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Gustavo Penna encara o projeto mais complexo da sua carreira em Brumadinho

Autor do projeto do Memorial Brumadinho, o arquiteto traduz o desejo das fam�lias de eternizar a hist�ria das v�timas e n�o deixar a trag�dia ser esquecida


25/07/2021 04:00 - atualizado 26/07/2021 10:07

Gustavo Penna une técnica e emoção no projeto(foto: Pedro Nocoli/Divulgação)
Gustavo Penna une t�cnica e emo��o no projeto (foto: Pedro Nocoli/Divulga��o)

Um projeto que envolve cabe�a, alma e cora��o. Gustavo Penna fala do Memorial Brumadinho com a sensibilidade de quem se solidariza com a dor das fam�lias e se coloca como parte desta hist�ria. Inserido nas montanhas de Minas Gerais, o espa�o, que h� dois meses saiu do papel, materializa a dif�cil miss�o do arquiteto de denunciar todos os horrores que aquelas terras testemunharam. Um memorial para ningu�m se esquecer da trag�dia e conhecer as 272 vidas engolidas pela lama.
 
Gustavo deixa claro que o projeto n�o celebra a morte. Pelo contr�rio, cria um espa�o para valorizar a hist�ria da vida daquelas pessoas e ajuda a transformar a dor em uma for�a construtiva.
 
Refletindo sobre o papel do memorial, o arquiteto fala em duas mortes. A biol�gica, que ocorreu naquele dia, quando pessoas com datas de nascimento diferentes tiveram a mesma data de morte, em segundos. A outra morte, para ele ainda pior, seria o esquecimento. “� aqui que o memorial encontra sua miss�o. Nenhuma daquelas fam�lias vai sossegar enquanto n�o existir um lugar que reverencie as pessoas queridas que elas perde- ram. Sen�o a vida n�o serviria para nada.”
 
O monumento, chamado de 'cabeça que chora', terá as curvas de nível de Córrego do Feijão impressas em suas faces(foto: GPA&A/Divulgação )
O monumento, chamado de 'cabe�a que chora', ter� as curvas de n�vel de C�rrego do Feij�o impressas em suas faces (foto: GPA&A/Divulga��o )
 
O memorial n�o deve ser visto pelo ponto de vista da mat�ria. O que se quer, com o projeto, � criar o que Gustavo chama de continente, onde o que mais importa � o seu conte�do. Nesse caso, como ele diz, um conte�do de dor, den�ncia, alerta, revolta, menos-valia, frustra��o. “Comparo com a hist�ria do vaso. Voc� olha para um belo vaso, mas o que d� sentido a ele � o seu conte�do, o que ele carrega.”
 
Mesmo para um arquiteto vivido e com muita hist�ria, que sabe bem trabalhar simbolismos, o desafio de materializar sentimentos em Brumadinho � “imenso”. Gustavo chega a dizer que este � o projeto mais complexo da sua carreira, o que mais exigiu dele e da equipe. “Como � dif�cil transformar algo imaterial, que � um sentimento, num ambiente tridimensional. Voc� n�o chega e fala: me d� uma garrafa de saudade, um pacote de amor, tr�s quilos de amizade. Essas coisas n�o s�o quantificadas.”
 
O mais importante em um projeto como este, na vis�o do arquiteto, � se entregar, ter humildade, despojamento e estar pronto para ouvir. Para ele, a escuta � fundamental. S�o as conversas que v�o ditando a tridimensionalidade e erguendo as constru��es. “N�o s�o as pessoas que fazem arquitetura, s�o as palavras. Meu av� era poeta, ent�o sou ligado � hist�ria da palavra e acho que ela te d� pistas maravilhosas”, analisa. “Se falar leveza, levanto toneladas de concreto no ar.”
 
As obras começaram em maio e a previsão é inaugurar o memorial até o fim de 2022(foto: GPA&A/Divulgação)
As obras come�aram em maio e a previs�o � inaugurar o memorial at� o fim de 2022 (foto: GPA&A/Divulga��o)
As conversas envolveram familiares das v�timas, a comunidade e os bombeiros que “trabalharam naquele ch�o no momento seguinte, que mergulharam naquela lama quando tudo virou uma mesma cor”. Gustavo conta que j� chorou abra�ado a eles, ouvindo depoimentos impactantes. “Colecionamos todas as pessoas no melhor lugar do nosso cora��o. Foram elas que, de alguma maneira, ampliaram a nossa capacidade de observar. Nos sentimos gratos e absolutamente homenageados por isso.”
 
O projeto, no fim das contas, n�o � s� do arquiteto. Todas as pessoas envolvidas na trag�dia s�o, de alguma forma, autores do projeto. Afinal, escolheram ser representadas atrav�s dele. E isso deixa Gustavo realizado. “Tudo foi compartilhado, em uma atitude de escuta, de presen�a, de estar junto, de considerar valores, de ser capaz de se solidarizar, de se transferir para o lugar deles. � quase uma fus�o.”
 

Espa�o de paz

A ideia de construir o memorial partiu da psic�loga Kenya Lamounier, de 54 anos. Quando enterrou seu marido, Adriano, 30 dias depois do rompimento, vivendo um “luto muito pesado”, pensou em um espa�o que pudesse trazer um pouco de paz para familiares que, assim como ela, vivem uma “hist�ria de terror” sem fim. Dez corpos ainda n�o foram encontrados.
 
“O memorial busca trazer outro significado para aquele lugar e dignidade para a mem�ria de todos os que perderam a vida de forma brusca. Que este espa�o venha a fazer rever�ncia a todos os trabalhadores que foram massacrados. N�s, brasileiros, n�o podemos deixar este crime, que matou 272 pessoas em menos de um minuto, passar em branco”, defende a psic�loga, que faz parte da diretoria da Avabrum, associa��o das fam�lias das v�timas.
 
Quando iluminada por um feixe de luz, a drusa de cristais vai provocar uma explosão de cores no ambiente escuro(foto: GPA&A/Divulgação)
Quando iluminada por um feixe de luz, a drusa de cristais vai provocar uma explos�o de cores no ambiente escuro (foto: GPA&A/Divulga��o)
 
Para Kenya, que tem dois filhos, o mais importante � n�o deixar a trag�dia cair no esquecimento. E o projeto escolhido, na opini�o dela, representa bem o sentimento de quem ficou. “O Gustavo Penna conseguiu colocar no papel, de forma muito harm�nica, tudo o que imagin�vamos para o memorial. Que fosse um lugar de paz e que contasse a hist�ria daquelas pessoas.”
 
A inten��o � que o memorial seja um lugar ocupado por todos. Que l� as fam�lias das v�timas encontrem paz, os moradores da regi�o aproveitem a �rea aberta como um parque e os visitantes reflitam sobre tudo o que ocorreu. “O memorial come�a em um ambiente de montanhas longes e distantes e termina no grande teatro da trag�dia, que tira seu f�lego. � como se fosse uma epifania”, descreve Gustavo, com a certeza de que a experi�ncia ser� inesquec�vel.
 

A mesma cor da lama

Segundo o arquiteto, os elementos usados s�o muito potentes simbolicamente, capazes de gerar emo��es e contar hist�rias. A come�ar pela escolha do material (concreto misturado com a terra da regi�o) que constitui parede, ch�o e teto. Tem a mesma cor da lama que tingiu toda aquela paisagem no dia do rompimento da barragem. “Usamos recursos simples, que formam uma esp�cie de concerto de ideias e, juntas, criam esta pot�ncia.”
 
O ip�-amarelo foi escolhido por ser s�mbolo de supera��o. No ver�o, ele se enche de folhas para fazer sombra. Quando chega o inverno, as folhas caem para deixar o sol passar. J� na seca, fica todo florido para lembrar que a vida continua. “O ip� � a pr�pria hist�ria do renascimento, ideia que precisamos ter todo o tempo da nossa vida, sen�o nos sentimos completamente abafados e desesperan�ados.” No total, ser�o 272 ip�s, representando cada uma das v�timas.
 
O uso da �gua e da luz tamb�m � carregado de simbolismos.
 
Os ipês-amarelos, escolhidos para representar cada uma das vítimas, simbolizam o renascimento(foto: GPA&A/Divulgação)
Os ip�s-amarelos, escolhidos para representar cada uma das v�timas, simbolizam o renascimento (foto: GPA&A/Divulga��o)
 
Em toda visita ao local da obra, Gustavo se emociona. Volta o sentimento do dia da trag�dia, � qual se refere como descompromisso com a humanidade. “Me senti envergonhado, indignado, absolutamente impotente. Al�m de ter nascido em Minas Gerais, sou mineiro, aquele que trabalha nas minas. Somos lembrados disso desde o dia em que nascemos e o que me estarrece � que deixamos isso acontecer com as nossas serras. A sensa��o � de que n�o sabemos trabalhar com isso.”
 
Quando pensa sobre o futuro da obra, Gustavo expressa um desejo. Que n�o seja mais um memorial, que ningu�m mais visita depois de um ano. Que ele seja relevante como qualquer outro, pois a dor de Brumadinho � a mesma das perdas pelo apartheid ou pelas persegui��es nazistas. Nem maior, nem menor. “Tenho essa esperan�a, que n�o acho que seja muito ilus�ria, de que o que estamos fazendo para as fam�lias, para o C�rrego do Feij�o, para a regi�o, � algo que vai durar.”
 
A constru��o do memorial, financiada pela Vale, por exig�ncia da Avabrum, est� na fase final de terraplanagem e a previs�o � de que termine no fim do ano que vem. “� uma obra muito r�pida. Quando a engenharia terminar, a arquitetura vai estar pronta. N�o tem revestimento, acabamento, � o que �. Simples e direto.” Depois disso, enquanto n�o for conclu�da a elabora��o do conte�do, Gustavo espera que o espa�o j� possa receber visitantes em uma etapa intermedi�ria.
 

“N�o d� para perdoar”

Cada detalhe do projeto faz lembrar a trag�dia. Intencionalmente, o arquiteto procura congelar no tempo e no espa�o o momento do rompimento da barragem, para que nunca seja esquecido. “N�o d� para perdoar”, ele diz. O pavilh�o de entrada, com formas irregulares, evidencia os estragos provocados pela invas�o da lama, que destr�i, esmaga, arranca, desfigura, distorce. Uma onda de for�a avassaladora.
 
O início da caminhada pela fenda será marcado por uma frase da poetisa Adélia Prado(foto: GPA&A/Divulgação)
O in�cio da caminhada pela fenda ser� marcado por uma frase da poetisa Ad�lia Prado (foto: GPA&A/Divulga��o)
 
Dentro do edif�cio, o ambiente � escuro, comparado a uma penumbra. A claridade passa por pequenos recortes no teto, formando feixes de luz. “Queremos reproduzir a escurid�o do momento em que a parede de lama encontrou as constru��es, e fendas apareceram nas paredes e tetos. Por alguns mil�simos de segundos, a luz atravessou o ambiente por essas fendas”, explica.
 
Todo 25 de janeiro, �s 12h28, dia e hor�rio em que ocorreu o rompimento da barragem, a luz do sol vai passar por uma das fendas e iluminar uma drusa de cristais, provocando uma explos�o de cores no ambiente escuro. “As fam�lias j� chamavam os entes falecidos de joias e, por coincid�ncia, n�s demos ideia da drusa de cristal. N�o � uma joia preciosa de alto poder de venda, mas uma forma��o geol�gica emocionante. Qualquer mineralogista sabe que � um capricho maravilhoso da natureza.”
 
A drusa de cristais � um conjunto de pedras em tamanhos e formatos diferentes, que s�o agrupadas ao acaso pela natureza. Ali, em destaque no pavilh�o, a pe�a vai representar aquelas vidas que tiveram o destino entrela�ado de forma tr�gica e definitiva. A equipe ainda est� em busca da pedra para o projeto. Gustavo gosta de dizer que ela, a drusa, vai encontr�-los na hora certa.
 
Do mirante, os visitantes avistarão o local onde a barragem se rompeu(foto: GPA&A/Divulgação)
Do mirante, os visitantes avistar�o o local onde a barragem se rompeu (foto: GPA&A/Divulga��o)
 
Dali os visitantes v�o partir para uma caminhada por uma fenda abaixo do n�vel do terreno, com 220m de comprimento e 4m de largura, que aponta para o lugar onde era barragem. A fenda representa o momento exato em que a massa de lama ruiu, uma cena que n�o sai da cabe�a de Gustavo. “A ideia vem daquele momento de ruptura. Na hora em que a fenda surgiu, a trag�dia estava pronta. Aquela fenda existiu durante segundos, mas existiu, e quis materializ�-la no tempo e no espa�o”, aponta.
 
No ponto de partida, uma frase de Ad�lia Prado, que a pr�pria poetisa cedeu ao projeto: “O que a mem�ria ama fica eterno. Te amo com a mem�ria, imperec�vel”. Ao longo do trajeto, surgir�o na parede os nomes dos mortos, iluminados por uma pe�a em formato que lembra a pomba da paz. O projeto de sinaliza��o � do designer Gustavo Greco.
 

"Cabe�a que chora"

Os visitantes passar�o pelo Espa�o Mem�ria, onde ser�o contadas as hist�rias das v�timas. A forma de apresentar o conte�do ainda est� sendo pensada pelas fam�lias. Neste mesmo ponto, olhando para cima, estar�o diante da base da “Cabe�a que chora”. O monumento � para ser uma pedra no meio do caminho, literalmente, como diz Carlos Drummond de Andrade.
 
A ideia vem da conclus�o de Gustavo de que o homem n�o inventou a roda, porque a roda est� na natureza, numa melancia, jabuticaba, na Lua. Para ele, inven��o humana � a estabilidade das for�as verticais e horizontais, formando um v�o onde pode se abrigar. Nada na natureza tem �ngulo reto. “Imaginei que o homem onipotente, que acha que domina a t�cnica, que tem controle sobre a natureza, ruiu com a barragem, levando inocentes.”
 
As 'lágrimas' escorrem pelas paredes do monumento, correm pelas laterais da fenda e vão parar em um lago(foto: GPA&A/Divulgação )
As 'l�grimas' escorrem pelas paredes do monumento, correm pelas laterais da fenda e v�o parar em um lago (foto: GPA&A/Divulga��o )
Todo branco, o monumento, um quadrado tombado, tem as curvas de n�vel de C�rrego do Feij�o impressas em suas faces. As l�grimas saem de um po�o artesiano, escorrem pelas paredes da cabe�a, correm pelas laterais da fenda e v�o parar em um lago. No fundo dele, 272 pontos de luz. “O choro tem beleza, � uma maneira de extravasar a dor. Ele come�a pela cabe�a, pelo C�rrego do Feij�o, vai sendo somado e vira pranto de todos. N�o � um choro sozinho, � de todos que se solidarizam com a dor.”
 
A fenda prop�e uma imers�o na trag�dia, com potencial de provocar rea��es sensoriais. “As paredes v�o aumentando, chegam a quase 5m de altura, te comprimem lateralmente e o c�u praticamente se transforma em uma linha. Continuando o percurso, as paredes diminuem e a paisagem come�a a se descortinar. � quando voc� v� aquele cen�rio terr�vel.” O caminho termina em um mirante, um lugar de contempla��o e reflex�o.
 
O projeto de sinalização, assinado pelo designer Gustavo Greco, prevê a iluminação dos nomes das vítimas quando anoitecer(foto: GPA&A/Divulgação)
O projeto de sinaliza��o, assinado pelo designer Gustavo Greco, prev� a ilumina��o dos nomes das v�timas quando anoitecer (foto: GPA&A/Divulga��o)
Diante do palco da trag�dia, n�o tem como n�o se emocionar. � como chegar a um campo de guerra. Hoje, quase tudo est� coberto de verde, mas d� para ter a dimens�o exata do rompimento e pensar em todas as pessoas atingidas. “Quem s�o essas pessoas? Os que morreram, a comunidade de C�rrego do Feij�o, que assistia aos corpos sendo colocados ao lado da igreja. Depois, Brumadinho e regi�o, que sofreram com bloqueios. Minas, que carrega essa vergonha, o Brasil e o mundo. Sofremos n�s todos.”


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