
Ant�nio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814), maior artista brasileiro de todos os tempos, deixou no alto de um dos morros da cidade hist�rica de Congonhas, a 89 quil�metros de Belo Horizonte, sua obra-prima: os Passos da Paix�o de Cristo. Por tr�s anos, entre 1º de agosto de 1796 e 31 de dezembro de 1799, ele executou, ao lado dos ajudantes de seu ateli�, as 66 figuras em cedro instaladas em grupos: ceia, horto, pris�o, flagela��o, coroa��o de espinhos, cruz �s costas e crucifica��o. � magistral miss�o de criar o conjunto de esculturas somaram-se outros dois talentos da �poca: os pintores Manuel da Costa Ata�de e Francisco Xavier Carneiro. O primeiro cuidou das policromias das imagens da ceia, flagela��o e crucifica��o e o outro do restante das pe�as, trabalho s� finalizado em 1819.
Muitos mist�rios envolvem a cria��o dos passos, assim como a real participa��o dos ajudantes de Aleijadinho na empreitada e ainda a biografia do mestre escultor. Por�m, nada conseguiu, quase dois s�culos ap�s a morte do artista, ofuscar a grandiosidade daquele feito, considerado pela Organiza��o das Na��es Unidas para Educa��o, Ci�ncia e Cultura (Unesco) como Patrim�nio Cultural da Humanidade. O voc�bulo “passo”, denomina��o para as esta��es da via-sacra, traz duplo sentido, como explica a pesquisadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, no livro 'Passos da paix�o – O Aleijadinho' (Edi��es Alumbramento). � algo que serve para designar o epis�dio do passio do Cristo e ainda o deslocamento do peregrino entre esses marcos.
A devo��o � via-sacra foi propagada no Brasil, sobretudo, pela atua��o dos frades franciscanos, que possu�am, como explica a pesquisadora, o privil�gio da guarda dos lugares santos em Jerusal�m, onde tamb�m foram os criadores dos primeiros roteiros organizados para uso dos peregrinos. “Em seus conventos espalhados por todo o mundo quase sempre figura uma via-sacra a c�u aberto, sendo particularmente not�vel, no Brasil, a s�rie de Passos em pain�is de azulejos do Convento de Santo Ant�nio, de Jo�o Pessoa”, exemplifica. Como os conventos de ordem religiosa foram proibidos em Minas, coube � irmandade do Senhor dos Passos das par�quias disseminar a devo��o. Assim surgiram, nas antigas vilas coloniais mineiras, as capelinhas dos Passos, como em Ouro Preto e Tiradentes. Em Congonhas aconteceu diferente.
Coube ao portugu�s Feliciano Mendes, acometido por uma enfermidade incur�vel � �poca, realizar uma promessa a Bom Jesus de Matosinhos: caso se curasse, fundaria uma irmandade em Congonhas semelhante � do Norte de Portugal. Ele havia desbravado anos antes aquelas terras na Regi�o Central de Minas e descoberto ouro. A doen�a veio junto com seu enriquecimento. Felizmente sua promessa surtiu efeito positivo. Como forma de gratid�o, ele dedicou o resto da vida a fundar, naquele vilarejo, n�o s� a irmandade a Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo, como cuidou pessoalmente de angariar recursos para constru��o de uma igreja monumental no pico de uma das colinas mais altas do lugar, al�m dos Passos da Paix�o com as 66 figuras em cedro e dos 12 profetas em pedra-sab�o. Para a miss�o chamou Aleijadinho, o maior artista daqueles tempos. Desde 1780, aquela irmandade passou a organizar e promover a romaria e os jubileus atraindo, sempre em setembro, milhares de peregrinos.
As principais fontes para o estudo dos passos est�o no lugar de origem, o arquivo do Santu�rio e Irmandade do Senhor Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas. Os documentos foram transcritos em in�meras publica��es e citam como marco inicial o ano de 1796, quando come�a a aparecer o nome de Aleijadinho nos registros. Mesmo estando o adro e as escadarias conclu�dos, o primeiro trabalho do escultor na regi�o n�o foram os profetas, mas sim as imagens dos passos. As capelas, at� ent�o, n�o tinham sido iniciadas. Ao escultor, al�m da coordena��o de todos os trabalhos do ateli�, cabia esculpir v�rias das est�tuas. A distin��o entre aquelas pe�as criadas pelo pr�prio mestre e as atribu�das aos seus assistentes � motivo de uma an�lise � parte.
ESTILO PR�PRIO N�o h� como negar que existe uma superioridade entre as imagens criadas pelo artista e seus seguidores. Germain Bazin, um dos principais bi�grafos de Aleijadinho, j� enumerou l� atr�s as caracter�sticas do estilo do artista, como os “panejamentos angulosos” e alguns aspectos peculiares � morfologia dos corpos, citados nos estudos de Myriam Andrade Ribeiro. S�o exemplos a estrutura robusta com m�sculos e veias salientes; a articula��o em V do pesco�o; a conforma��o especial do rosto com os malares altos e o queixo dividido em duas se��es; os olhos rasgados com linha inferior em semic�rculo; os lacrimais acentuados e a �ris plana (quando da aus�ncia dos olhos de vidro); as sobrancelhas altas e em linha cont�nua com o nariz; o contorno sinuoso dos l�bios; os dedos alongados com as unhas quadrangulares e o defeito da m� implanta��o do polegar. A distin��o entre o que � ou n�o de autoria de Aleijadinho, apesar dos tra�os fortes do seu estilo, se dificulta, devido ao esfor�o imitativo dos seguidores.
H� v�rias peculiaridades nos Passos da Paix�o em Congonhas que merecem aten��o. Diretor de Patrim�nio de Congonhas, o tamb�m escultor Luciomar de Jesus faz quest�o de ressaltar que este � o �ltimo grande trabalho de Aleijadinho. “Foi seu maior desafio tamb�m porque, embora tenha trabalhado em S�o Francisco em Ouro Preto e S�o Jo�o, at� ent�o, n�o havia realizado esculturas nessa propor��o e quantidade.” Outra peculiaridade � o fato de o conjunto representar um dos �ltimos suspiros do estilo barroco. “Aleijadinho conseguiu realizar aqui nos Passos da Paix�o a primeira manifesta��o art�stica genuinamente brasileira ao lan�ar m�o de um repert�rio j� desgastado na Europa e, com ele, imprimir sua genialidade”, enfatiza. A dramaticidade das cenas tamb�m merece aten��o. “Ainda hoje quando os romeiros chegam at� aqui eles se at�m ao objetivo devocional e n�o somente com o aspecto art�stico.”
Linha do Tempo
1780 - Irmandade a Bom Jesus do Matosinhos come�a a promover romarias e angariar recursos para a constru��o de uma igreja e dos Passos da Paix�o
1796 - Aleijadinho e sua equipe iniciam a execu��o de 66 figuras em cedro da Paix�o de Cristo
1813 a 1818 - � constru�da a Capela do Passo do Horto, ao lado esquerdo da rampa, perto da ceia
1819 - Termina o trabalho de policromia das imagens da ceia, flagela��o e crucifica��o
1864 - Come�a a constru��o da Capela da Flagela��o e Coroa��o de Espinhos. As obras dos passos ficaram paralisadas durante meio s�culo
1867 a 1875 - Constru�da a pen�ltima capela, que abriga o Passo da Subida ao Calv�rio
1939 - Conjunto � tombado pelo Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan)
1985 - Passos da Paix�o passam a ser Patrim�nio Mundial da Unesco