
Bambu� – A dona de casa Maria Aparecida da Silva aparenta ter mais de 65 anos. Tem o rosto envelhecido pelo sofrimento. Quando nova, chamava a aten��o pelos cabelos louros e lisos, os olhos esverdeados e o corpo esbelto. A beleza da m�e, por�m, tornou-se uma maldi��o na fam�lia. Quatro dos cinco filhos de Aparecida sumiram misteriosamente, ainda beb�s, durante a d�cada de 1960, dentro da col�nia para doentes de hansen�ase S�o Francisco de Assis, em Bambu�, na Regi�o Centro-Oeste de Minas Gerais. Renata e Wilson tinham pele cor de jambo e olhos de esmeralda, V�nia e J. eram louras de nascen�a. Com a m�e, restou apenas Reinaldo, o �nico de pele mais morena e olhos castanhos.
Desde que entrou na col�nia, h� quase meio s�culo, Aparecida nunca mais saiu. Vai sair agora, depois de descobrir uma pista sobre o paradeiro da filha mais nova, J., que at� ent�o era dada como morta. Hoje, Aparecida e o �nico filho ‘sobrevivente’ enfrentam 598 quil�metros de estrada de Bambu� a S�o Paulo em busca de um rastro de esperan�a. “Eu era interna da col�nia. Um dia, depois de muito custo, recebi autoriza��o para ver meus filhos na pupileira (orfanato), em Belo Horizonte. Disseram que o mais velho tinha falecido de icter�cia, que a Renata n�o tinha resistido a uma transfus�o de sangue e que J. tinha morrido, mas n�o disseram de qu�. N�o peguei certid�o de �bito, nem nada. S� queria ir embora dali”, diz, com os olhos vermelhos pela emo��o.

Aparecida tinha 18 anos quando contraiu hansen�ase, a lepra. Trabalhava na ro�a de algod�o com a m�e, em Claraval (SP). Estava ainda de resguardo da Renata, a mais velha, quando come�ou a n�o sentir as m�os. Algu�m a denunciou para a sa�de p�blica, dando in�cio � trajet�ria de ang�stia e d�vidas. Hoje, o sofrimento de Aparecida poder� ser amainado. M�e e a poss�vel filha concordaram em se submeter a um teste de DNA em SP. “Se for mesmo minha filha, n�o sei como ela vai me receber. Esquecer, eu nunca me esqueci dela. N�o sei se ela sabe que a gente n�o podia ficar com as crian�as, s� podia ver o beb� na hora em que nascia. N�o acho que faziam isso por maldade; eles tinham medo de espalhar a doen�a”, acredita.
A t�cnica de enfermagem J. mora em uma cidade do interior paulista e sempre desconfiou que era adotada, mas nunca soube a hist�ria verdadeira. Loura, foi chamada de galega pelos irm�os e primos, predominantemente descendentes de �ndios. Ela n�o tem certid�o de nascimento e nenhuma foto da inf�ncia. “Quero que seja verdade, porque s� tenho a somar. Vou ter duas m�es!”, acredita. Ela e o poss�vel irm�o Reinaldo, que t�m a mesma profiss�o, confiam na indica��o de um amigo da fam�lia. Recentemente, essa pessoa ajudou a encontrar as certid�es de nascimento e de ‘�bito’ de J. em um cart�rio de BH, apesar de terem trocados sobrenomes, datas e local de origem, como se costumava fazer nas ado��es irregulares dos filhos da hansen�ase.
Exame
Amanh�, Aparecida e J. seguem juntas para um laborat�rio na capital paulista. O resultado do exame leva at� um m�s para sair. Tempo curto diante dos 45 anos de afastamento compuls�rio entre as duas. “Consegui ver a J. com 15 dias de nascida. Era lourinha. Sou esp�rita e dei a ela um nome com significado. Como n�o podia amamentar, passei a usar colar de mamona no pesco�o para secar o leite. Toda vez que pensava nela, o leite descia”, lembra a m�e, emocionada.
Quando entrou, em 1964, para o isolamento, de onde nunca mais saiu, Aparecida era uma das jovens mais belas da col�nia. Tinha o cabelo louro, em estilo Chanel, mesmo corte de cabelo usado hoje pela prov�vel filha ca�ula. Ela logo engravidou de Gerv�sio Manoel da Silveira, com quem se casou. Em 1965, nasceu Wilson; depois veio Reinaldo, em 1966; seguido de V�nia, em 1968, e, por fim, J., em 1967. “Quando eu me internei, Renata ficou um tempo na ro�a com minha m�e, mas ela n�o tinha condi��es financeiras de cri�-la e mandou entregar a crian�a para mim na col�nia. Minha filha n�o passou nem na cancela. De l�, foi levada direto para o por�o da administra��o”, diz. At� hoje, apesar de n�o existir mais col�nia, nem isolamento, est� mantida a cancela com porteiro na Comunidade S�o Francisco de Assis.
A mais velha, Renata, � filha do primeiro noivo de Aparecida, que ficou do lado de fora da col�nia. Segundo a certid�o de nascimento original, que pode ter sido modificada depois da ado��o, Renata veio ao mundo em 16 de outubro de 1962. Hoje, portanto, estaria com 50 anos. Meio s�culo de dolorosa separa��o. H� ind�cios de que ela teria sido adotada por um casal de italianos. “Quando fui v�-la, ela estava com 2 anos. Usava um vestidinho azul e, quando me viu, come�ou a chamar ‘nan�e’, ‘nan�e’, porque n�o sabia falar direito”, conta, escondendo a cabe�a entre as m�os, que n�o apresentam sequelas da hansen�ase.
Doen�a tem cura desde 1940
Mais antiga doen�a da humanidade, a hansen�ase � caracterizada pela presen�a de feridas no corpo do enfermo, que podem provocar deformidades f�sicas na fase aguda. � transmitida pela respira��o, atrav�s do contato �ntimo e prolongado com o portador do bacilo de Hansen. A doen�a j� tem cura desde 1940. No Brasil, o tratamento com poliquimioterapia (PQT) � simples e oferecido gratuitamente nos postos de sa�de, segundo o Minist�rio da Sa�de. A primeira dose de medicamento mata 90% dos bacilos e a doen�a j� deixa de ser transmitida. O tratamento n�o pode ser interrompido e dura em m�dia seis meses.
Entrevista
"Pe�o a Deus que ela seja minha m�e"
J. - auxiliar de enfermagem que pode ser filha de Maria Aparecida Silva
Dependendo do resultado do teste de DNA, a auxiliar de enfermagem J. poder� descobrir que seu nome no registro de nascimento n�o come�a com outra letra do alfabeto, que seu sotaque paulista n�o � de origem, que tem outra m�e e que sua filha ter� mais uma av� e quatro tios. At� a data do seu anivers�rio pode estar errada, pois era costume trocar os dias para apagar qualquer vest�gio de que a crian�a tivesse pertencido a uma col�nia de hansenianos. Ela disse ao EM torcer para que o exame d� positivo. “Se der negativo, v�o sair dois lados tristes desta hist�ria”, diz.
Voc� sempre soube que era adotada?
Sempre ouvi dizer que era adotada. Meus irm�os s�o moreninhos, descendentes de �ndio, e me chamam de galega. Quando tinha sete anos perguntei para a minha m�e e ela disse que havia me achado em uma caixa de sapatos, mas depois desmentiu. N�o tenho fotos da inf�ncia e no meu registro eu nasci no mesmo ano que um dos irm�os. Perguntei para a minha m�e e ela alegou que havia sido erro do cart�rio. Hoje j� nem sei mais meu nome correto nem a idade que eu tenho.
Voc� sente que o teste de DNA vai dar positivo?
Pode ser que sim, pode ser que n�o. Mas se der negativo, v�o sair dois lados tristes desta hist�ria. No fundo, a gente sempre quer saber de onde veio. Se meus pais adotivos n�o contaram � porque n�o conseguiram. Devem ter ficado com medo de que eu abandonasse tudo. Tenho uma colega que ficou revoltada ao descobrir a ado��o.
Existe esse risco para voc�?
Imagine! Para mim n�o tem divis�o, vai ser uma soma. Vou passar a ter duas m�es, um monte de irm�os, minha filha vai ter v�rias av�s… Do fundo do meu cora��o, estou pedindo a Deus que ela seja a minha m�e. Preciso acabar com essa d�vida.

Hist�rias de separa��es
O biotipo de Reinaldo aparentemente n�o interessava nas ado��es irregulares que ocorriam aos montes nas col�nias da �poca, criadas a partir da d�cada de 1920 com o objetivo de isolar doentes de hansen�ase para tratamento compuls�rio. Ao dar entrada no isolamento, levados muitas vezes � for�a, m�es e pais eram obrigados a abandonar os filhos j� na cancela de entrada dos hospitais-col�nia. Calcula-se que entre 25 mil e 40 mil beb�s e crian�as foram separados de seus pais, como forma de evitar o cont�gio. Cresceram internados em 101 creches (prevent�rios) e orfanatos (educand�rios) no Brasil.
Nem todos os filhos separados de seus pais cresceram em internatos. Muitos morreram no caminho ou foram dados como mortos, quando eram encaminhados para ado��o a fam�lias de posses e sobrenomes importantes no Brasil e no exterior. “Fato � que existia preconceito. S� ocorriam falecimentos de crian�as brancas no sistema”, ironiza Reinaldo, de 48 anos. Casado e com uma filha, ele continua morando perto da m�e e complementa a renda da enfermagem trabalhando como taxista.
Segundo ele, J. se parece muito com V�nia, a irm� do meio. De cabelos louros e corte Chanel, V�nia havia sido dada em ado��o a um casal de m�dicos de Carlos Chagas. Recentemente, foi localizada com a ajuda de um amigo da fam�lia, o mesmo que tenta agora encontrar J. A diferen�a � que a entrega de V�nia para ado��o, na �poca, teria ocorrido com o consentimento do pai. Gerv�sio j� morreu. V�nia tem dificuldades em aceitar a nova realidade. E Aparecida tem medo de voltar a sofrer. “Tenho medo de eles me rejeitarem”, desabafa.