
Quase 16 anos depois, Virg�nia Neves est� de volta a Belo Horizonte. Indiscutivelmente, ela n�o � mais a mesma menina que saiu da cidade determinada a trabalhar com moda em Paris. A mineira de 38 anos tem hoje uma carreira internacional consolidada. Nesses anos, passou por v�rios maisons e ganhou muita experi�ncia na alta-costura (sua paix�o � a moulage).
Ficou marcado o per�odo em que trabalhou diretamente com o liban�s Elie Saab. Na maison que leva o nome do fundador, onde ficou por cinco anos, ela se formou como estilista e se envolveu em uma busca (incessante e estressante) por excel�ncia.
Por quest�es pessoais, Virg�nia decidiu pousar em BH (para ser mais exata, no Bairro Santa Tereza), mas continua inserida no mercado global de moda. No momento, vem desenvolvendo a cole��o de estreia de uma submarca da rede canadense Aritzia, que tem um forte vi�s de sustentabilidade. A designer enxerga que esta � a moda do futuro: justa e respons�vel.
Ficou marcado o per�odo em que trabalhou diretamente com o liban�s Elie Saab. Na maison que leva o nome do fundador, onde ficou por cinco anos, ela se formou como estilista e se envolveu em uma busca (incessante e estressante) por excel�ncia.
Por quest�es pessoais, Virg�nia decidiu pousar em BH (para ser mais exata, no Bairro Santa Tereza), mas continua inserida no mercado global de moda. No momento, vem desenvolvendo a cole��o de estreia de uma submarca da rede canadense Aritzia, que tem um forte vi�s de sustentabilidade. A designer enxerga que esta � a moda do futuro: justa e respons�vel.
Como come�a a sua hist�ria?
Sou de BH e vivi aqui at� quase os 22 anos. Desde muito crian�a, sabia que ia fazer alguma coisa relacionada a artes. Com tr�s anos, j� desenhava e dava de presente para os meus familiares. Fui decidir fazer moda muito depois. No fim da adolesc�ncia, comecei a me interessar por cultura, m�sica eletr�nica, comportamento e a ter outros tipos de influ�ncias que me levaram a querer trabalhar dentro desse campo. Isso foi um grande clique. Conheci pessoas (artistas, estilistas, decoradores) que tinham interesses extraordin�rios - quero dizer fora do ordin�rio, que gostavam de coisas alternativas, que tinham um certo visionarismo para a �poca, que n�o era a vis�o tradicional mineira das coisas, e comecei a ver como era se manifestar de forma original e sair da mesmice. Aquilo tudo me fascinou. Decidi que queria fazer moda, estudar a fundo e, de certa forma, tinha sensibilidade para isso. Aprendi a costurar muito cedo. Comprei uma m�quina e comecei a fazer as minhas pr�prias roupas, desenhava, tingia, fazia um tanto de coisa, numa busca pela originalidade e por uma forma de me comunicar com o mundo. Isso j� era um ind�cio de que conseguia traduzir alguma coisa que estava por vir.
Voc� sempre quis sair do Brasil?
Era obcecada com a ideia de sair do Brasil, ser uma perdida no mundo, nem que fosse para morar em um cub�culo. Tenho um esp�rito aventureiro. Em paralelo, sempre tive uma certa fascina��o pela Fran�a (hoje em dia sou francesa). Quando fiz 15 anos, fiquei um m�s viajando de mochil�o com uma amiga. Lembro que, quando cheguei a Paris, pensei: vou morar aqui. � muito louco isso. Lembro do barulho da noite na cidade, as luzes, a gente saindo muito cedo para pegar �nibus, pessoas correndo no inverno � noite. Queria isso, fazer coisas comuns na cidade, queria pertencer a isso. Sem contar toda a hist�ria do cinema e da moda.
Em que momento voc� se mudou para Paris?
Tinha um compromisso com a minha fam�lia: s� poderia sair do Brasil com diploma. Logo que me formei, fui para l� e fiz um curso de alta-costura. Depois, entrei em um curso mais ligado a moulage. Sempre me interessei muito por isso. Por mais que exista a parte criativa, acho imposs�vel executar sem t�cnica. Trabalhei primeiro com um japon�s, o Sadaharu Hoshino, que, na �poca, era assistente do Alexander McQueen. Uma pessoa completamente obcecada. O est�dio s� tinha asi�ticos. �ramos s� eu e dois franceses de ocidentais. Isso j� me deu um choque de realidade, como se um caminh�o-pipa passasse por cima de mim e enterrasse meu ego. Ele era extremamente machista e me achava mimada por querer ir embora antes de todo mundo. Pela forma japonesa de trabalhar, voc� s� pode ir para casa quando tiver terminado toda a sua lista de tarefas. N�o tinha dinheiro para pegar t�xi todo dia, era o meu primeiro est�gio, ent�o tinha que ir embora mais cedo. Mas era um drama. Em seguida, fiz est�gio e depois virei designer j�nior na Isabel Marant, onde os estilistas s�o completamente aut�nomos e fazem de tudo. Nunca desenhei, sempre fiz moulage e auxiliava os estilistas com tinturas, estampas e bordados. Na Fran�a, existe uma hierarquia muito imposta, n�o s� dentro da moda, ent�o � muito dif�cil saltar de fase. Como ainda n�o tinha cidadania, era super complicado ser contratada, ent�o fiquei l� aproximadamente um ano. Aprendi muito, era um time extraordin�rio de estilistas, mas tinha muita press�o, foi bem duro. A Isabel Marant tinha o dom de escolher com quem ia trabalhar. Geralmente, eram jovens com um pouco de arrog�ncia e um jeito intimidador. N�o tenho nada disso, eu acho, mas voc� acaba tendo que se passar por arrogante.
"Na Fran�a, existe uma hierarquia muito imposta, n�o s� dentro da moda, ent�o � muito dif�cil saltar de fase"
Desde cedo, voc� j� sabia o que queria.
Sou uma pessoa extremamente sonhadora. Queria fazer o que falavam que era imposs�vel. Sempre busquei liberdade e autonomia muito cedo, queria muito sair de casa, mas nunca achei que fosse viver da minha arte. Isso � uma puta sorte. No primeiro dia em que comecei a desenhar, fiquei emocionada. � muito m�rito, muito fim de semana, muito fashion week sem hora para sair, pagando t�xi �s 3h da manh� para ir embora para casa, morando em 12 metros quadrados. Tive que abdicar de qualquer aspecto pessoal durante um tempo da minha vida. N�o tem nenhuma glorifica��o, n�o tem nada a ver com o que as pessoas ilustram na cabe�a delas. � um ambiente super inspirador, com um bando de criativos talentosos e bons de servi�o, mas tamb�m super amedrontador, principalmente quando voc� est� lidando com europeus, vindo de outra parte do mundo, ainda mais da Am�rica Latina, sem a menor no��o do que � escrever uma carta de recomenda��o.
Quando voc� conseguiu trabalhar efetivamente como estilista?
Quando sa� da Isabel Marant, fui para a Barbara Bui, onde fiquei por seis meses, e depois comecei a trabalhar na Emanuel Ungaro. A� sim tive a primeira oportunidade como estilista, mesmo que j�nior. Trabalhava pouqu�ssimo com desenho, era mais com o gestual da moulage. Isso � pr�tica recorrente em Paris, tem estilista que nem pega em papel e caneta. Fiquei l� por quase um ano, at� que uma headhunter me falou: tem uma cazaque milion�ria que acabou de comprar uma maison, a Vionnet. Madeleine Vionnet era uma costureira extraordin�ria, a inventora do corte em vi�s, a primeira designer a ser exposta no Museu do Louvre, que s� n�o foi reconhecida na sua �poca porque era mulher. Essa mulher do Cazaquist�o contratou designers do mundo inteiro e montou uma equipona para trabalhar em Mil�o. Em duas semanas, fui trabalhar em Mil�o nessa maison maravilhosa, mas pouco estruturada.Fiquei l� por oito meses, at� receber um convite da minha ex-chefe da Emanuel Ungaro para voltar para Paris para trabalhar em uma maison que estava em ascens�o (ela ainda n�o podia falar o nome). Quando cheguei, descobri que era a Elie Saab. Na �poca, eles queriam sair um pouco da alta-costura e crescer no pr�t-�-porter. O pr�prio Elie Saab me entrevistou, gostou de mim e fui contratada por um per�odo de teste de um m�s. A maison tinha duas sedes, uma em Paris e outra no L�bano, e tudo era produzido na It�lia. �ramos pouqu�ssimos estilistas e Elie era o nosso chefe direto. Tinha muita recompensa, mas as demandas eram alt�ssimas, como em todo lugar que busca excel�ncia. Fiquei l� por cinco anos e meio. Foi a maison que me deu estrutura e me formou como estilista, tanto que trabalhava com alta-costura e pr�t-�-porter. L� me tornei designer s�nior. Tinha muita autonomia dentro da moulage, do bordado, do couro, da malharia. Viajava muito para Beirute. Foi dolorido, vivi momentos de estresse muito intensos, mas muito recompensador. Acabei criando v�nculos fraternos de amizade. Foi muito especial.
Voc� j� trabalhou para uma marca australiana. Como surgiu essa oportunidade?
Em 2018, me envolvi com uma pessoa que tinha planos de ir para a Austr�lia. Achei a ideia boa. Sa� de Paris com uma mala. Comprei uma van, uma prancha de surfe e fui viver um momento sab�tico depois do estresse parisiense. Vivi altas aventuras. Depois de quatro meses, conversando com uma headhunter, soube de uma proposta em Byron Bay. De todos os lugares por onde passei, era onde queria ficar. Um para�so. Um lugar m�stico, de artistas, exc�ntrico e aut�ntico. A proposta era trabalhar para uma marca que se chama Spell, extremamente engajada, que estava crescendo pra caramba, queria se internacionalizar, estava abrindo boutique em Los Angeles e precisava de uma nova diretora art�stica. L� fui eu para Byron Bay viver o para�so. A experi�ncia na Austr�lia durou dois anos e foi maravilhosa. Acabou na pandemia. Quando as maisons tiveram que fechar para se resguardar por causa da COVID-19, me encontrei em uma situa��o complicad�ssima. Consegui pegar o �ltimo voo para Paris e desembarquei no dia em que morreu mais gente na cidade. Fui recontratada pela Isabel Marant e fiquei l� at� voltar para o Brasil.
Imagino que n�o deve ter sido f�cil a decis�o de voltar para BH.
Nesse meio tempo, perdi a minha av�, que era uma pessoa extremamente importante para mim, e surgiram v�rias quest�es de fam�lia, encontros de vida e de amor. Cheguei em agosto do ano passado e recebi uma proposta de emprego da marca canadense Aritzia, que est� em um processo de expans�o monstruoso. � como se fosse a Zara da Am�rica do Norte, mas com uma qualidade incr�vel, refer�ncia do pr�t-�-porter. Pouqu�ssimas vezes trabalhei com marcas com tanto recurso. Sou respons�vel pela parte criativa de uma das submarcas, com previs�o de ser lan�ada em abril. � uma marca em experimenta��o que tem uma pegada de luxo, explorando meu background de design europeu. Vou a Vancouver mais ou menos de dois em dois meses, onde fica a sede. Tamb�m tenho que ir a Nova Deli para acompanhar a produ��o. N�o � simples, mas estou muito feliz de manter a minha carreira internacional. N�o sei se tive sorte, mas sempre trabalhei muito. Sem meu trabalho n�o teria autonomia e liberdade.
Como funciona o trabalho remoto na moda?
Basicamente, fa�o uma apresenta��o iconogr�fica de como ser�o as pr�ximas cole��es. A� come�o a desenhar. Nisso, tenho que ir a Vancouver porque preciso receber os mockups e checar tudo o que a �ndia mandou. A partir disso, fa�o minhas moulagens. � um processo bem complexo, mas n�o sei fazer de outra forma. Quem trabalha com certa originalidade trabalha com moulage. Tenho algumas modelistas, contratadas pela Aritzia, que fazem isso aqui em BH. A� volto para Vancouver para apresentar e validar as moulagens e passamos para o primeiro prot�tipo. A partir da�, desenvolvemos toda a cole��o e acompanhamos a produ��o.
Voc� pensa em trabalhar com moda brasileira?
Sim, apesar de achar que, infelizmente, os brasileiros perderam um pouco do visionarismo. N�o entendo o que est� acontecendo. Tenho certeza de que existem pessoas maravilhosas aqui, principalmente em Minas, mas acho frustrante o contexto e a falta de cultura de moda, que ficou perdida n�o sei aonde. Acho triste. Espero poder fazer alguma coisa, gostaria muito, mas n�o sei por onde come�ar.
Est� nos seus planos ter uma marca pr�pria?
N�o, de jeito nenhum. Adoro trabalhar para os outros, entrar no universo deles. Adoro trabalhar com excel�ncia, com bons profissionais, grandes investimentos e boa estrutura. Fico vendo a vida miser�vel de quem tem marca pr�pria... Entregam tanto e v�rias vezes s�o negligenciados. Trabalhar com projetos que sejam aut�nomos, art�sticos e completamente fora do mercado eu amo, me entrego, mas n�o tenho mais essa ilus�o de querer pagar as minhas contas com isso.
O que voc� aprendeu nesses anos em Paris que leva a para vida?
S�o v�rios aprendizados, principalmente compromisso. Quando voc� sabe que est� em equipe, tem que trabalhar com seriedade e irmandade. Tem que comer poeira junto. Se falhar por displic�ncia, ou ato ego�sta, algu�m vai ter que fazer por voc�. Isso � uma coisa que levo muito a s�rio, mesmo. V�rias vezes tive que recrutar pessoas e, al�m de olhar o potencial, hoje em dia vejo se s�o honestas. Voc� tem que ter cumplicidade e empatia pelo outro. Ningu�m nunca vai fazer nada por voc�.
O que voc� diria para um jovem que sonha em seguir carreira internacional na moda?
Primeiro: guarde sua identidade, de onde voc� �, sua trajet�ria. No fim, o que interessa � o que vai trazer de novo. N�o � se voc� desenha bem, geralmente isso vem junto. Conhe�o pessoas extremamente criativas que n�o s�o desenhistas, mas sabem expor o universo delas, trazem algo sens�vel para dentro da ind�stria. Isso � precioso. Al�m disso, diria para ser competitivo, mas de forma honesta. Voc� tem que estar sempre com a ficha limpa, mesmo, porque nunca se sabe quando vai precisar do outro. Eu mesma trabalho em Vancouver com uma pessoa com quem trabalhei 10 anos atr�s. Tenha muita disciplina e t�cnica, n�o adianta s� saber desenhar nem s� juntar verde com vermelho.
De onde vem sua inspira��o?
Tem a ver com o movimento da minha vida, os lugares para que vou, se estou muito triste ou muito apaixonada, se estou come�ando a vida do zero, se estou partindo em viagem para um lugar desconhecido. Acho super inspirador quando me botam em um lugar de instabilidade.
Nesse seu novo trabalho, voc� tem que seguir tend�ncias?
Tend�ncia � uma manifesta��o social que emerge, ent�o trabalhar com tend�ncia nada mais � do que expor uma sociedade. N�o acho isso chato. Podendo fazer roupa bonita, coerente com o meu gosto e o meu controle de qualidade, est� valendo.
O que voc� enxerga como tend�ncia hoje?
Sem d�vida, sustentabilidade e cadeia de produ��o respons�vel. Desde trabalhar com tecido org�nico at� garantir que todos os empregados tenham pagamento honesto, que os filhos deles sejam escolarizados, que n�o sejam expostos a nenhum tipo de abuso. Tamb�m trabalhar com diversidade de g�nero e racial, � por isso que as pessoas est�o clamando hoje em dia. Essa � a grande tend�ncia mundial. Vejo como a cadeia de produ��o da Aritzia � maravilhosa. Hoje em dia todo mundo produz na �ndia, � s� escolher com quem quer se envolver. Marcas como a Aritzia s�o as empresas do futuro. Fazem produtos de alt�ssima qualidade, d�o liberdade para os criativos, t�m certo visionarismo e s�o justas e respons�veis.
Voc� pensa em voltar para Paris?
Penso, minha casa ainda est� l�, mas n�o agora. Estou amando estar em BH, estou feliz aqui. Nunca calculo muito as coisas. Sempre acho que tudo pode mudar sempre, e sempre muda, principalmente no meu caso.