A professora e educadora Edna Roriz, e dona de uma das escolas que inovaram na did�tica do ensino, � o exemplo vivo de quem venceu pelo conhecimento e estudo. Nasceu em uma fam�lia pobre, mas desde pequena sempre foi incentivada a aprender. Come�ou a estudar viol�o aos 6 anos, e aos 12 anos come�ou a dar aulas de viol�o. A vida se encarregou de lev�-la onde est� hoje. Queria ser f�sica nuclear, mas se tornou professora, das boas. Seu cursinho chegou a ter fila de espera de seis anos. Para conseguir implantar o que achava importante na educa��o, abriu um col�gio, e aos 50 anos voltou para a academia, onde foi estudar sobre educa��o, fazendo mestrado e doutorado. Conhe�am a competente mulher que sempre esteve � frente de seu tempo

"N�o � a quantidade de conhecimento que voc� tem que te torna uma pessoa melhor. � preciso que tenha uma s�rie de pr�-requisitos antes"
Nasceu em Belo Horizonte?
Sim, eu e minhas duas irm�s, M�rcia e La�s. Eu sou a mais velha das tr�s. Meu pai era contador, e minha m�e tem uma das coisas que fazem falta nas fam�lias, o capital cultural.
Como ela adquiriu esse capital cultural?
Meu av� era de Passagem de Mariana, e mal sabia escrever e ler em portugu�s. Quando os ingleses vieram para o Brasil e ficaram com a mina, meu av� materno aprendeu ingl�s com muita facilidade, por isso foi contratado como mordomo. Apesar da vida pobre que tinha, adquiriu requinte, porque os ingleses ensinaram tudo, e como trouxeram mob�lias, lou�as, livros e discos da Inglaterra, ele teve acesso a tudo isso. Aprendeu o que era bom, o requinte de uma mesa bem-posta, apreciar m�sica cl�ssica e �pera, at� ganhou um gramofone. Os ingleses venderam a mina para a fam�lia de Benjamim Guimar�es, da regi�o de Pirapora, que mexia com ferro-velho, e na �poca da Segunda Guerra enriqueceu com a venda metais para fazer armas, balas e muni��es. Contrataram meu av� e ele levou todo o requinte ingl�s para os Guimar�es. Tem certas coisas que t�m que acontecer na primeira inf�ncia porque aprendemos e fica para sempre, � o famoso ditado: a educa��o � no ber�o. Foi exatamente isso que aconteceu com minha m�e, viveu em uma sociedade extremamente pobre, mas, ao mesmo tempo, extremamente requintada. Nasceram os filhos dos Guimar�es, e as meninas Maril�ia, Maria Urbana e Terezinha se tornaramgrandes amigas da minha m�e. Como n�o tinha escola boa na regi�o, traziam professores de fora e chamavam mam�e para fazer parte dessas aulas. Apesar da nossa inf�ncia pobre, mam�e tinha um aprendizado n�o formal, mas muito rico, e passou para n�s. Essa � uma grande riqueza. Esse capital faz falta. Quem tem, avan�a, tem sede do saber, quer aprender sempre mais, quem n�o tem, faz s� para o gasto. A Maril�ia viajava e trazia livros para a minha m�e, contava das viagens. O grande sonho de minha m�e era viajar, e assim que come�amos a poder um pouco, ela estava sempre pronta para viajar. Queria conhecer Nova York, Roma, Paris, porque era aquilo que ela tinha estudado, visto e ouvido nas hist�rias da amiga.
Ela incentivava voc�s?
Muito. Estudei piano e viol�o desde os 6 anos por incentivo dela. Ela mesma aprendeu a tocar violino quando era pequena, porque os Guimar�es proporcionaram isso. Dona Iolanda Guimar�es acompanhava minha evolu��o na m�sica e nos estudos. Sempre me mostrava que seria por meio do estudo que conseguiria avan�ar e crescer. Todas temos gosto pelo estudo e pela leitura, por querer aprender, pelo saber. Isso se aprende se a fam�lia valoriza a educa��o. Se � valor para os pais, certamente ser� valor para o filho.
O que queria ser quando crescesse?
Queria fazer f�sica nuclear e escolhi geologia, porque naquela �poca est�vamos no auge com a Nuclebras, Angra 1 e Angra 2, o petr�leo tamb�m estava no foco. Sempre tive habilidade na �rea de exatas: matem�tica, f�sica e qu�mica, e queria associar isso � ci�ncia.
Chegou a exercer?
N�o. Quando estava com 12 anos, minha professora de viol�o pediu que desse aula para crian�as por ser muito paciente. Aceitei e fiquei cheia de alunos. Isso atraiu alunos idosos, que tinham vergonha de ter aula com adultos. Quando estava com 16 anos – a maioria dos alunos tinha a minha idade – os alunos chegavam na minha casa e eu estava estudando j� para o vestibular. Eles viam e pediam minha ajuda, porque tinham dificuldade na mat�ria. Com isso, comecei a ensinar o que eu sabia, matem�tica, f�sica, qu�mica, mas nada de maneira formal. Acabamos criando um grupo de estudos no fim de semana. No final, eu estava praticamente dando aulas. Fizemos vestibular e todos passaram. A� come�ou o boca a boca, e outros alunos chegaram. Com isso, fui largando o viol�o e nasceu o cursinho.
O estudo virou neg�cio?
Virou. A vida me levou a isso. As pessoas se interessavam pelas aulas, entendiam tudo. E as aulas eram na minha casa.
Sua did�tica � inata?
Sim. Tanto que eu n�o tenho forma��o em pedagogia. N�o sou licenciada, para dar aula tenho que ter autoriza��o especial. Aprendi matem�tica, e por isso sei ensinar. � muito dif�cil ensinar uma coisa que voc� n�o sabe. Tenho prazer em dar aula. A demanda continuou aumentando. Em uma fam�lia pobre, eu querendo ter as coisas, mas com limita��o financeira, trabalhar e ter o pr�prio dinheiro � uma coisa que encanta. Quis trabalhar e aproveitei essa oportunidade.
Seu cursinho era famoso por todo mundo passar no vestibular.
Como chegou a isso?
Acho que era porque sabia ensinar, e gastava o tempo que fosse preciso para preparar o aluno. Tive alunos extremamente aplicados. E alunos que eram caso perdido, a fam�lia j� tinha entregado para Deus, e quando estudaram comigo se transformaram, de forma que ningu�m acreditava. Quando chegava algum aluno mais fraco ou desinteressado, via como ele estava e falava com os pais o tempo que levaria para prepar�-lo, e passavam. Acredito que tudo � uma quest�o de conhecimento da mat�ria. Voc� s� consegue ensinar o que voc� sabe.
Quando o cursinho saiu da casa de seus pais?
Quando minha av� adoeceu gravemente, 1987, e veio a falecer. Vi que ela precisaria de um ambiente mais calmo, n�o dava mais para ficar naquele entra e sai e o telefone tocando o tempo todo. Aluguei um barrac�o que tinha ao lado da minha casa e passei o cursinho para l�.
Verdade que tinha fila de espera para entrar no seu cursinho?
Verdade. Chegou a ser de seis anos, porque n�o abria m�o do n�mero limitado de alunos em sala. Quando decidi fechar o cursinho, tive que mant�-lo por mais seis anos para atender � fila de espera.
Quando pensou em abrir a sua escola?
Quando dois pensamentos come�aram a me incomodar. O primeiro � que comecei a interessar muito pela educa��o, e questionava por que pessoas que estudavam em escolas t�o tradicionais, de prest�gio, precisavam me procurar na hora de passar no vestibular. Quando eu dava aula, via que tinham grande potencial, mas eram muito aqu�m do que poderiam ser. Foi nessa �poca que tive muitos alunos que eram capazes, mas n�o brilhavam, porque tinham um ensino mediano. Quis mudar isso. Tive a ideia de abrir uma escola e oferecer um ensino de forma que o aluno n�o precisasse de mais nada que n�o fosse a pr�pria escola. O segundo pensamento foi o aumento muito grande de faculdades e como eu vivia daquele cursinho – j� tinha desistido da f�sica nuclear e da geologia –, n�o queria parar de trabalhar, e se continuasse s� com pr�-vestibular, em determinado tempo poderia n�o ter mais alunos. Mas existem cursinhos at� hoje. Com honestidade, n�o � necess�rio. Qualquer aluno pode ligar para uma faculdade particular e pedir para fazer um vestibular agendado. Faz uma reda��o e entra. Entrar em medicina em um pa�s como o nosso, com uma mensalidade de R$ 12 mil, n�o � dif�cil se o pai pode pagar. Para quem n�o pode, a� sim, vai ter que disputar a vaga em uma faculdade p�blica, mas percebemos que h� um descaso muito grande com a pr�pria faculdade p�blica e n�o h� uma perspectiva de melhora. Existe toda uma pol�tica de mercado para manter a ideia de que � dif�cil. Dif�cil � entrar em uma universidade federal.
Conseguiu criar esta escola que oferece educa��o eficaz e dispensa cursinho?
Consegui sim, mas percebo que ainda n�o � uma vis�o que as pessoas conseguem entender. Existe uma diferen�a do que eu percebo como importante na educa��o para o que as pessoas t�m como prioridade, porque as pessoas est�o acomodadas em seus conceitos. Muitos pais acham que para o col�gio ser bom o filho tem que ter muito dever para fazer em casa, precisa de aula particular, e de estudar no fim de semana. Mas � exatamente o contr�rio, ele j� paga o professor e o col�gio para ensinar tudo l�, n�o deveria ter mais nenhum custo extra e o aluno deveria poder descansar e conviver com a fam�lia, porque aprendeu tudo na aula.
Disse que o ensino � ultrapassado. Como v� o ensino hoje no Brasil?
S� a educa��o muda um pa�s, mas � preciso que o pa�s mude para que a educa��o possa vir a transform�-lo, para isso o pa�s precisa valorizar a educa��o. As fam�lias querem seus filhos formados, com diplomas, mas a dedica��o, o capital cultural, o que n�o � formal, isso n�o � prioridade. A pr�pria escola faz o lobby para isso n�o mudar. Temos uma escola aonde as pessoas v�o para aprender a responder, quando na verdade a gente precisa aprender a perguntar, porque s� quando voc� se pergunta � que sente necessidade de uma resposta. Se a pergunta n�o desperta interesse, n�o vai querer responder. Isso tudo enxerguei h� 20 anos. Quando coloquei empreendedorismo na minha escola, a Secretaria de Educa��o perguntou do que se tratava, porque a palavra era em ingl�s. Tive que explicar. Hoje, fala-se de empreendedorismo o tempo todo. Temos um atraso, perfeito para os s�culos 18 e 19, mas completamente ineficaz para os s�culos 20 e 21.
Temos como trazer essa educa��o para o s�culo 21?
Creio que sim. Fala-se muito, mas nada muda. A escola hoje � um grande instrumento de controle, como um convento, um quartel, um hospital. S�o lugares onde se colocam pessoas para aprender a obedecer, na for�a. A motiva��o da escola no primeiro momento foi ensinar a ler para ter acesso �s Escrituras. O grande desenvolvimento da escola foi para buscar as pessoas para ter um esp�rito melhor, mas, ao mesmo tempo, era grande instrumento de controle, porque exercia um poder, porque ensinava a pessoa a ler mas sem dar a ela a capacidade de interpretar. Usavam para ter medo de um Deus que � bravo, exige uma s�rie de coisas, quando, na verdade, o bem viver � se voc� n�o fizer nada de mal, j� est� de bom tamanho. Mas a educa��o do s�culo 17 servia para deter o poder nas m�os da Igreja Cat�lica, � a hist�ria. Depois veio o poder do mercado, do capital. Precisava ensinar um of�cio, mas nunca dando o acesso de conhecer o processo inteiro, para ter controle, � uma forma de ter poder sobre o outro. Esse tipo de educa��o prepara pessoas para obedecer, n�o pensar e seguirem umas �s outras. No s�culo 20, continuou com outros tipos de manipula��o. Por isso temos o grande desn�vel e a grande desigualdade na educa��o. � preciso acreditar no crescer e vencer com a educa��o. Eu sou fruto disso, cresci inclusive financeiramente pelo conhecimento. A escola sempre uniu os iguais, n�o deixam ter a diversidade nas escolas e criam mecanismos de segmenta��o mais fortes. Essa educa��o n�o inclui a possibilidade de admitir o erro, a experimenta��o, e nem a aceita��o do diferente. Sabemos que quanto mais nos misturamos, mais forte a ra�a fica e mais rico � o aprendizado, porque temos pensamentos diferentes.
Qual foi o primeiro impacto da pandemia?
Percebemos que n�o fizemos o dever de casa. Essa n�o � a primeira pandemia que o mundo sofre, e n�s est�vamos cal�as curtas, a ci�ncia estava totalmente deficiente, com pessoas acostumadas a memorizar as coisas, mas para fazer uma vacina ´ï¿½ preciso ser criativo, inventar uma coisa que n�o existe. As escolas su��as est�o investindo em aulas de arte para desenvolver a criatividade dos alunos. Talvez, agora, consiga alcan�ar o grande objetivo que tinha na educa��o, que era exatamente mostrar esse vi�s necess�rio, que eu acreditava h� 20 anos e continuo acreditando hoje. Eu e mais meia d�zia pens�vamos assim e �ramos vistos como vision�rios. Hoje, se eu repetir as mesmas coisas, talvez comecem a achar que � vi�vel.
Os alunos est�o reclamando que as aulas virtuais s�o chatas e mon�tonas. Tem como mudar isso?
N�o existe forma��o no mundo para o professor dar uma aula diferente da que ele dava nos s�culos passados. Ningu�m preparou ele para ser diferente. A escola � desinteressante, chata e pouco atraente. A evas�o n�o acontece s� nas classes menos favorecidas. E o motivo n�o � a necessidade de trabalhar. � dif�cil voltar para escola porque ela � muito chata. Re�ne iguais, ou seja, � mon�tona, porque s� tem um pensamento reinante, e n�o lhe d� possibilidade de desenvolver cr�tica. Os professores s�o desmotivados, porque muitos aprendem a dar aula, mas n�o dominam a disciplina. Para encantar o aluno, o professor tem que ter um grande conhecimento do que est� ensinando. As escolas de pedagogia precisam mudar. O aluno tem curiosidade, vontade e desejo, e n�s minamos isso. O aluno que pergunta muito � inc�modo na sala. O pr�prio professor pede para ele deixar os colegas perguntarem. � s� saber conduzir para que as perguntas despertem debate e uma discuss�o rica. Com isso, criaremos pessoas aut�nomas. Virtualmente � mais cansativo, por isso a aula precisa ser mais instigante, fazer o aluno falar, sem medo de errar, porque o erro nos leva ao acerto. Precisamos desenvolver a criatividade porque isso que traz inova��o.
Como resolver?
Precisamos que a educa��o deixe de ser pol�tica de governo e passe a ser pol�tica de Estado. Se � de governo, a cada quatro anos vai mudar tudo, um faz e outro desfaz. Quando � pol�tica de Estado, ela tem continuidade, independentemente do governante. No nosso pa�s � pol�tica de governo.
Qual o presente que voc� se deu aos 50 anos?
Me dei o direito de estudar educa��o para ver se tudo o que eu penso, que est� na contram�o do que eu vejo e do que os pais querem da educa��o, faz sentido na academia. Precisamos mudar a educa��o porque precisamos de empregabilidade para nossos filhos, precisamos que eles entrem na faculdade e saiam. Meninas de 30 anos n�o est�o preocupadas em fazer dois ou tr�s cursos, fazer mestrado e doutorado; se existir alguma assim, est� fora da curva. A maioria se forma e quer um emprego de chefe. Aos 50 anos, com quase 40 anos de sala de aula, decidi fazer mestrado e depois doutorado. Busquei professores que eu queria ter, e fui para a PUC. Queria compreender a educa��o e ver se estava t�o longe assim do pensamento dos acad�micos. Minha pesquisa foi sobre o que precisa ter dentro de uma sala de aula, no processo de educa��o. Os educadores e a educa��o alem�. Estudando o porqu� de pessoas t�o evolu�das e t�o organizadas usarem a ci�ncia para matar as pessoas. Os grandes avan�os cient�ficos primeiro foram usados para matar, e depois, �s vezes, usados como efeitos colaterais para curar. A bomba at�mica primeiro matou milhares de pessoas. Se hoje a radioatividade serve para matar o tumor, antes disso deixou muita gente com c�ncer. Existe toda uma ambiguidade na pr�pria forma��o acad�mica e no quanto vai usar o que se aprende em uma coisa que melhore o mundo ou traga mais controle sobre o outro. N�o � a quantidade de conhecimento que voc� tem que o torna uma pessoa melhor. � preciso que tenha uma s�rie de pr�-requisitos antes, para que o conhecimento te torne melhor. S�o os princ�pios morais, de fam�lia, recebidos desde a primeira inf�ncia.