uma curiosidade cient�fica com rela��o a esse movimento de as pessoas se classificarem cada vez mais como negras", diz o pesquisador.
"Trata-se de um fen�meno cultural brasileiro, que � a assun��o cada vez maior da identidade e do pertencimento negro, num pa�s historicamente racista e cujo racismo foi apoiado num processo de 'embraquecimento' hist�rico, de nega��o de identidades raciais negras e ind�genas e desvaloriza��o da hist�ria e cultura dessas parcelas da popula��o", acrescenta.

O estudo � dividido em tr�s partes.
Na primeira delas, o pesquisador do Inep olha para os novos inscritos, ou seja, as pessoas que est�o prestando o Enem pela primeira vez. Nesse grupo, o percentual de negros passou de 51,5% para 57% nos seis anos analisados.
Para Senkevics, a mudan�a no perfil racial aqui reflete altera��es no cen�rio educacional brasileiro. A primeira dessas mudan�as � o aumento na propor��o de jovens que concluem o ensino m�dio, com redu��o da repet�ncia e da evas�o escolar nessa fase do ensino.
Como resultado desse processo, mais jovens de baixa renda, negros e estudantes vindos de fam�lias menos privilegiadas se tornaram aptos a tentar uma vaga no ensino superior.
"O perfil de quem termina o ensino m�dio foi se tornando cada vez mais heterog�neo e representativo da popula��o", observa o especialista em educa��o. "O jovem de classe alta, de fam�lia mais escolarizada, j� fazia o Enem. A novidade � que vai entrando um perfil novo, que vai aumentando sua presen�a cada vez mais nesse per�odo."
Al�m disso, pol�ticas de amplia��o do acesso �s universidades geraram um incentivo para estudantes que antes talvez n�o acreditassem na possibilidade de ingressar numa faculdade passarem a ter mais esperan�a com rela��o ao processo seletivo.
Entre essas pol�ticas, o pesquisador cita o programa de bolsas de estudo Prouni, o programa de financiamento estudantil Fies, o sistema �nico de oferta de vagas Sisu e a lei de cotas.
Por fim, Senkevics destaca que esses novos inscritos est�o sujeitos �s mesmas mudan�as culturais e demogr�ficas identificadas na popula��o brasileira em geral e, portanto, mais jovens talvez estejam se percebendo como negros mesmo antes de se inscreverem no Enem, contribuindo para a mudan�a no perfil racial dos novos inscritos.
Negros s�o maioria entre inscritos reincidentes
Na segunda parte do estudo, o pesquisador olha para os estudantes que prestam o Enem mais de uma vez. Em 2011, os inscritos reincidentes eram 36% do total, chegando a 65% em 2016.
Entre os estudantes que prestam o Enem uma ou duas vezes, h� pouca diferen�a no perfil racial, com brancos superando pardos em cerca de 1 ponto percentual.
Mas, a partir da terceira tentativa, a parcela de pardos passa a superar a de brancos, chegando a 48% de pardos para 30% de brancos entre aqueles que se inscreveram sete vezes, uma diferen�a significativa, de 18 pontos percentuais.

"A pessoa pode fazer o Enem quantas vezes ela quiser; como o ensino superior � muito disputado e o processo seletivo � muito afunilado, uma pequena parte dos inscritos vai ter sucesso", observa Senkevics. "Candidatos menos preparados, com origens menos privilegiadas, como boa parte da popula��o negra, podem ser obrigados a fazer o exame mais de uma vez."
O pesquisador destaca alguns indicadores que mostram as dificuldades dos candidatos negros no Enem: pretos e pardos t�m taxas de absten��o maiores nos dias de provas (quando a pessoa se inscreve mas n�o consegue comparecer no dia do exame) e m�dias de desempenho menores, em rela��o aos brancos.
Essas dificuldades podem levar um candidato a se inscrever novamente na prova. Quando isso acontece, surge a possibilidade de reclassifica��o racial, que ocupa a terceira parte do estudo.
Os candidatos que 'mudam de ra�a'
Na pesquisa, Senkevics buscou analisar como se d�o esses movimentos de reclassifica��o entre brancos, pardos e pretos.
E o que ele encontra � que, apesar de as altera��es acontecerem em todas as dire��es, o saldo l�quido das mudan�as resulta em uma redu��o de 5% no n�mero de brancos, aumento de 1% no de pardos e ganho de 13,7% na quantidade de pretos.

O pesquisador observa que v�rios dados sugerem que essa reclassifica��o tem pouca rela��o com poss�veis tentativas de fraude.
Uma evid�ncia disso, segundo Senkevics, � o fato de que mudan�as semelhantes acontecem em diversas outras bases de dados que n�o t�m qualquer incentivo para que as pessoas "se escure�am", como a Pnad, o Censo e a antiga Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.
Outro ponto � a reclassifica��o de pardos para pretos, uma mudan�a que n�o d� vantagem nenhuma na pol�tica de cotas, que � voltada para negros de maneira geral.
"A pessoa que � parda j� � benefici�ria da pol�tica afirmativa racial", observa Senkevics.
"Ent�o o que eu entendo que explica essa grande migra��o de pardos para pretos � que n�o h� outra motiva��o que n�o a quest�o cultural, porque a categoria 'preto' � muito mais alvo do processo de ressignifica��o do que 'pardo'", acrescenta o pesquisador.
"O pardo n�o � sequer uma categoria nativa, n�o � usada pelas pessoas nos seus processos de autoidentifica��o, � uma categoria mais demogr�fica do que exatamente sociol�gica", observa o analista.
"Enquanto isso, toda a quest�o da valoriza��o da negritude vem muito em cima da ideia de ser preto. Ent�o � uma categoria que tem uma milit�ncia maior, em torno da qual a conscientiza��o racial se construiu e que marca mais uma diferen�a com rela��o ao branco."
O especialista destaca ainda estudos do pesquisador David De Micheli que mostram que a autoidentifica��o como preto � maior entre os mais escolarizados, o que estaria ligado � maior exposi��o dessa parcela da popula��o ao debate antirracista, ao resgate da hist�ria afro-brasileira e de seus elementos culturais e � milit�ncia negra por direitos.
Queda no percentual de negros no Enem de 2021
Apesar do processo social de empoderamento da popula��o negra em curso, o Enem mudou bastante desde o per�odo estudado por Senkevics.
Desde 2016, o n�mero de inscritos na prova tem ca�do ano ap�s ano, recuando de 8,6 milh�es naquele ano, para apenas 3,4 milh�es em 2021.
A propor��o de pessoas pretas, pardas e ind�genas tamb�m diminuiu no ano passado, de 62,3% em 2020, para 55,7% em 2021.

Segundo analistas, diversos fatores explicam a redu��o no interesse pelo Enem. Um deles � que, desde 2017, a prova deixou de servir como certifica��o para o Ensino M�dio.
A partir daquele ano, candidatos que n�o se formaram na idade usual e buscavam o diploma passaram a prestar o Encceja (Exame Nacional para Certifica��o de Compet�ncias de Jovens e Adultos), que havia deixado de ser aplicado em 2009.
Os especialistas tamb�m apontam uma piora nas perspectivas de acesso ao ensino superior, com redu��o nas bolsas oferecidas pelo Prouni, queda acentuada nos contratos de financiamento firmados atrav�s do Fies e estagna��o no processo de amplia��o das vagas em universidades p�blicas.
A esse cen�rio, somou-se a pandemia, que afetou de forma muito desigual ricos e pobres, reduzindo a taxa de conclus�o do ensino m�dio e fazendo com que muitos estudantes negros e de baixa renda n�o se sentissem preparados para tentar uma vaga no ensino superior.
Ser� preciso acompanhar nos pr�ximos anos se o Brasil vai retomar sua trajet�ria de gradual inclus�o de negros e filhos de fam�lias pobres nas universidades ou se ser�o duradouros os impactos causados pela pandemia e pelo desmonte das pol�ticas p�blicas de educa��o apontado por especialistas.
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