
Ana Cl�udia Quintana Arantes � m�dica geriatra, nasceu em S�o Paulo e teve uma inf�ncia dif�cil. Por ser irm� mais velha e ter que dar exemplo e ajudar a criar as irm�s, sempre foi mais s�ria e reservada. A escolha pela medicina foi desde crian�a, por ver o grande sofrimento da av� com os problemas de sa�de. Sempre teve uma grande inquietude com rela��o � morte e foi, este o caminho que escolheu: ajudar as pessoas a passar por um momento t�o delicado e dif�cil. Mas nunca imaginou que seu trabalho alcan�aria tamanha proje��o, a ponto de seu livro servir de base para uma novela global de grande sucesso. Agora, Ana Cl�udia lan�a seu terceiro livro, o segundo sobre o tema, no qual narra hist�rias reais em que a proximidade do fim da vida revela os momentos de maior vulnerabilidade do ser humano.
De onde � e como foi sua inf�ncia?
Sou Ana Claudia de Lima Quintana, o Arantes veio do primeiro casamento, no qual tive dois filhos– Maria Paula, de 24 anos, e Henrique, de 20. Meus pais s�o Cec�lia Maria e Lima e Jacir Quincana Gomes. Sou a filha mais velha e tive duas irm�s, a do meio morreu em 2013. Nasci em S�o Paulo e at� os seis anos minha vida foi normal, mas depois ficou dif�cil por causa da hist�ria da minha irm�, que nasceu com defici�ncia neurol�gica e minha m�e teve que dedicar totalmente a ela, ent�o fui criada pela minha av�, Maria Caua. Passamos por um tempo bastante dif�cil, porque meu pai perdeu tudo. Vivemos uns quatro anos em casa de parentes, depois fomos morar em uma zona rural, e estudei em escola rural. Minha av� tinha um problema arterial importante, n�o chegava sangue nos seus membros inferiores, tinha uma obstru��o arterial difusa e ela teve que amputar as pernas por conta de feridas que tinha. Sentia dores fort�ssimas e �s vezes pedia para morrer. Por causa do seu sofrimento, desde muito pequena, uns 5 ou 6 anos de idade, j� dizia que seria m�dica, porque queria cuidar da dor dela. Continuei estudando, e consegui entrar na Faculdade de Medicina de S�o Paulo.
"Tenho muita inquietude com rela��o ao sofrimento humano, o fim de vida e a morte"
Pelo visto, era muito estudiosa.
Era a filha mais velha. Naquela �poca, era obriga��o dos irm�os mais velhos ser exemplo para os outros, e ajudar a tomar conta deles, n�o foi uma inf�ncia f�cil. Era mais s�ria, reservada. Gostava de brincar de boneca, era t�mida, e quando minha av� amputou as pernas, tamb�m amputei as pernas das minhas bonecas. A �nica coisa de que gostava mesmo era de dan�ar e de escrever. Com 11, 12 anos comecei a escrever di�rio e poesias.
Por que geriatria?
Foram dois motivos. Gosto muito de estudar, e pensei se fizesse cardiologia, por exemplo, para sempre, seria muito chato. Na geriatria eu veria cardio, peneumo, gastro, psiquiatria, neurologia, etc. Ent�o tudo � muito encantador. Poderia ter feito cl�nica m�dica ent�o, por gostar dessa abrang�ncia toda na medicina, mas a� entra o segundo motivo. Tenho muita inquietude com rela��o ao sofrimento humano, o fim de vida e a morte, pensei que estando na geriatria poderia me aproximar das pessoas que tivessem mais consci�ncia da morte delas e tivessem mais habilidade em se tornar serenas nesse processo. A geriatria ia me trazer a resposta dessa inquietude minha com rela��o � morte. Por isso a minha escolha.
O que a levou a ter este olhar diferenciado com a morte?
Foi ser capaz de olhar nos olhos das pessoas na hora da morte. Quando voc� consegue olhar nos olhos voc� v� que tem um chamado, algo que pede a voc� para ajudar e n�o abandonar. E para n�o abandonar uma pessoa que est� morrendo tem que saber o que est� acontecendo com ela. Ouvir, cuidar do sofrimento. Foi por a� o meu caminho.
Como e quando come�ou seu trabalho para fazer as pessoas aceitarem com naturalidade este momento da vida?
Terminei a resid�ncia m�dica em 1997, comecei assist�ncia domiciliar. Eu era muito jovem e fui chamada para chefiar o servi�o. Criamos o Grupo de Cuidados Paliativos dentro da Assist�ncia Domiciliar, em 1998. Em 2000, entrei no Hospital Albert Einsten para ser assistente do grupo de oncologia para fazer esse cuidado paliativo, e dentro deste grupo comecei a dar aulas dentro do hospital, no ensino continuado. As aulas eram bastante interessantes. Por conta do resultado e retorno deste trabalho, o hospital me convidou para implantar pol�ticas de assist�ncia � dor e cuidados paliativos, em 2005. Treinei o hospital inteiro e comecei a ter uma voz mais ativa perante meus pares. Em 2007, fundei a Casa do Cuidar e comecei a dar aulas em um curso de p�s-gradua��o dentro da Casa. Comecei a escrever, a dar entrevistas, fui convidada a dar aulas em outras universidades, at� que fui convidada para fazer o TED, em 2012. A partir do TED, a express�o na sociedade se tornou bastante conhecida, porque falei da morte de uma forma compreensiva e n�o de forma t�o t�cnica como � na medicina. A partir a� passei a ter uma sequ�ncia de grandes convites para aulas, palestras, escrever livros. A maior visibilidade veio com o TED.
Teve resist�ncia por parte de pacientes, familiares ou colegas?
A resist�ncia veio por parte da sociedade e dos profissionais de sa�de, nunca dos pacientes. Eles sabem o valor que isso tem. N�o entro para cuidar de uma pessoa que n�o quer que eu cuide dela. N�o trabalhei em nenhum servi�o que tinha que ver um paciente na marra. As pessoas eram encaminhadas para mim. Na �poca em que trabalhei no Hospice – Unidade de Cuidados Paliativos Exclusivos, no Ja�an�, as pessoas eram encaminhadas para l� e n�o iam felizes, porque elas preferiam n�o estar naquelas condi��es, mas uma vez que estavam l� come�avam a receber todos os cuidados que damos no tratamento e questionavam por que n�o tinham sido encaminhadas antes. Falavam que seus parentes doentes nunca tinham ficado t�o bem antes. Tem um princ�pio de resist�ncia por associar cuidado paliativo com morte, mas assim que percebem que o meu trabalho � cuidar deles e faz�-los se sentirem melhor at� que a morte chegue, n�o tem mais resist�ncia. A pessoa n�o escolhe sofrer. N�o pode achar que com o cuidado paliativo a pessoa n�o vai morrer. A pessoa vai morrer com ou sem cuidado paliativo. A diferen�a � que com cuidado paliativo ela consegue viver melhor. A resist�ncia maior que existe ainda � por parte dos profissionais de sa�de, os m�dicos ainda fazem uma grande barreira.
Explique um pouco o que s�o cuidados paliativos.
S�o cuidados multidimensionais (f�sica, emocional, familiar, social e espiritual) desenvolvidos e oferecidos por equipe multiprofissional capaz e qualificada � pessoa portadora de doen�a que amea�a a continuidade da vida desde o seu diagn�stico at� o momento de sua morte, se completando com o suporte ao luto oferecido � fam�lia e amigos. Nesse trabalho, todos os recursos diagn�sticos e terap�uticos dispon�veis s�o utilizados como amplo suporte � qualidade de vida do paciente e de sua fam�lia para que acessem o momento vivenciado com sentido, conforto, valor e significado. O objetivo � dar al�vio, prevenir o sofrimento, para viver a vida em plenitude at� seu �ltimo instante.
Quando abriu a Casa Cuidar?
A Casa foi fundada em 2007. Come�amos a dar os cursos em 2008. Devemos ter formado cerca de 700 profissionais em n�veis mais avan�ados, e mais de dois mil em cursos de curta dura��o. Meu trabalho na Casa � dividido em tr�s momentos: sou coordenadora de ensino no curso de p�s-gradua��o e nos demais cursos que s�o dados l�; assist�ncia e suporte ao luto para familiares e pacientes; e foco no Cuidando de quem cuida. Cuidar dos profissionais que cuidam das pessoas com doen�as que amea�am a continuidade da vida � um projeto muito forte dentro da Casa que permeia toda minha hist�ria, meu trabalho tem muito dessa for�a.
Fale um pouco do seu primeiro livro.
Muita gente pensa que foi A morte � um dia que vale a pena viver, mas foi um de poesias, Linhas pares, publicado em 2012, uma publica��o aut�noma. A primeira edi��o do A morte � um dia que vale a pena viver saiu em 2016, baseado no TED. Em 2019, lancei a segunda edi��o, o Hist�rias lindas de morrer, com aspectos relacionados com o tema morte, dilema humano, perda, luto, conversar sobre isso e tudo que est� relacionado a isso. O livro traz relatos no atendimento de pacientes que mostram como a proximidade do fim da vida deixa importantes li��es para os pr�prios pacientes, familiares e profissionais da sa�de.
� pioneira em um tema que � tabu para as pessoas. Quais as dificuldades enfrentadas e como se sente vendo aonde chegou?
� um tabu, � verdade, � uma realidade. S� fico na d�vida se � um tabu mesmo e n�o sei se acabei com ele. Tabu � tabu. Por exemplo, tabu do sexo, se voc� entrar nessa, n�o transa. Tabu do aborto, se n�o concorda, n�o aborte. Agora, a morte, n�o tem a op��o n�o morrer. Talvez o tabu seja falar sobre a morte. N�o tem a op��o n�o morrer, n�o existe isso, todo mundo vai passar por isso. As barreiras s�o imensas, mas quando sabe que o caminho que escolheu � o seu caminho, n�o tem muita preocupa��o com o que os outros est�o dizendo. N�o foi uma quest�o forte para mim ter ou n�o ter a aprova��o das pessoas. � necess�rio. N�o d� para dizer lindo, que trabalho maravilhoso, que horror. Isso � s� opini�o de quem est� de fora. � um trabalho necess�rio, eu sei fazer e sei ensinar como faz. N�o � obrigado todo mundo aprender. Quem n�o quer, n�o aprenda. Tem muita gente que quer. Eu segui meu caminho � revelia da opini�o de todos. Na �poca teve uma hist�ria bem legal. Quando aceitei trabalhar no Hospice do Ja�an�, tinha pedido demiss�o do Albert Einsten. Isso foi uma hecatombe na fam�lia e entre os amigos. Acharam que eu estava louca.
E por que voc� saiu?
N�o fazia sentido eu continuar num lugar onde n�o teria espa�o para realizar meu melhor potencial. Estava entre eu ficar l� ou ver se conseguiria ir para outro lugar, ou me dedicar mais � Casa do Cuidar, ou eu mesma montar um hospice. Estava neste momento dentro da minha carreira. N�o dava para ficar l� pensando s� no futuro, tinha que pensar no momento presente para me sentir realizada no que eu sei fazer. Fui trabalhar no Ja�an�. As pessoas me diziam que no hospital todos estavam com pena de eu n�o estar mais l� e n�o estar ganhando bem, de eu ter sa�do do melhor hospital da cidade e ter ido para o Ja�an�, em um hospital de retaguarda. Mas se as pessoas soubessem o quanto eu estava feliz de ir pra l�. E todos falavam que a Ana Cl�udia seria esquecida, porque no Einsten eu era chamada para congressos etc., mas abri m�o do lugar de destaque, ent�o seria esquecida. No ano em que pedi demiss�o, fui primeira p�gina da Veja. A� fui convidada para o TED. Quando voc� sabe o caminho que vai trilhar as portas se abrem. � revelia do que todos poderiam ter prognosticado na �poca em que eu tomei a decis�o, foi diferente. Se me perguntarem se eu esperava por isso, n�o, porque n�o era uma coisa que eu trabalhei para isso, trabalhei para dar assist�ncia �s pessoas que precisavam de mim. Eu tenho o dom da palavra? Consigo me expressar bem? Sim, e talvez isso tenha aberto muitas portas, por causa da compreens�o do outro. Eu n�o imaginava que fosse dar nisso. ‘Meu livro vai ser usado na novela das sete’. Se algu�m falasse isso comigo, tipo uma bruxa, ou uma leitura de tar�, ia rir e achar que era palha�ada.
E como foi ter seu livro como base para a novela e ver o sucesso que ela fez?
Foi muito legal. As pessoas falavam “nossa, sua assessoria de imprensa � maravilhosa”. Eu respondia que minha assessoria de imprensa se chama fofoca. Boca a boca, uma coisa fortuita. Uma ex-aluna, do Rio, amiga de uma diretora da Globo, me indicou para fazer uma palestra sobre morte. Concordei, com relut�ncia. Era um workshop para 150 pessoas que eles fazem antes do in�cio de uma novela. Acho que � um dos �nicos momentos em que est�o produ��o, elenco, diretores, autores, todos em um mesmo lugar. E eles falam sobre os temas principais que ser�o abordados na novela, as tramas principais e paralelas. Teria uma palestra sobre morte, feminismo, sub�rbio e outra sobre basquete. A mo�a que ia falar sobre feminismo seria a primeira, mas ela ficou muito nervosa, teve tomar �gua com a��car, e o diretor veio falar comigo, se eu poderia come�ar. Achei �timo, porque tinha que voltar para Guarulhos porque ia para o Cear� depois. Eu teria 20 minutos, mas teve um atraso e pediram para eu falar em 15. Tudo bem. Comecei a falar, as pessoas ficaram meio paralisadas. Com 15 minutos n�o d� para enrolar, tem que falar direto, � “p� no peito”. Falei sobre como a gente morre, sem ser por acidente, ou bala perdida, sequestro, atropelamento. Ficaram muito tocadas porque fiz a met�fora da dissolu��o dos elementos. Agradeci muito os autores e dei meu livro de presente para a Grazi Massafera e para o Ant�nio Fagundes, dizendo que talvez poderia contribuir com a constru��o do personagem. E fui embora. Uns dias depois, recebi uma liga��o da Globo perguntando se eu poderia estar presente no dia do lan�amento da novela para a coletiva de imprensa. N�o sabia o que significava aquilo, mas fui. Quando cheguei l�, os dois autores da novela estavam com meu livro nas m�os pedindo meu aut�grafo. Disseram que j� tinham adiantado uns 20 cap�tulos, mas jogaram tudo fora e reescreveram depois de ler meu livro, porque eu tinha explicado muito melhor. Que era para eu me preparar porque teria muito spoiller do meu livro, muito pl�gio, e que o livro ficaria de material principal de consulta para a novela inteira. E assim foi. Conversei com o ator Jorge Lucas, que fez o m�dico, ele foi brilhante. Eu n�o consegui acompanhar a novela, porque trabalho no hor�rio, mas recebi os printtings de tela, trechos de grava��o. Foi impec�vel. N�o dei assessoria, s� entreguei o livro. A m�dia de audi�ncia era de 23 milh�es de pessoas por noite ouvindo um paciente em final de vida falar. O que eu fiz com isso foi chorar, de agradecimento.
O que o segundo livro traz de novo?
O primeiro livro � o modo de fazer, o segundo � o que acontece quando voc� faz. S�o as hist�rias dos pacientes que cuidei com a forma que proponho no primeiro livro, de voc� lidar com esse tema e com esse cuidado. Ent�o, pacientes de todas as classes sociais, e de todos os servi�os poss�veis, hospital, casa, consult�rio e hospice.
O que � mais importante para viver bem os �ltimos dias de vida e encarar bem a morte?
Em primeiro lugar, tem que ter seus sintomas de sofrimento aliviados, principalmente o f�sico, porque n�o d� para achar linda a vida se est� morrendo de dor. Tem que ter pessoas capazes de ouvir voc�, seus desejos, vontades, medos, e essas pessoas darem conta de continuar ao seu lado mesmo se voc� tiver que enfrentar momentos delicados, de muita fragilidade.
O que os familiares precisam para passar por esse momento?
Os familiares v�o conseguir fazer o melhor que puderem se tiverem seguran�a de que as pessoas que amam est�o bem cuidadas. � muito dif�cil aceitar a morte de algu�m que amamos. Nesse contexto que proponho, em vez de chorar, reclamar, ou ficar sofrendo pela morte, voc� escolher permanecer do lado e ser feliz enquanto a pessoa est� viva. Porque muita gente perde tempo negando que vai morrer, e esse tempo que voc� est� negando n�o est� vivendo, n�o est� aproveitando. A fam�lia sofre e sofre muito, mas vai sofrer menos se perceber que a pessoa � considerada um ser humano e n�o uma doen�a.
Como est� trabalhando a solid�o com os pacientes em confinamento?
Preferiria ser parte das pessoas que n�o precisam sair de casa, porque estaria mais segura, se eu pudesse ficar em casa 100% do tempo, mas n�o posso, porque sou m�dica. Tenho que sair para ver os doentes e cuidar deles. As pessoas est�o muito assustadas, mas as que est�o bem orientadas conseguem entender a import�ncia desse isolamento social, que � um tempo que vai passar, n�o estamos em uma pris�o perp�tua. Estamos em um tempo dif�cil, mas que vai terminar. � muito desafiador fazer cuidados paliativos com todas essas restri��es, porque dentro dos conceitos de cuidados paliativos tem a presen�a, afeto e contato humano, e agora est� feito atrav�s do olhar. Eu estou toda paramentada para entrar no quarto de um doente. Ent�o, o m�ximo de contato que elas conseguem ter comigo � pelo olhar. Isso � desafiador, porque n�o se pode tocar na pessoa, se n�o for um toque t�cnico porque est� de luva, n�o pode ter um toque afetivo. E s� pode abra�ar as pessoas por palavras, e sorrir com o olhar. E estamos sendo pombo-correio de conversas entre paciente e fam�lia.
Pensa em expandir seu trabalho? Quais seus planos para o futuro?
Sim, pesando expandir para ficar ao alcance da maior parte das pessoas que precisam dele, e continuar escrevendo, porque tem muita coisa dentro dessa minha cachola para ser compartilhada. Continuar o trabalho de desenvolvimento humano nessa �rea dos cuidados paliativos e comunica��o compassiva, Cuidando de quem cuida, que s�o realiza��es muito necess�rias. Espero estar saud�vel para continuar a trilhar este caminho que estou trilhando.