O encontro foi marcado na porta da pr�pria casa, em um bairro de classe m�dia da Regi�o Oeste de Belo Horizonte. Meia hora antes, o carro da reportagem estaciona em frente ao n�mero indicado. A rua est� vazia. No pr�dio, os entregadores de um caminh�o de mudan�a descarregam mob�lia. Vida que segue. Nem parece que daquele mesmo port�o est� para surgir uma quase celebridade. O tempo parece se arrastar. Um dos dois assessores liga. Confirma que a figura j� est� descendo, “desculpe a demora”. De longe, vem vindo um belo rapaz. Com seu gingado masculino, bra�os musculosos e jeans abaixo da cueca, chama a aten��o por onde passa. Tem pose de artista. Entra no banco de tr�s do carro e se acomoda com desleixo, como se fosse seu. D� um aperto de m�o forte, viril. Depois, vira-se para o motorista e se apresenta, com timbre de voz grave e sorriso maroto: “Oi, sou a Tereza Brant. Tudo bem?”
Esse perfeito menino nasceu mulher, h� 20 anos. Depois de aparecer em capas de revista e programas de tev�, passou a ser reconhecida nas ruas, especialmente por adolescentes. Gra�as � fama instant�nea, Tereza Brant trouxe visibilidade para um mundo que � mais dif�cil e complicado do que parece. Chamados de homens trans, eles s�o a �ltima categoria a “sair do arm�rio” dentro do movimento LGBT (l�sbicas, gays, bissexuais e travestis). Eles se definem como pessoas que nasceram com a mente masculina no corpo de uma mulher. Em Belo Horizonte, os homens (e mulheres) trans est�o reunidos no clube secreto da internet FTM (Female to Male, que significa “de mulher para homem”). Criado em junho, registra 67 transexuais. O grupo pode ser at� maior, mas evita se expor publicamente. A maioria quer dist�ncia de holofotes, flashes de c�meras e at� da luz do sol. Prefere sair � noite. “Antes de concluir minha transforma��o, tinha pavor de sair na rua e de ser reconhecido como mulher. Andava encurvado, tentando esconder os peitos. Agora � que estou corrigindo minha postura”, explica o artista pl�stico Paulo, de 26 anos, que faz o estilo cult, usando cal�a marrom xadrez, t�nis despojado e costeletas bem delineadas. Fundador do FTM em BH, � o �nico do grupo que j� operou os seios.
Filha �nica de uma instrumentarista cir�rgica e de um funcion�rio aposentado da Caixa Econ�mica Federal de BH, Tereza Brant sempre desejou ser famosa, mas s� foi “descoberta” quando assumiu a apar�ncia de homem. “Sempre quis ser eu mesma, sem me encaixar em caixas classificat�rias de g�nero. Sou feliz assim. Sou Tereza”, revela ela, que h� 10 meses iniciou uma terapia com horm�nios e, este m�s, deve fazer a cirurgia de retirada das mamas. Entretanto, quer continuar a ser chamada pelo nome de batismo.
“Tereza Brant pode at� se sentir mulher, mas eu n�o. Sou um homem”, esbraveja o barman Luan*, de 23, gerente de uma drinqueria badalada na noite de BH. Ele conta j� ter sofrido discrimina��o de parentes, de heterossexuais e at� de gays, para quem virar trans homem representa uma esp�cie de capricho de l�sbicas. “S� eu sei o que passei. Custei a conseguir o respeito da minha m�e, da fam�lia da minha esposa, dos patr�es, dos clientes do bar”, completa. Com o aux�lio de testosterona, Luan enterrou no passado a Luana, a garotinha meiga da cidade do interior. Deixou transbordar de dentro da alma um verdadeiro ogro: irritadi�o, coberto de tatuagens e piercings. “Lembro como se fosse hoje do dia mais feliz da minha inf�ncia. Foi quando vesti um terno, que era do meu irm�o. Eu tinha 7 anos.”
ESCONDIDOS Eles n�o se parecem com l�sbicas e nem mesmo com mulheres masculinizadas. � primeira vista, passam por rapazes, com direito a barba, topete e bigode. Por viverem �s escondidas ou amparados por identidades ocultas, depois da transforma��o hormonal poderiam ser confundidos com o filho da vizinha ou com cabeleireiro da esquina. Nesse �ltimo caso, n�o se trata de for�a de express�o. Medeiros* � dono de um pequeno sal�o de beleza na Zona Sul de Belo Horizonte.
Alto e sarado, como se diz na g�ria das academias, costuma ser cantado pelas clientes do sal�o, que nem sequer desconfiam estar paquerando uma mulher. “Nunca dei liberdade, pois sabia do potencial de fofoca que isso poderia gerar”, explica ele, que h� um ano e meio come�ou a namorar a recepcionista da empresa, uma jovem de 22 anos. A fam�lia da mo�a, cat�lica fervorosa, acredita piamente que a menina est� comprometida com um rapaz comum. * Nomes fict�cios
Cirurgia pelo SUS
Para alguns estudiosos, os transexuais masculinos e femininos sofrem de transtorno de identidade de g�nero ou de disforia de g�nero, que � o persistente desejo de se identificar com o sexo oposto. Para outra corrente de pensamento, por�m, n�o � correto caracterizar como patologia ou dist�rbio mental, assim como foi feito nos anos 1990 com os homossexuais.
Desde 2008, o Sistema �nico de Sa�de (SUS) garante a cirurgia de mudan�a de sexo, denominada processo transexualizador, a partir dos 18 anos. At� hoje, 192 pessoas entraram com pedido de realiza��o dessa cirurgia pelo SUS. Em mar�o, o Conselho Federal de Medicina (CFM) passou a recomendar a aplica��o da terapia de horm�nios a partir dos 12 anos, quando come�am os sinais da puberdade. O tratamento inicial bloquearia justamente a puberdade de g�nero de nascimento.
Discretos, quase invis�veis
A invisibilidade dos homens trans no pa�s chamou a aten��o de pesquisadores dos departamentos de Antropologia e de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O estudo, in�dito, tenta desde 2011 mapear o perfil dos homens trans. Esbarra, por�m, no comportamento arredio dos transexuais, que evitam comparecer �s reuni�es. Dos tr�s encontros marcados at� agora, o grau de comparecimento foi de apenas seis entrevistados no projeto Transexualidades e Sa�de no Brasil: entre a invisibilidade e a demanda por pol�ticas p�blicas para homens trans.
“Nosso intuito era conhecer o perfil desses meninos. N�o existem dados concretos sobre o tema no Brasil e muitas pessoas desconhecem essa realidade. Eles sofrem preconceito, rejei��o das fam�lias e acesso prec�rio � sa�de”, afirma a antrop�loga �rica Renata de Souza. Coordenadora da pesquisa pela UFMG, ela se viu obrigada a restringir o campo de estudos a Belo Horizonte, S�o Paulo e Campinas.
PAP�IS INVERTIDOS Nascido como menina, Paulo divide o apartamento alugado na Zona Sul da cidade com a namorada, do Par�, a modelo transexual Gisele*, batizada originalmente como Gilson, de 20 anos. Ele era ela e ela era ele. Na pr�tica, o casal inverteu os pap�is. “Nunca vi o p... de Gisele. Ela morre de vergonha. N�s queremos fazer a cirurgia de mudan�a de sexo na Alemanha, onde o procedimento est� mais avan�ado. No Brasil, ainda � experimental”, diz Paulo, de m�os dadas com a namorada.
Apesar de ter m�os pequenas e delicadas, ele � quem entrela�a os dedos da namorada, que tenta disfar�ar a sua com muitos an�is e unhas pintadas de vermelho vivo. Ao contr�rio dos transexuais femininos, que podem ser �s vezes identificados pela sali�ncia na garganta, o popular gog�, ou pelo tamanho dos p�s e das m�os, os homens trans tornam-se muito parecidos externamente com os nascidos nessa condi��o biol�gica. A partir de seis meses de inje��o de horm�nios, que deve ser tomada pelo resto da vida, ganham voz grossa, pelos no corpo e for�a muscular. “Em n�s, meninos, o �nico por�m s�o as m�os, que n�o crescem, nem tomando T (testosterona). Essa � uma caracter�stica dif�cil de mudar”, ri Paulo.
O depoimento de uma m�e
Luciana Paes - Designer de joias, m�e de Luan*
“Nossa rela��o sempre foi de muita cumplicidade. Ele sempre foi uma crian�a de opini�o, sabia o que queria, era curioso. Negoci�vamos tudo, desde o castigo at� as recompensas. Tudo foi acontecendo de forma natural, m�e sempre sabe, sempre percebe... As brincadeiras foram ficando cada vez mais masculinas, os amiguinhos da escola eram na maioria meninos. Vivia descabelado e suado. E minha rela��o com ele, por causa disso, nunca mudou. Eu o deixava escolher suas roupas, seus t�nis, bon�s, brinquedos, carrinhos, se vestia como ele gostava.
Dentro de mim, sinceramente, n�o mudou nada. Mas n�o hav�amos falado sobre essas diferen�as entre ele e as outras menininhas da escola. A hora da verdade ocorreu quando ele tinha 13 anos e pediu dinheiro para cortar o cabelo, que, na �poca, era longo. Uma hora depois, chegou em casa com a cabe�a raspada. Fiquei muda, era a hora de conversar. Ele me disse que gostava de meninas, que estava apaixonado, e eu agi de forma natural. Conversamos muito, na verdade sempre soube, s� foi a hora de botar um “r�tulo” nisso (e eu ODEIO r�tulos).
Meu maior medo era a rea��o do mundo l� fora. Tudo foi feito com muita responsabilidade, est�vamos com ele para o que der e vier, e isso afastou muita gente maldosa, entende? Essa decis�o do Luan n�o me veio como uma bomba que explode na cara, veio como uma nova etapa a seguir. Aos 19 anos, ele estava passando por uma fase terr�vel da vida dele. Sentia-se homem, mas n�o conseguia se ver como um homem quando olhava no espelho. Ele n�o era l�sbica, ele era homem... mas como? Dif�cil entender, n�?
Ele queria culpar algu�m, algo, Deus, sei l�, por ter um corpo feminino. Foi complicado. Um dia, sem hora marcada, ele me disse que iria tomar horm�nios e ficar com apar�ncia masculina, mudar seu nome, documentos, e faria algumas cirurgias. Creio que ele tenha pensado que eu iria surtar, mas n�o. Fiquei feliz de ele ter ‘se encontrado’ . Mas pedi que ele fizesse isso tudo com acompanhamento m�dico, porque eu queria estar junto dele. E assim foi. Mais uma etapa que come�amos juntos. Naquele dia, nasceu uma pessoa incr�vel, que voc� conheceu e que veio pra ser aceito como �, e pra ser feliz.”