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Estado de Minas

Conjunto JK � uma cidade de vidro com mais de 5 mil moradores

Livre do passado decadente e dos preconceitos, JK guarda atr�s de cada porta, em cada apartamento, hist�rias de alegria, amor, sonhos e dores j� resolvidas


postado em 09/02/2014 00:12 / atualizado em 09/02/2014 07:22

Jefferson da Fonseca Coutinho

 

(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

Uma cidade vertical com cinco mil habitantes, acomodados em duas torres com 1.086 apartamentos de 13 tipos. Complexo mais populoso do que 222 munic�pios de Minas Gerais – segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE), de 2013. Pelo menos quatro gera��es reunidas, com pessoas das mais diversas classes sociais, oportunidades e inclina��es de raz�o e sorte. Inspirado em Edif�cio Master, do cineasta Eduardo Coutinho, morto tragicamente na semana passada, o Estado de Minas passou tr�s dias e duas noites no Conjunto Kubitschek, o conhecido JK, no Bairro Santo Agostinho, na Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte, e encontrou personagens e argumentos que renderiam muitos filmes ao mais importante documentarista brasileiro.

Os corredores parecem n�o ter fim. Maiores que muitas ruas de pequenas cidades do mundo, sugerem imensa a vizinhan�a. Contudo, na grande maioria, s�o tra�ados de discri��o e reserva. Ali, fora os encontros da turma do Ch� dos Amigos – pequeno projeto de conviv�ncia entre cond�minos – pouco se sabe sobre a vida dos outros. Alguns romances, por�m, perpassam portas e janelas. No d�cimo andar, o som do piano faz parecer filme a imers�o da reportagem: Eu sei que vou te amar, de Vin�cius de Moraes e Tom Jobim, na voz que rompe o espa�o, grave e rouca. Um morador canta paix�o e recita Soneto da fidelidade.

A fresta da porta � convite aplateia mais curiosa. A performance � de quem conhece bem a m�sica e o que a poesia quer dizer. No �ltimo acorde, o sil�ncio que precede as palmas. Aplaudido, o artista vem ao corredor para atender o p�blico estranho, de p�. Abordagem delicada… Uma entrevista? “Claro!”, sorri o pianista Rog�rio Andrade de Macedo, de 56 anos, sem olhar desconfiado ou sabatina.

NIEMEYER Antes, um pouco mais sobre o endere�o de tantas hist�rias, projetado em 1952 por Oscar Niemeyer (1907-2012). S�o 17 os elevadores que fazem o transporte p�blico da cidade JK. H� uma torre, anexa ao Bloco A, s� para o sobe e desce no complexo. No maior aglomerado de moradores, os “carros-lota��es” fazem ponto apenas nos andares �mpares, numa plataforma de passageiros entre um andar e outro. O que d� mais velocidade ao tr�fego. Por um lado. Por outro, um assombro para os cadeirantes e mais idosos, que n�o est�o livres de ao menos 10 degraus, para baixo ou para cima, para sair e voltar para casa.

Na casa do pianista, um apartamento do tipo dois quartos, muitas surpresas. Uma delas � que o m�sico, na verdade, � um engenheiro que “chutou o balde” dos c�lculos mais exatos para “ser feliz”. Um estudioso de letras e melodias, colecionador de amigos e de mais de 30 instrumentos de teclas, sopro, cordas e percuss�o. Depois de rodar o mundo, Rog�rio decidiu vender a casa no Bairro Santo Ant�nio e morar no JK. Tamb�m vendeu a casa de praia, em Dunas de Ita�na, no Norte do Esp�rito Santo, para se dedicar � vida simples. “Quanto mais estudo a m�sica, de menos dinheiro preciso e sou muito mais feliz”, sorri.
 


"A riqueza deste pr�dio est� nos moradores" - Andrea Martins, designer (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press )
Corredores plenos de vida


As paredes de vidro do JK guardam os segredos de muitos. Em cada unidade, como no filme Edif�cio Master, do cineasta Eduardo Coutinho, retalho bem particular de recurso e gosto. Nos 21 apartamentos visitados e 33 personagens conhecidos, em comum – locador ou propriet�rio, jovem ou velho –, a paix�o e o orgulho da porta para dentro. “A riqueza deste pr�dio est� nos moradores”, diz Andrea Martins, de 45 anos. Dona de apartamento dos mais aconchegantes, a designer conhece bem a obra de Niemeyer desde o fim da inf�ncia, quando a irm� mais velha tornou-se moradora do Bloco B. Ela conta que havia acabado de ler O iluminado, de Stephen King, e que ficava aterrorizada com os corredores intermin�veis e escuros do edif�cio.

O estigma de conjunto decadente, h�bitat de traficantes, drogados, travestis e prostitutas, � passado. Pouco a pouco revitalizado, o JK de outros tempos – alvo de preconceito e generaliza��es – se esvai. Valorizado, com quitinetes ofertadas na casa dos R$ 150 mil, o endere�o vai ganhando cada vez mais a simpatia de estudantes, artistas, professores, arquitetos e aposentados. Especialmente, segundo moradores, pela localiza��o privilegiada, pr�ximo � Regi�o Central, com f�cil acesso aos principais corredores da cidade. No conjunto, h� ainda o Terminal Tur�stico JK, em galeria com 51 lojas, com a circula��o de 10 mil passageiros por m�s.

H� rigor na portaria. Em tese, nenhum visitante entra ou sai do pr�dio sem apresentar documento de identidade. Depois das 22h, a entrada de estranhos ao condom�nio s� � permitida na companhia do morador anfitri�o. Entretanto, n�o h� comunica��o entre a portaria e as unidades residenciais. O visitante se identifica, diz o nome do morador e o n�mero do apartamento e sobe. Simples assim. O Bloco A, com entrada pela Rua Timbiras, tem 23 andares. Nele, s�o 647 unidades. J� o B, com entrada pela Rua Guajajaras, tem 36 pisos, com 439 moradias. Nas �reas comuns, destaque para a limpeza.

“Vivi a fase dark do JK. O pr�dio, o conjunto todo, era sujo e mal-falado, embora muitas pessoas de bem, de fam�lia, morassem aqui”, conta Andrea. Ela relembra a sujeira que vinha das janelas, empobrecendo ainda mais o lugar. “At� hoje tem muita gente que joga lixo pela janela. Um problema, que � a falta de educa��o”, lamenta. Reservada, de voz bonita e macia, sorridente e acolhedora, a designer resiste em trazer recortes da vida pessoal para a conversa. Fala do pr�dio, do calor, da polui��o e do gosto pela leitura.

Num sopro de confian�a, abre brecha no ba� de saudades para relembrar a m�e, morta num “acidente est�pido”, num domingo de carnaval, aos 49 anos. “O motorista da lota��o fez a curva com a porta aberta e ela caiu. Era pouco mais velha que eu, hoje”, pausa. De jeans e branco, a anfitri� desconversa com eleg�ncia. O sol desce lento no horizonte e traz a paisagem para a pauta. “BH n�o tinha tanta polui��o. Os pr�dios est�o brotando numa velocidade incr�vel e escondendo as montanhas”, diz. Nas m�os, o livro aberto em cap�tulo interessante: “O luxo de ser invis�vel”.

Andrea
Os elevadores sobem e descem carregados de hist�rias. Numa das viagens, o encontro com m�e e filha, moradoras de piso nas alturas. Est�o com pressa e compromissos. A conversa fica para o dia seguinte. Andrea Rosa, de 52, e Daniela, de 7, s�o carisma e boa vontade. Para a mocinha, os porteiros do JK s�o considerados tios. A professora est� no JK h� 24 anos. Hoje, vive com o marido – matem�tico e DJ –, a filha e dois cunhados com necessidades especiais.

Quem v� o sorriso aberto e cheio de vida n�o imagina as dificuldades de sa�de enfrentadas por Andrea nos �ltimos tempos. Menos ainda � capaz de imaginar a mar� de desgosto vivida pela professora entre 1998 e 2000, quando enterrou a m�e e dois irm�os. “Meu pai levantava a m�o em prantos e dizia: ‘Por favor, meu Deus! N�o leve os meus filhos”, emociona-se. Em 2004, aos 82 anos, M�rio de Abreu, o pai, tamb�m se foi. F�s declarados do JK, a fam�lia busca agora um apartamento maior no complexo.


Joseline
Joseline Maria de Andrade, de 65, est� h� 33 anos no JK. S�o 12 no Bloco B e 21 no Bloco A. Recortes n�o faltam � lembran�a da funcion�ria p�blica aposentada. Dos mais terr�veis, o vizinho que tanto batia na mulher. “� muito triste isso, n�o �!?”. Delicada, destaca os bons tempos das flores no jardim que n�o existe mais no n�vel da rua. “Hoje, o melhor que temos aqui � a academia da prefeitura, que atende n�o s� os moradores do JK, como tamb�m os vizinhos da regi�o. As instrutoras s�o um espet�culo”, elogia.

Do casamento de 10 anos, sem filhos, ficou a amizade. “Ele me liga tr�s vezes por dia”, sorri. O companheiro, Fl�vio, voltou para a casa da m�e, de 93, que estava sozinha no Bairro Renascen�a, na Regi�o Nordeste de Belo Horizonte. “Ele agiu certo. � muito nobre. Tive em casa bisav�s, av�s e pais criados juntos, em S�o Jo�o del -Rei. Sei da import�ncia da fam�lia”, considera. Alegre, Joseline gosta de m�sica e de filmes rom�nticos. S�o muitos no m�vel antigo da sala.

A TV � 3D e o som grava e regrava em pen drive. Descolada e atenta �s tecnologias, a aposentada tamb�m gosta de viajar. Depois de Nova York, j� est� com programa��o acertada para a Terra Santa, em novembro. Entretanto, � das coisas mais simples que Joseline gosta mais. Alegra-se ao relembrar o abra�o de moradora de rua que recebeu outro dia. “Foi muito bonito. Ela me pediu um abra�o. Eu dei. E ela disse: ‘Deus te ajude’. Por um abra�o? Isso � bonito demais”, emociona-se.

Rossana
Depois dos anos de aluguel na Rua Araguari, o JK foi uma conquista e tanto para Rossana D’Amices, de 54. O im�vel comprado em “suaves presta��es” na m�o da tia foi um marco na vida da funcion�ria p�blica. Aposentada, Rossana tem passado as manh�s cuidando da sa�de com a pr�tica de hidrogin�stica, body balance e muscula��o. Discreta e reservada, a soci�loga n�o conta muitas amizades no Conjunto Kubitschek. “Tenho vizinhos maravilhosos no meu andar, mas n�o convivo muito aqui. Acho que a discrimina��o que sofri no condom�nio por causa dos meus dois cachorros acabou me afastando daqui”, conta.

Contudo, Rossana revela paix�o pelo endere�o em que vive: “Minha rela��o com o JK � de amor. A localiza��o, meus vizinhos, especialmente os mais velhos, o shopping, o Mercado Central… � um sonho. J� recebi propostas indecorosas pelo meu apartamento e n�o vendo”, garante. Casada h� sete anos com Marcos Vin�cius, de 57, a soci�loga se v� no futuro como no presente: “Aqui, no meu apartamento, curtindo a vida sem pressa”. Sobre a mesinha, ao lado da geladeira colorida, ta�a de vinho pela sa�de do cora��o.

Pedro Morais, 36 anos, arquiteto, em seu apartamento no edifício JK (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Pedro Morais, 36 anos, arquiteto, em seu apartamento no edif�cio JK (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Pedro
Est� na parte alta de uma das torres, por dedica��o de arquiteto morador, tese de responsabilidade inspirada na obra de Niemeyer. Com o t�tulo de “Grandes blocos de habita��o vertical na Am�rica Latina no s�culo 20”, o estudo de Pedro Morais, de 36, prop�e reflex�o sobre as rela��es com o espa�o e traz a import�ncia de complexos como o JK, pensado nos anos 1940, para os dias atuais – tempo de caos em mobilidade urbana.

A unidade do jovem arquiteto, com 110 metros quadrados, tem detalhes em acabamentos que podem confirmar a lenda de que se trata de apartamento acabado especialmente para o presidente Juscelino. S�o muitos os charmes vintages, como azulejos, pisos e lavabo especiais. Nos documentos encontrados por Pedro Morais, entre os nomes de ex-propriet�rios figura o de uma ex-miss do Distrito Federal. Hoje, al�m do arquiteto e sua mulher, � das gatinhas Mafalda e Branca o aconchego do recanto hist�rico.

Misaki
No recanto do engenheiro Rog�rio Andrade, � a mulher agora ao piano. Toca Beatles e Frank Sinatra. Misaki Asai, de 53, veio do Jap�o pela felicidade ao lado do marido companheiro. Advogada, bailarina e professora de japon�s, Misaki � exemplar e exigente tamb�m com a m�sica. “Ela me pro�be de tocar os cl�ssicos. Ela diz que Beethoven n�o criou para ningu�m tocar de qualquer jeito”, diverte-se. O sininho oriental na parede faz o vento participar do concerto.

Na sala tomada de instrumentos e pequenos objetos de arte, a bailarina pianista toca My way, acompanhada por Rog�rio. Misaki veio de Numazu, no Leste de Shizuoka. Nas fotos, espet�culos encenados pela artista. Aos 14 anos, Misaki j� comandava pequena orquestra de jovens m�sicos em sua terra natal. O encontro com Rog�rio foi no Canad�, h� mais de 20 anos. Entre outras tantas afinidades, o amor � arte e a vontade de viver o bem da felicidade com muito pouco.

Mari
No fim do corredor, outra artista que, quando estudante, levou para os trabalhos de sala de aula a inspira��o nos tra�os de Niemeyer. “Tenho o p�r do sol todos os dias na minha janela”, sorri com do�ura Mari Guedes, de 31. Desde 2004 no Conjunto Kubitschek, a designer nascida em S�o Paulo e crescida no Paran� n�o esconde a felicidade da rotina profissional aut�noma de sucesso – tanto que quem quiser contratar os servi�os de artes visuais de Mari vai ter que esperar at� agosto.

No im�vel, tr�s gatos fazem charme pelos cantos: Alecrim, Serafim e Nina. Fora do JK, uma vez por m�s, volunt�ria, a artista ministra oficinas de “sensibilidade criativa”. Mari, desde que chegou em Minas, optou pelo menos poss�vel para viver bem. “Minha escolha foi a de que tudo que eu precise caiba apenas numa mochila”, alegra-se. A designer j� passou por grandes ag�ncias e, hoje, garante n�o abrir m�o da qualidade de vida por nenhum dinheiro do mundo.

S�rgio
Das maiores tristezas do administrador S�rgio Hirle, de 56, est� a picha��o no topo do JK. S�o 32 anos de condom�nio e muito orgulho de toda a arte que h� na obra de Niemeyer. Vindo da zona rural de Te�filo Otoni, no Vale do Mucuri, S�rgio foi parar na Rua Timbiras por falta de recurso e curiosidade. “Vim para experimentar o que seria morar nesta cidade vertical difamada e fiquei encantado porque o JK n�o era nada do que diziam”, conta.

O administrador diz que travou uma enorme batalha para defender o edif�cio por todas as rodas que frequentava. S�rgio, volunt�rio de causas sociais e conselheiro nas �reas de sa�de, cultura e seguran�a p�blica, faz duras cr�ticas � falta de educa��o e respeito ao complexo e seu entorno. “Outra grande tristeza s�o as placas de classificados nas janelas do pr�dio. � tanto an�ncio de vende-se e aluga-se que parece uma p�gina de jornal. � uma agress�o”, lamenta.


Canil
A modelo branca como a neve vence apressada um dos corredores do bloco. Some escada abaixo. Os c�es latem forte em esquina do andar acima. O morador, que pede para n�o ser identificado, d� a not�cia: “� um canil. O dono dos c�es tem outro apartamento e fez aquele ali s� de canil. V� l� e olhe s� o cheiro horr�vel que vem da porta. J� reclamamos. Todo mundo reclama, mas ningu�m d� jeito”, lamenta.


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