
Nos pr�ximos dias, a Corte vai decidir se crimes semelhantes praticados no estado contra pessoas indefesas (crian�as, idosos, pacientes em cl�nicas ou hospitais e deficientes), que est�o sob a guarda do agressor, v�o passar a ser qualificados como tortura ou como crime comum (maus-tratos ou les�es corporais). At� agora, os desembargadores mineiros se mostraram divididos frente � quest�o.
N�o se trata apenas de punir o agressor com mais rigor, mas tamb�m de dar fim �s cenas de horror sofridas pelas crian�as e outros inocentes em Minas. “N�o s�o poucos os casos de viol�ncia desproporcional contra crian�as que chegam aos tribunais. No meu entender, se um sujeito queima com ferro o corpo de um menino de 3 anos, porque ele estava fazendo xixi � noite, ou se um padrasto lacera o f�gado de um beb� que estava chorando ou se um sobrinho espanca um tio na cadeira de rodas, levando-o � morte, isso � tortura”, define o procurador de Justi�a Ant�nio S�rgio Tonet.
Com base no tormento vivido por Matheus, o Minist�rio P�blico de Minas quer unificar o entendimento do TJ. Em 23 de agosto, Tonet deu entrada em pedido de uniformiza��o de jurisprud�ncia na 6ª C�mara Criminal do tribunal. “Quero propor uma cruzada de convencimento do Poder Judici�rio, para que os criminosos respondam por tortura e n�o por crimes menos graves, como maus-tratos ou les�es corporais, que acabam sendo beneficiados com a prescri��o, gerando a sensa��o de impunidade dos autores”, compara.
Beb� atacado
A import�ncia da batalha travada pelo Minist�rio P�blico fica clara quando se considera o desenrolar de outro caso de viol�ncia extrema contra crian�as, praticada contra a menina Yasmin, ent�o com 1 ano e 11 meses, de Tim�teo, no Vale do A�o, a 196 quil�metros de BH. Em 2008, o padrasto foi encarregado de cuidar da menina das 18h at� que a m�e chegasse do servi�o, por volta das 23h. Como a enteada n�o parava de chorar, Jonathan Matos Estev�o a espancou de forma cruel, provocando hematomas generalizados pelo corpo, cabe�a, m�os e abd�men, com golpes que chegaram a lacerar o f�gado da crian�a.
Acusado de pr�tica de tortura, prevista na Lei 9.455/97, que estabelece de 4 a 16 anos de cadeia, o agressor poder� ficar livre antes de acabar o julgamento. O juiz de primeira inst�ncia desclassificou o crime para maus-tratos, punido com pena de 2 meses a 1 ano de pris�o, ou mesmo pagamento de multa, segundo o C�digo Penal. O Minist�rio P�blico apelou ao TJ, mas a 2ª C�mara Criminal manteve a decis�o. Agora, o procurador Tonet interp�s recurso especial para tentar reverter o caso no Superior Tribunal de Justi�a (STJ). O MP quer condenar tamb�m a m�e da crian�a a 1 m�s de pris�o, por omiss�o de socorro.
Se o STJ n�o reformar a senten�a, ocorrer� a prescri��o do crime de maus-tratos, porque a pena � baixa (de dois meses a um ano), e o agressor sair� impune, pois o tempo decorrido j� seria suficiente para a absolvi��o. No processo, o padrasto negou ter batido em Yasmin, mas uma vizinha que viu as agress�es e ouviu os gritos da crian�a aceitou testemunhar no processo. No hospital para onde a crian�a foi levada, o m�dico acionou a pol�cia ao identificar marcas antigas de mordidas, provocadas por adulto, al�m das novas les�es. Yasmin ficou oito dias internada at� se recuperar da cirurgia a que precisou ser submetida.
J� o padrasto do menino Matheus est� preso, condenado a 9 anos e quatro meses de cadeia em regime fechado, denunciado pelo crime de tortura. Ele cumpriu menos de um ano da pena e poder� ser solto a qualquer momento. Dependendo do resultado do julgamento prestes a ocorrer na 6ª C�mara Criminal do TJMG, o crime poder� ser desclassificado, podendo chegar � pena m�xima de 4 anos, devido ao agravante de ter provocado les�o severa na v�tima. Ainda assim, a condena��o corresponderia a menos da metade do per�odo a que o homem foi sentenciado inicialmente.
(*) Para preservar a crian�a, apenas os primeiros nomes dos envolvidos foram adotados nesta reportagem
O que diz a lei
O artigo primeiro da Lei 9.455/97 considera crime de tortura constranger algu�m com emprego de viol�ncia ou amea�a, causando sofrimento f�sico ou mental para obter informa��o, declara��o ou confiss�o da v�tima ou de outra pessoa; para provocar a��o ou omiss�o criminosa; em raz�o de discrimina��o racial ou religiosa; al�m de submeter algu�m sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de viol�ncia ou amea�a, a intenso sofrimento f�sico ou mental, como forma de castigo ou medida de car�ter preventivo. A pena simples � de reclus�o, de 2 a 8 anos. Se houver les�o corporal grave ou grav�ssima, a pena � de reclus�o de 4 a 10 anos; se resulta em morte, a reclus�o � de 8 a 16 anos. Aumenta-se a pena de um sexto at� um ter�o se o crime � cometido contra crian�a, gestante, portador de defici�ncia, adolescente ou maior de 60 anos. S�o penas muito superiores � do crime de maus-tratos, previsto no artigo 136 do C�digo Penal, definido como expor a perigo a vida ou a sa�de de pessoas sob sua autoridade, guarda ou vigil�ncia, para fim de educa��o, ensino, tratamento ou cust�dia, privando-a de alimenta��o ou cuidados ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, ou ainda abusando de meios de corre��o ou disciplina. A pena � de deten��o, de 2 meses a 1 ano, ou multa. Se ocorrer les�o corporal grave, a pena � de 1 a 4 anos. No caso de morte, de 4 a 12 anos. Aumenta-se a pena em um ter�o se o crime � praticado contra menor de 14 anos.
Espancamento e morte
Na �ltima sexta-feira, a m�e e o padrasto de um menino de 4 anos foram autuados por homic�dio qualificado por tortura, com pena de 12 a 30 anos, em Tr�s Marias, na Regi�o Central do estado, a 276 quil�metros de Belo Horizonte, suspeitos de espancar a crian�a at� a morte. A v�tima morreu na quinta-feira. Segundo a pol�cia, o menino foi levado a um hospital de Sete Lagoas, na mesma regi�o, com ferimentos pelo corpo e seria transferido para Belo Horizonte, mas morreu antes. A m�e, de 24 anos, e o padrasto, de 23, alegaram que os hematomas seriam consequ�ncia de uma queda da crian�a do vaso sanit�rio dentro de casa. Contudo, o laudo da m�dica-legista apontou que o menino foi agredido.
Discuss�o envolve at� a ONU
Para algumas gera��es, a palavra tortura remete ao regime militar instalado no pa�s nas d�cadas de 1960 a 1980, e ao sofrimento mental e f�sico impingido pelo agente p�blico para arrancar confiss�es. Na defini��o mais atual, defendida pelo Minist�rio P�blico de Minas e aceita na maior parte dos estados, o crime pode ser praticado tamb�m por particulares.
A confus�o se deve ao fato de o Brasil ser signat�rio de conven��o da Organiza��o das Na��es Unidas (ONU), que associou o crime de tortura � a��o de agentes p�blicos, como policiais. Para os defensores da tese da atribui��o de tortura a particulares, a conven��o n�o impede os pa�ses de aprovarem leis ampliando o campo de prote��o aos direitos humanos. Tanto que a Lei da Tortura, 9.455, de 1997, abriu a possibilidade de particulares tamb�m responderem pelo crime.
Nos dois casos h� uma rela��o de superioridade entre o agressor e a v�tima, que podem ser padrasto e enteado, pais e filhos, tio e sobrinho. “Trata-se de uma pessoa indefesa que est� sob a autoridade do agressor. O melhor crit�rio para diferenciar os crimes � a vontade do agente”, explica o procurador de Justi�a Ant�nio S�rgio Tonet. Se a inten��o era corrigir ou disciplinar, o crime ser� tipificado como maus-tratos. “Se houver sofrimento extremado da v�tima, revelando motivo desprez�vel ou mesmo sadismo, � tortura”, completa.
