
Para uma bailarina, ficar longe dos palcos poderia ser o fim. Impossibilitada de dan�ar depois de um acidente de carro, Marjorie Quast n�o se entregou, encontrou outras formas de se envolver com a arte que a acompanha desde crian�a. Formada em bal� cl�ssico, a mineira que fundou o N�cleo Art�stico e o Camale�o Grupo de Dan�a, em Belo Horizonte, seguiu a carreira como gestora. Desde ent�o, a pesquisa � um dos grandes interesses de Marjorie, que se define como curiosa e inquieta. A cada apresenta��o, com um core�grafo diferente, os bailarinos do Camale�o se envolvem com novas t�cnicas. No ano em que completa tr�s d�cadas e meia de hist�ria, o grupo estreia o espet�culo de rua Verga.
Na inf�ncia, voc� j� dava sinais de que seria bailarina?
Desde pequena, tinha certeza de que seria bailarina. Na verdade, j� me sentia uma bailarina. Adorava o bal� cl�ssico, estudei com a Ana L�cia de Carvalho, do Ballet Ana L�cia. Tinha o h�bito de dan�ar para a minha fam�lia. N�o tinha TV na �poca, ent�o o meu pai e a minha m�e se sentavam para nos ver dan�ar. Eu e a minha irm� faz�amos aula na sala de jantar. Foi o meu pai, um holand�s grand�o, quem me levou para a aula de bal�. Lembro-me de entrar de m�os dadas com ele, devia ter uns 6 anos. Com o decorrer do tempo, a fam�lia me apoiando, n�o tive d�vida do meu caminho para a dan�a e a curiosidade me levou a pesquisar outras formas de dan�a.
O que falavam, naquela �poca, de quem queria ser bailarina?
Falo que vivi tempos �ureos. Tinha tanta certeza, um certo atrevimento, que as pessoas n�o questionavam. Fui para Londres, onde estudei na Royal Academy of Dance, depois fui para Nova York, era onde as coisas aconteciam, era um grande centro. Fiz muitos cursos de dan�a.
A sua trajet�ria come�ou pelo N�cleo Art�stico. Como surgiu a ideia de montar a escola?
Minha irm� e eu tivemos a ideia de montar uma escola para colocar para fora a nossa vontade de dan�ar, a criatividade, a energia, de um jeito pr�prio. Quer�amos falar da dan�a da forma como a entend�amos, ent�o lan�amos o N�cleo Art�stico em 1978. No in�cio, viemos com o bal� cl�ssico, depois fomos muito para o lado do jazz. Foi o jazz que nos fez despontar. A� vieram os anos 1980, est�vamos no auge de inventar coisas, e ent�o surgiu a ideia do Camale�o.
Qual � o seu estilo de dan�a preferido?
Bal� cl�ssico faz parte da minha forma��o, est� na minha alma, mas sempre tive uma inquietude de pesquisar outras t�cnicas, ent�o ia para todos os lados. Gostava do jazz, do moderno, do contempor�neo, do sapateado.
Por que dan�ar faz bem para voc�?
Quando a alma tem necessidade da arte, ela pede. Para mim, dan�ar era um alento para a alma. Sofri um acidente de carro muito s�rio em 1985, com 29 anos, e tive que parar. At� tentei continuar, mas para o bal� cl�ssico ficou muito complicado, o meu p� teve que ser reconstitu�do. Ent�o, continuei com a arte da dan�a atrav�s dos outros. A minha alma continuou feliz vendo o que ia construindo, as pessoas no palco. Fui me tornando uma empreendedora da arte. Fiz artes pl�sticas, depois pedagogia.
Voc� ficou muito revoltada por n�o poder mais dan�ar?
No in�cio, sim, mas a arte foi me ajudando. Hoje existe tanta gente ligada no mesmo sonho, na mesma arte, e a dan�a tamb�m pode ser ferramenta de educa��o, de pesquisa. L�gico que o maior prazer de uma bailarina � estar no palco, mas, quando voc� ama o que faz, vai descobrindo outras formas de se realizar. Isso me fez pesquisar, ponderar, me autoconhecer e lutar pela dan�a como posso.
Fale de alguns momentos marcantes que viveu no palco.
Gostei muito de fazer o espet�culo Terra, com coreografia de Fred Romero e dire��o da esposa dele, Betina Bellomo, at� hoje mestra da dan�a em Belo Horizonte, ela trabalha com todas as principais companhias. Fred trouxe para o Camale�o um n�mero mais moderno. Depois veio o Diadorim, que surgiu por causa da miniss�rie Grande sert�o veredas.
O que levou voc� a se interessar por pesquisa?
Acho que n�o existe uma s� forma de falar com o corpo. � muito interessante ver um bailarino que usa v�rias t�cnicas, que pode falar com v�rias linguagens. Hoje em dia estou fascinada pela pesquisa do mexicano Omar Carrum com a Continuum. � uma t�cnica de dan�a contempor�nea cont�nua de movimentos, nada quebra. Ele nos deixou o espet�culo traZ-humante, inspirado naquela �poca dos retirantes. Olhando, parece que as pessoas est�o meio fora de contexto, fora do conforto.
Pesquisa � a ess�ncia do Camale�o?
Sim, somos um grupo de pesquisa. Temos por filosofia n�o trabalhar com core�grafo residente e a cada hora pesquisar uma pessoa, uma tend�ncia. Ent�o, usamos v�rias linguagens, temos mesmo cara de camale�o, cada espet�culo tem a sua caracter�stica. Tem pesquisa que n�o vira espet�culo, mas n�o temos compromisso de conseguir. O nosso compromisso � pesquisar.
Como a dan�a transformou e transforma a sua vida?
A dan�a me faz olhar o entorno, ter sensibilidade, me faz pensar. Hoje, presto aten��o na dan�a como ferramenta de educa��o. Temos um projeto com o Instituto Unimed-BH h� 10 anos no Morro das Pedras. Damos aulas de dan�a de rua e bale cl�ssico, que tem a maior lista de espera. O grande sonho das meninas de l� � ser bailarina. Os nossos bailarinos s�o professores do projeto. Quando algum deles desponta, trazemos para o grupo. Aqui podem fazer jazz e contempor�neo.
Que hist�rias j� ouviu?
Meninos que saem da droga, que est�o perdidos, que n�o estudam e come�am a se concentrar atrav�s da dan�a. Os professores vivem nos agradecendo. A dan�a ajuda na caligrafia por causa da coordena��o motora. Tamb�m ajuda no respeito ao pr�ximo.
Voc� sempre pensou em dar aulas?
J� era mandona desde crian�a. Dava aula para a minha irm� e todo mundo, desde pequena tinha tend�ncia para ensinar. Em 2014, me formei em pedagogia, eu e In�s Amaral, hoje diretora art�stica do Camale�o. Senti necessidade de estudar para entender a educa��o no Brasil.
O que voc� descobriu?
Temos que insistir, n�o podemos desistir de jeito nenhum. Estamos caminhando devagar. Afinal, sofremos com a escravid�o e a ditadura, que atrasaram a nossa educa��o, mas o �nico jeito de o Brasil melhorar � com a educa��o.
Como a dan�a pode ajudar?
A dan�a � uma ferramenta maravilhosa de educa��o, primeiro pelo autoconhecimento, depois pelo respeito, disciplina, objetivo, meta, foco, cuidado com o corpo. A dan�a traz tudo isso. Dan�a � uma forma de exerc�cio com criatividade.
Voc� tamb�m gosta de criar coreografia?
N�o, nunca me senti confort�vel. Talvez porque tinha que fazer a coisa acontecer, ent�o fiquei focada na parte de gest�o administrativa e art�stica.
O que voc� buscava quando se envolveu com a dan�a?
A meta sempre foi buscar alegria, do cora��o e da alma, e liberdade.
Como o Camale�o marcou a hist�ria da dan�a?
Pelo fato de ser um grupo de pesquisa, que por onde vai quer ter contato com os artistas locais e a comunidade. Os nossos bailarinos, duas mulheres e tr�s homens, est�o juntos h� cinco anos, ent�o isso d� peso para as pesquisas. Assim, contribu�mos para a dan�a mineira se firmar. Al�m disso, dezenas e centenas de artistas maravilhosos passaram por aqui e est�o dando frutos para a dan�a no mundo. � muito gratificante saber que tem gente na Alemanha, Fran�a, B�lgica, Holanda. Agora estamos tentando ir para fora. Tenho vontade de ir para o Velho Mundo, para a Holanda do meu pai, com o grupo todo.
Conte um pouco sobre o mais recente espet�culo do grupo, Verga.
Com dire��o art�stica e coreografia de In�s Amaral, ele fala sobre formas criativas de resist�ncia, inspirado na capoeira. H� quatro anos os bailarinos do Camale�o fazem capoeira com o Mestre Agostinho, do Grupo Ginga, e isso influenciou a nossa linguagem. Capoeira tamb�m n�o � uma forma de resist�ncia no Brasil? Estreamos em Belo Horizonte na Virada Cultural, depois fizemos numa pra�a em S�o Paulo e no foyer do Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro. � um espet�culo de rua.
Por que ir para a rua?
Tivemos a primeira experi�ncia com Chico Pel�cio, do Grupo Galp�o, que dirigiu o espet�culo Horas poss�veis. Esse j� rodou o Brasil, mas � muito dif�cil por causa do cen�rio, que � muito pesado, e as pessoas querem coisa mais simples de transportar. O Verga n�o tem cen�rio, s� os bailarinos, o que estimula a intera��o com o p�blico. No fim, todo mundo entra no cortejo. Mas acontecem imprevistos tamb�m. Na rua estamos sujeitos a entrar um cachorro, um morador de rua, estamos invadindo o espa�o deles. Aqui fizemos na Pra�a Sete, foi uma emo��o. Acho que � o lugar mais m�gico em que j� nos apresentamos, � o s�mbolo de BH. O p�blico se envolveu, foi gratificante demais.
Fazer arte no Brasil n�o � f�cil. O que levou o Camale�o a chegar aos 35 anos?
Muita ra�a. Participamos de todo tipo de edital e procuramos parcerias. O Camale�o funciona muito com parceria, no Brasil todo, para conseguir circular o seu repert�rio.
Em algum momento voc� pensou em desistir?
Em alguns, sim. Agora estamos atravessando momentos dif�ceis no Brasil, muitas companhias desmanteladas. Acho que � um dos mais dif�ceis que j� vivi, mas, com coragem e uni�o, a classe tem que lutar para que a dan�a n�o acabe. Uma andorinha sozinha n�o faz ver�o.
O que faz o Camale�o diferente dos outros grupos de dan�a?
O Camale�o � vers�til e est� sempre aberto a receber pessoas, trocar ideias, a pesquisar o outro. A dire��o escuta, olha no entorno e est� o tempo inteiro pesquisando, descobrindo quais s�o as tend�ncias. Hoje, por exemplo, as dan�as urbanas cresceram demais. N�o � s� olhar, temos que viver aquela ideia, fazer aulas, at� para saber se cabe para o grupo ou n�o.
E o projeto da expedi��o ao Rio das Velhas?
Ganhamos pr�mio no Fundo Estadual de Cultura para fazer uma expedi��o pelo Rio das Velhas, chegando at� perto do Rio S�o Francisco. Vamos pesquisar comunidades ribeirinhas, descobrir quem borda, quem toca, e construir a nossa dan�a baseados nisso. Depois, vamos apresentar para eles dentro de uma chalana e produzir um v�deo de dan�a. Convidamos Jorge Garcia como core�grafo. Ainda falta receber a verba, mas est� tudo combinado para 2020. A �nica �poca em que d� para transitar pelo rio � na cheia, mar�o, abril, depois do ver�o. Agora s� tem pedra, est� muito seco. Estamos indo com o cora��o aberto. � um sonho antigo que tinha.
Qual � o seu objetivo com isso?
Divulgar a dan�a e fazer trocas. Trazer um pouco deles para n�s e de n�s para eles. N�o sabemos o que nos aguarda, temos que chegar perto e ver o que vai ser. Agora estamos colhendo materiais, como se fossem bi�logos pegando mudinhas.
Voc� tem uma hist�ria antiga com Oswaldo Montenegro. Vem mais um cap�tulo por a�?
Nunca perdemos o contato. Ele nos viu dan�ando o Ritmo do cora��o e bateu na nossa porta: quero fazer um espet�culo sobre signos. A partir da�, criamos a Dan�a dos signos. Agora vamos para a quinta parceria, mas, como ele disse, n�o sabemos onde, nem como nem quando. S� sabemos que se chama May� e que a trilha sonora est� pronta. Oswaldo vem uma vez por m�s a BH, mas n�o queremos ter pressa, queremos fazer devagar. Ele � um excelente diretor e contator de hist�ria. � um poeta antes de ser m�sico, est� dando ideias e estamos embarcando, vamos ver aonde vai chegar. N�o queremos colocar data, j� corremos tanto na vida. � uma alegria n�o ter press�o de fazer espet�culo amanh�. H� 42 anos que nos conhecemos, � uma amizade. Ele quase acabou com o meu cora��o quando fez show com Renato Teixeira no Pal�cio das Artes e dedicou a m�sica Velhos amigos a mim.
O que voc� quer para os pr�ximos anos?
Sa�de, alegria e prosperidade com a dan�a. Quero ver o Camale�o feliz dan�ando, todo mundo produzindo, vivendo atrav�s da dan�a, a dan�a circulando pelo Brasil.
Pensa em se aposentar?
Da dan�a, n�o. Estou com muita disposi��o.
