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Estado de Minas IMERSA NA LITERATURA

Enquanto vive o luto e a sucess�o na ag�ncia, Carla Madeira escreve livro

'Estou come�ando a embalar no quarto livro. J� abri o arquivo, vou relendo, trocando uma palavra, garimpando ideias', conta a escritora e publicit�ria


28/05/2023 04:00 - atualizado 29/05/2023 10:03
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Carla Madeira
O desejo de Carla Madeira � se dedicar inteiramente � arte (foto: Marcia Charnizon/Divulga��o)
“Estou vivendo uma montanha-russa.” Carla Madeira, de 58 anos, faz uma compara��o com os altos e baixos da grande atra��o dos parques de divers�o para descrever sua vida neste momento. Ao mesmo tempo em que vive o luto pela perda da m�e e de Simone Moreira, sua s�cia na ag�ncia L�pis Raro, ela se entrega aos prazeres de escrever e ser uma escritora.


Nessa busca por equilibrar sentimentos e demandas, a publicit�ria sentiu a necessidade de come�ar o seu quarto livro, que, sem pressa, vai ganhando forma. Carla foi a autora mais lida do Brasil nos �ltimos dois anos, com “Tudo � rio”, “A Natureza da Mordida” e “V�spera”, mas n�o se deixa influenciar por toda a expectativa em torno do seu trabalho.

N�o importa se a pr�xima hist�ria vai fazer sucesso. Para ela, o mais importante � se dedicar, com toda a intensidade, � literatura. Carla n�o consegue viver sem arte e vem se preparando para viver de arte.
 
Como anda a sua vida?
Est� super intensa. No carnaval, perdi a minha s�cia, a Simone, que estava comigo h� muitos anos. A gente era muito amiga. Venho de um ano de luto, n�o s� da Simone, mas da minha m�e e do meu psicanalista. Estou vivendo um momento de equilibrar as perdas, o trabalho e o meu desejo de viver a literatura. H� dois, tr�s anos, estamos construindo o fortalecimento das lideran�as na ag�ncia, dando autonomia para as equipes, mas, ainda assim, tenho uma presen�a e agora estou fazendo isso sem a Simone. Ao mesmo tempo, a literatura est� me demandando muito. Ent�o, esse � um momento muito intenso, tanto por causa das perdas quanto dessa coisa maravilhosa que � a literatura. Estou vivendo uma montanha-russa, de viver o luto, de respeitar essa dor, de ter momentos em que posso acolher isso, ao mesmo tempo lidar com muitas alegrias, muito afeto, encontros extremamente ricos, trocas intensas. Ent�o, brinco que esse � o momento mais esquizofr�nico da minha vida.

Isso acaba sendo combust�vel para a sua escrita?
Acredito que sim. Nesse processo de adoecimento da Simone (ela teve um diagn�stico de c�ncer de p�ncreas no ano passado), ainda n�o estava escrevendo o quarto livro e estava decidida a n�o come��-lo. N�o tinha aberto formalmente o arquivo, s� estava anotando algumas ideias. Mas, durante esse processo, n�o dei conta: abri o arquivo e comecei a escrever. Ficou claro pra mim um certo desejo de me envolver com um projeto para dar conta do real. De buscar na linguagem art�stica alguma possibilidade de elaborar o que estava sentindo. Comecei a escrever o livro antes da hora, mas senti uma necessidade enorme de estar no n�vel de envolvimento em que a escrita me coloca.

Voc� se arriscaria a dizer que virar escritora foi a melhor coisa que aconteceu na sua vida?
J� tive experi�ncia com m�sica, de cantar e compor, que me levava para lugares de intensidade. Gosto de pintar tamb�m, tenho momentos incr�veis pintando, � muito bom. Agora, escrever romance talvez seja uma das experi�ncias mais intensas artisticamente. Vivo uma intensidade nos processos, nas consequ�ncias, no fato de os livros terem acontecido e serem reconhecidos. Como autora, � maravilhoso. Todo autor quer que isso aconte�a, mas a� entro em outro territ�rio, que � um pouco diferente da cria��o art�stica propriamente dita. Acho que essa parte do sucesso e do reconhecimento est�o em outro lugar, que � maravilhoso tamb�m. Tem a ver com voc� sentir que aquilo ali afetou muito as pessoas, que n�o ficou s� restrito ao espa�o de um grande gozo criativo. Juntando tudo isso, talvez tenha sido a experi�ncia art�stica mais completa. N�o tinha nenhuma pretens�o com os livros. Foi muito mais um exerc�cio de linguagem. Fiquei ali imersa e comecei a gostar de fazer aquilo. Fui experimentando, muito nesse lugar do compor, do pintar, muito despretensiosamente. Com o primeiro livro, “Tudo � rio”, foram oito meses de uma intensidade que vivi poucas vezes na vida, de dedica��o, de ficar tomada, completamente imersa naquilo, de muita entrega, algo muito visceral. Tinha momentos assim com a m�sica, mas n�o eram oito meses. Quando o “Tudo � Rio” ficou pronto, n�o sabia o que queria fazer com ele. Fiquei pensando: “acho que tenho um livro, ser� que � o caso de publicar?” Para voc� ter uma ideia, n�o tive coragem de imprimir nem mil exemplares, imprimi 700. Fiquei muito sem saber, querendo ver a rea��o das pessoas.

Voc� j� se sente realizada s� de escrever, n�o se importa com o que vem depois.
Isso � a coisa mais importante at� hoje. Vivi o mesmo com o segundo livro. Queria experimentar, com o mesmo n�vel de intensidade e envolvimento. N�o � uma coisa da ordem do que funciona, da f�rmula. Me joguei em outra experi�ncia, completamente diferente do ponto de vista liter�rio, com mesma ideia: o mais importante � a experi�ncia art�stica, fazer o que me envolve. Fiquei salivando, completamente tomada por aquela experi�ncia. O que vem depois � lucro. N�o � que eu seja indiferente, vou ficar triste se as pessoas n�o gostarem, mas a primeira coisa com o que me preocupo � se eu vou gostar. A� tenho como falar: “estou triste porque as pessoas n�o gostaram, mas a experi�ncia foi incr�vel, fiz o livro que queria fazer”. Quando voc� vai se tornando uma autora mais conhecida, a expectativa em torno do seu trabalho come�a a virar um peso. Se voc� consegue dar as costas para isso, no sentido de “agora sou eu e o meu processo criativo”, e ter uma experi�ncia com alto n�vel de envolvimento e ades�o, � o mais importante. � como venho tentando me proteger, n�o deixar que essas outras coisas, que s�o externas ao processo criativo, entrem comigo nessa etapa. Sou eu e mais ningu�m.

"Estava t�o envolvida na hist�ria, ela estava gritando dentro de mim que, mesmo estando em um ambiente barulhento, cercada de gente, sentei e escrevi "


Voc� tem experi�ncia com m�sica, pintura e agora literatura. O que te levou para as artes?
Venho de uma combina��o muito interessante, que � o encontro do meu pai com a minha m�e. O meu pai era um homem erudito, falava v�rios idiomas, era matem�tico, foi religioso, ent�o teve uma forma��o muito consistente, conhecia de m�sica, artes, hist�ria. A minha m�e, por outro lado, � uma pessoa que mal completou o ensino fundamental, mas era uma figura de muita sensibilidade po�tica. Ela gostava de cantar, fazia rimas, contava hist�rias, tinha uma curiosidade com a vida, era muito bom ouvi-la. Tenho um caso de quando ela estava doente, naquele estresse de ir e voltar do hospital. Foi um domingo. Ela tinha sa�do do hospital e veio para a minha casa. Somos seis filhos e disput�vamos quem ia ficar com ela, de t�o legal, rica, terna e afetuosa que era a troca. Era uma pessoa muito boa de ficar junto. Trouxe ela aqui pra casa, ela passou um dia bom. No meio da tarde, senti uma febre nela, muito baixa, mas, como estava em tratamento de quimioterapia, a m�dica falou que ela tinha que voltar para o hospital. Ela j� tinha tomado banho, estava na cama, dormindo, super quentinha. Quando est�vamos atravessando o meu jardim, ela viu um p� de alecrim que tinha plantado e parou para colocar a m�o nele e falar como estava lindo. Foi muito bonita essa cena. A minha m�e era esse tipo de pessoa que, mesmo no meio da loucura, sempre enxergava a beleza, o sens�vel, tinha curiosidade. Ent�o, vim dessa combina��o: de um lado a informa��o sobre arte, hist�ria, matem�tica e do outro essa pessoa com sensibilidade, imagina��o, curiosidade. Meus pais, mesmo tendo pouca grana, nunca me impediram de fazer aula de m�sica, pintura, teatro, e eu experimentei todas essas coisas, eles me incentivavam. Com nove anos, ganhei um viol�o e ele foi meu amor at� os 20 e tantos anos. At� me formar e come�ar a ag�ncia, s� fazia tocar e cantar, muito mais do que ler. Aprendi a gostar de ler com Monteiro Lobato e me apaixonei por poesia e hist�ria atrav�s da m�sica. O pensar, a cria��o atrav�s da palavra vieram da m�sica.

Que caminho voc� enxergou quando escolheu se formar em comunica��o?
Antes de comunica��o, cursei matem�tica. Fiz por uns dois anos, mas fui ficando triste. Embora tivesse muita facilidade, toda a minha fam�lia � da �rea de exatas, respirava matem�tica em casa, mas sabia que queria mexer com cria��o. Fui para a comunica��o movida por essa ideia de que poderia ter contato com v�rias linguagens art�sticas, e de fato publicit�rio tem que dominar m�sica, fotografia, artes pl�sticas, cinema. Al�m da cria��o, durante anos fui diretora de planejamento da ag�ncia, ent�o usava pensamento l�gico, matem�tica, um lado que gosto muito. Foi uma coisa que super deu certo pra mim. Hoje sou presidente da L�pis Raro e entro nos dois territ�rios.

At� hoje voc� n�o deixou o trabalho na ag�ncia. Isso � por op��o ou porque n�o d� para viver de literatura?
Tenho uma empresa muito reconhecida, muito forte, estamos entre as melhores do mercado. Eu e Simone come�amos a fazer o desenho de sucess�o h� tr�s anos. Est�vamos programando isso porque � uma transi��o importante. Estou h� 36 anos na ag�ncia e chegou a hora de passar o bast�o. Hoje tenho uma equipe muito estruturada e posso ficar muito mais no n�vel estrat�gico, mais de conselho do que na opera��o di�ria. Trabalho cada vez mais para a equipe ter autonomia e a turma tem um pensamento muito consistente sobre o que � fazer comunica��o, marketing e gest�o. Tem gente que trabalha na ag�ncia h� 30 anos. No in�cio do m�s, fiz uma viagem de cinco dias em um barco liter�rio chamada “Navegar � preciso”. Quando estou em BH, tenho agenda na L�pis Raro e vou equilibrando as demandas.

Em que momento o mundo da publicidade se encontra com o mundo da literatura?
Toda marca quer contar boas hist�rias, ent�o esse encontro entre a publicidade e a literatura � muito especial, isso faz parte da for�a da L�pis Raro. A ag�ncia sabe contar hist�rias.

Qual � o seu gatilho para escrever?
Gosto da qualidade do envolvimento de estar escrevendo. N�o sou a pessoa que quer escrever sobre determinado assunto, quer pautar, n�o parto desse prop�sito. Parto de um pequeno acontecimento. Em “Tudo � rio”, tenho ali a prostituta e o cara que se recusa a se deitar com ela. Parto de um acontecimento quase banal e a minha curiosidade e imagina��o v�o me levando. Esse fio vai puxando a hist�ria, a� entram as camadas de inconsciente, inser��o social, elas v�o trazendo quest�es que acabam virando a grande estrutura do livro. Por exemplo, no “Tudo � rio”, a quest�o do perd�o � muito forte e a partir daquilo ali v�o entrando outras quest�es. Sempre � um acontecimento que me pauta, n�o � uma tem�tica ou um acerto de contas ou um desejo de pautar alguma quest�o social. Acaba que isso acontece, e � maravilhoso, porque essas quest�es n�o nos escapam, s�o nossas quest�es humanas. Mas n�o faz parte do meu processo criativo. Acho que, se partisse disso, teria dificuldade de n�o entrar em certo didatismo.

Voc� sempre foi uma pessoa observadora?
Tenho anos de viv�ncia de terapia e an�lise, isso � algo forte na minha hist�ria. A minha m�e falava: “Carla, quando voc� come�a a conviver com uma pessoa, em tr�s dias est� falando igual a ela”. Essa observa��o, quase osmose, mimetiza��o de outra figura, sempre esteve comigo. “Olha l� a Carlinha imitando fulano”. Existia um certo deboche, uma certa censura na fam�lia, de tanto que pegava o jeito da pessoa, desde muito pequena. Ent�o, eu era uma antena sensorial, percebia um jeito da pessoa e na hora em que via estava falando igual, olhando igual, me movimentando igual.

O que tem de autobiogr�fico nos seus livros?
Tem um pouco de mim ali, mas n�o � um acontecimento do come�o ao fim, � um detalhe. Exemplo: na minha vida de adolescente, brincava de imitar a Luc�lia Santos e no livro “A natureza da mordida” tem um personagem que brinca na rua de fazer isso, mas n�o era eu que estava ali, s�o situa��es completamente diferentes. De biogr�fico tem muito mais o encaminhamento de alguns afetos do que os fatos. Quando voc� est� escrevendo, algo em voc� est� se resolvendo, seu inconsciente entra em a��o. Voc� n�o teve a inten��o, mas aquilo est� l�.
 
Como funciona o seu processo de escrita?
As experi�ncias foram diferentes. No “Tudo � rio”, tive disciplina de escrever todos os dias. Sa�a da L�pis Raro, chegava em casa, encontrava meus filhos, botava eles na cama, tomava meu banho, comia e a� ia escrever. Ficava duas horas escrevendo, no fim de semana cinco, seis horas seguidas, sempre em casa, mas vivi algumas situa��es curiosas. Levei meu computador para as filmagens da ag�ncia, que s�o super demoradas, tem troca de luz, figurino, eixo da c�mara. Naquele tempo, estava t�o envolvida na hist�ria, ela estava gritando dentro de mim que, mesmo estando em um ambiente barulhento, cercada de gente, sentei e escrevi. Isso aconteceu poucas vezes, mas aconteceu. O fim de “V�spera” escrevi durante a pandemia, a� foi punk. N�o tinha o ritual de sair da ag�ncia, mudar de roupa, mudar de m�quina, tudo muito misturado, era o mesmo lugar, fiquei exausta. O processo do “A natureza da mordida” foi incr�vel. Pintei 40 quadros enquanto escrevia o livro. Senti muita necessidade de fazer pequenas interrup��es para dar conta de voltar para a hist�ria. Foi muito intenso. Agora estou come�ando a embalar no quarto livro. J� abri o arquivo, vou relendo, trocando uma palavra, garimpando ideias. Estou cuidando da hist�ria, pensando, anotando. N�o tem um dia sequer em que n�o esteja fazendo alguma coisa.

O que voc� j� pode contar sobre o quarto livro?
Os meus tr�s livros s�o hist�rias familiares, de fam�lias marcadas por situa��es muito impactantes, e isso vai continuar. Estou gostando de experimentar a polifonia.

Tem prazo para entregar?
Nem pensar. Se tivesse prazo, ia ficar louca. N�o dou conta de ter prazo na literatura, para mim n�o faz sentido. Estou na literatura por outra motiva��o, � um espa�o de cria��o que protejo para que n�o vire essa coisa que j� vivo na ag�ncia.

Imagino que voc� j� tenha ouvido relatos de muitos leitores sobre os seus livros. O que ficou marcado na sua mem�ria?
S�o muitas hist�rias. Outro dia uma menina falou que viveu um rompimento de tr�s anos com uma tia que gostava muito. Ela mandou o “Tudo � rio” de presente e a tia a chamou para conversar. O livro conseguiu resolver esse afastamento. J� ouvi de um presidi�rio que, depois de ler o livro, ele parou de odiar. Fora os depoimentos de fam�lias que tiveram casos de feminic�dio e que contam que o livro as ajudou a aproxim�-las, no sentido de querer conversar sobre aquilo.

Isso te surpreende de alguma forma?
A for�a que a minha literatura ganhou nacionalmente me surpreende. N�o achava que isso aconteceria com tanta for�a. Fui a autora mais lida em 2021 e 2022, meus tr�s livros est�o na lista dos 10 mais vendidos, isso foi surpreendente. Agora vai se tornando mais natural que, em fun��o da for�a desse acontecimento, mais pessoas cheguem junto, queiram fazer parte desse entusiasmo ao redor da minha literatura, fiquem curiosas.

Por que voc� acredita que os seus livros fazem sucesso?
Primeiro, tem uma linguagem com uma forte oralidade, e essa oralidade tem essa possibilidade de envolver, a pessoa fica enredada. Acho tamb�m que dizer as coisas com todas as letras. “Tudo � rio” n�o d� para colocar numa caixinha. Tem um lado po�tico, mas uma coisa super crua, tem o profano e o sagrado, tem a brutalidade e a viol�ncia, mas a delicadeza. Acho que isso gera uma for�a muito grande. O livro toca em quest�es nas quais as pessoas est�o se colocando. Essas quest�es j� est�o dentro das pessoas, s�o universais, por isso fazem sentido. Costumo dizer que � como se o livro juntasse algumas coisas espalhadas dentro dessas pessoas, isso que sinto no retorno delas, como se tivessem compreendido alguma coisa dentro delas.

O que voc� quer para o futuro?
Quero que a ag�ncia esteja absolutamente estruturada e encaminhada para que eu possa me dedicar totalmente � literatura, pintura, m�sica, sem compromisso. Que possa viver esse lado art�stico full time, o que nunca pude fazer. Sempre tive que priorizar a minha vida profissional Agora cheguei em um momento da vida, at� pela idade, em que a coisa mais preciosa passa a ser o tempo. Preciso que o tempo seja livre, meu, e � isso que estou construindo. 


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