
No jogo da vida, s�o muitas as hist�rias e os desafios. Alguns deles parecem pesados demais e, para quem olha de fora, at� imposs�veis de lidar. Seus protagonistas s�o sin�nimo de li��es. Inspiram e ensinam, como a dona de casa Maria Jos� Almeida Santos Ribeiro, de 30 anos, m�e de Caio Francisco Almeida Menes e V�tor Ribeiro Menes, dois meninos cadeirantes, de 7 e 2 anos e meio, e de Paulo Alexandre, um beb� sem problemas de sa�de, de 4 meses. Empurra com habilidade as duas cadeiras de rodas por Belo Horizonte afora, sobe e desde de �nibus, sem jamais perder o sorriso. Serenidade e dignidade ocupam o semblante dessa mulher, representante de um contingente de guerreiros an�nimos que, no papel de pais e filhos, travam uma batalha di�ria pela vida e contra o preconceito. Nessa luta, a vit�ria vem em forma de amor e de esperan�a e, andando lado a lado, buscam a cura e dias de mais alento.
Fa�a chuva ou sol, l� est� ela, de ter�a a sexta-feira, pronta para enfrentar o longo caminho do Bairro Tancredo Neves, em Ribeir�o das Neves, na regi�o metropolitana, divisa com BH, at� o Bairro Mangabeiras, na sede da Associa��o Mineira de Reabilita��o (AMR). Ter�a e quinta h� atendimento para os dois filhos. Nas quartas e sextas � um ou outro. Paulo Alexandre, que ainda mama no peito, vai junto e, se ningu�m se disp�e a acompanh�-la, empurra as cadeiras e porta o nen�m no canguru. Em dias de chuva, como quando foi acompanha pelo Estado de Minas, conta com a ajuda da sogra para ficar com a crian�a.

Andar com as cadeiras n�o � f�cil, um verdadeiro jogo de equilibrismo e de criatividade. No �nibus, uma vai atachada ao cinto de seguran�a, na �rea reservada a cadeirantes, e a outra, amarrada a um banco, com uma faixa de velcro especial. O imposs�vel se torna natural, com direito a v�rias adapta��es. Pendurada nas cadeiras, sacolas e mochila com lanches, marmitas nos dias em que a correria n�o permite almo�ar em casa, roscas fresquinhas para vender, capa de chuva para cobrir os meninos, sombrinha e o que mais for necess�rio.
Uma campainha � o adere�o final. De um lado, bot�o. De outro, uma sirene vermelha, do tipo bem barulhenta. “Isso � para quando os motoristas quiserem nos deixar para tr�s depois de todos os passageiros subirem no �nibus. Eu aperto e todo mundo escuta e n�o o deixa arrancar. Facilita tamb�m para andar na rua, pois as pessoas fingem que n�o veem e, por isso, n�o abrem passagem. Em dias de chuva � muito �til”, relata.

Esconde as hist�rias por tr�s de toda essa destreza. Foi uma sequ�ncia de prova��es desde as v�speras do nascimento de Caio, em 18 de janeiro de 2007. Ela conta que tinha sete meses de gravidez quando a bolsa estourou e, durante os tr�s dias nos quais tentou atendimento, a equipe do centro de sa�de a mandou de volta para casa. Por fim, decidiu ir ao Hospital Odilon Behrens, onde os m�dicos prepararam uma cesariana de emerg�ncia: o beb� tinha os batimentos card�acos fracos e a m�e estava em est�gio de pr�-eclampsia. Dias depois, no Centro de Terapia Intensiva (CTI), Caio teve uma parada card�aca e ficou cinco segundos desacordado. Maria Jos� acredita que a demora no atendimento pode ter levado � paralisia cerebral, que o jogou na cadeira de rodas. “O m�dico falou que n�o era nada e foi tomar um caf�”, relata.
Na segunda gesta��o, Maria teve a s�ndrome da transfus�o feto-fetal. Um feto recebe mais sangue que o outro, assim um se torna doador e produz pouco l�quido amni�tico e o outro receptor, com l�quido em excesso. O resultado s�o beb�s de tamanho desproporcional, sendo o doador normalmente pequeno e o receptor, grande. Ao detectar a complica��o, o m�dico fez uma microcirurgia para retirar mais de 4 litros de l�quido amni�tico. Dois dias depois, a bolsa rompeu. Um dos beb�s morreu. Sobreviveu V�tor, prematuro de 6 meses e peso de 750 gramas. O obstetra, de um plano de sa�de, fez um parto normal e retirou a crian�a com a ajuda do f�rceps. O menino teve traumatismo craniano. Tr�s meses depois, numa avalia��o na AMR, foi diagnosticado que ele tamb�m iria para uma cadeira de rodas. “O meu mundo desabou. Eu percebia que algo estava errado, mas quis fechar os olhos e enxergar apenas com o cora��o, na esperan�a de os m�dicos dizerem que estava tudo bem.”

A CURA DO PAI O terceiro filho, Paulo Alexandre, nasceu em dezembro do ano passado, com 4,1 quilos. Foi concebido como tentativa de curar o pai, o auxiliar de produ��o Adair Menes, de 35 anos. Durante todo o pr�-natal, a ideia era colher o sangue do cord�o umbilical, rico em c�lulas-tronco, para, no futuro, aproveitar os avan�os da medicina para o marido, surdo desde os 11 anos de idade depois de contrair uma meningite, ter a chance de voltar a escutar. Mas o obstetra n�o deu andamento ao processo e, por falha m�dica ou falta de orienta��o adequada, o casal n�o pode levar o sonho adiante. “Meu marido ficou muito revoltado, mas agora se conformou”, diz.
Em meio a essa decep��o, veio a alegria. Paulo � perfeito, grande e esbanja sa�de ao longo de seus 4 meses. “Agora � que eu estou entendendo o que � ser m�e. Peguei o Caio nos bra�os pela primeira vez quando ele tinha 2 meses e o V�tor, quando tinha 3 meses e parecia um beb� que ainda ia nascer”, lembra. “Diferentemente dos outros, o Paulo j� rola e d� gargalhadas. Faz sozinho, sem precisar de est�mulos. Apesar de toda dificuldade, a vida me surpreende a cada dia.”

A vit�ria dos pequenos
A vida termina tarde e come�a cedo na casa de Maria Jos�. Ela dorme por volta da meia noite e, �s 4h30, no m�ximo, est� de p� para fazer as roscas que vende a outras m�es e funcion�rios da AMR e dar conta do resto da casa. Leva Caio para a escola, busca e segue rumo � AMR. Na associa��o, os meninos t�m acompanhamento em diversas �reas. Na fonoaudiologia, V�tor aprendeu a mastigar e a engolir. Agora, trabalha tamb�m a comunica��o. A fala se aprimora a cada dia. Na fisioterapia, os movimentos para estimul�-lo a ficar de p� s�o a esperan�a de que o pequeno guerreiro andar� um dia. Em outra sala, com aux�lio de uma psicopedagoga, Caio, aluno do 2º ano do ensino fundamental, desenvolve a coordena��o motora e mostra com orgulho que j� sabe escrever.
Foram esses tratamentos que, h� um ano e tr�s meses, o fizeram andar. Entretanto, por causa do corpo ainda fr�gil e dos ossos deslocados, Maria Jos� prefere n�o for��-lo a caminhar e, por isso, o menino continua na cadeira de rodas. Mas deve andar definitivamente depois de uma cirurgia que far� nos pr�ximos meses no quadril, joelhos e tornozelos. A partir da�, a m�e levar� os filhos � AMR todos os dias.
N�o ser� simples, mas a expectativa � grande. A vit�ria do Caio � um desafio � vida e, hoje, ela se orgulha de jamais ter desistido. “Quando ele nasceu, a m�dica do hospital me perguntou por que eu n�o desligava os aparelhos, j� que ele tinha poucas chances de sobreviver e, se isso ocorresse, seria um vegetal”. “Essa foi s� a primeira vez. Estou acostumada com as cr�ticas e a ouvir piadinhas por ter um terceiro filho com dois na cadeira de rodas. Mas acho que n�s tamb�m temos o direito de sermos felizes.”
No ambiente onde a esperan�a � a chave-mestra de diversas m�es que passam anos na rotina de tratamento dos filhos deficientes, Maria Jos� tem sempre um sorriso sincero estampado no rosto. “Tive suporte psicol�gico na AMR, mas ainda bate o desespero, principalmente quando motoristas e cobradores me desrespeitam”, relata.
No in�cio do m�s, quando o Estado de Minas acompanhou um dia de sua rotina, ela viveu mais um desses epis�dios corriqueiros, de motoristas arrancarem depois de os outros passageiros entrarem, passarem direto pelo ponto, pedirem para esperar outro �nibus ou, simplesmente, n�o a deixarem entrar com as duas cadeiras. Sem contar quando se depara com coletivos que n�o s�o equipados com elevadores ou com equipamentos estragados – n�o s�o raros os cobradores que se recusam a ajud�-la a subir com as cadeiras.
� preciso perseveran�a, pois quando est� com os dois meninos, pega quatro �nibus de casa at� a AMR: do bairro ao Centro; depois, a linha 104 at� a Avenida Afonso Pena; de l�, o 4103 at� o Parque das Mangabeiras e, por fim, outro da mesma linha para descer em frente � AMR – ele s� passa na Rua Professor Ot�vio Coelho de Magalh�es quando sai do parque em dire��o ao Bairro Aparecida.
No dia em que o EM a acompanhou, ela chegou atrasada � AMR. Isso porque um motorista se recusou a parar e o condutor do �nibus seguinte n�o queria transport�-los. “A cobradora me disse que tomaria multa da BHTrans se levasse as duas cadeiras. Eu lhe respondi que n�o poderia deixar um dos meninos para tr�s . E perguntei se ela � m�e ou av�, pedindo que se colocasse no meu lugar. Ela come�ou a chorar”, conta. Maria lamenta a falta de solidariedade e de compreens�o e quase sempre conta com a ajuda de passageiros para ajud�-la a erguer as cadeiras.
Na semana anterior, outro epis�dio de desespero. Depois de subir Caio, o condutor arrancou, deixando para tr�s ela e V�tor na cal�ada. “A mam�e come�ou a gritar e a correr, batendo no �nibus e gritando: ‘Meu menino, meu menino’. Tive muito medo. Ele n�o pode fazer isso, mas faz”, relata Caio. Quando o desespero bate, s�o os filhos que a consolam: “�s vezes, tenho vontade de nem sair de casa. A�, vem o Caio, n�o fala nada, s� me d� um beijo. Meu humor muda. Sei que se eu n�o fizer esse esfor�o todo, l� na frente eles v�o me cobrar”.

A esperan�a que n�o deixa desistir
Maria Jos� tamb�m tem defici�ncia auditiva, moderada, e usa, h� 17 anos, a mesma pr�tese para ouvir. Nessa �poca, com a perspectiva de melhorar a fala e cuidar da sa�de, se mudou com a fam�lia de Capelinha, no Vale do Jequitinhonha, para BH. Medo das dificuldades n�o tem. Ali�s, s� n�o trabalha agora pelos motivos �bvios. Come�ou cedo, aos 9 anos de idade, como bab�. As �ltimas crian�as de quem cuidou eram trig�meas, trabalho interrompido para outra nobre tarefa: ser m�e. Conta com a ajuda do marido, o companheiro no cuidado com os meninos.
Caio quer fazer da m�sica sua grande descoberta. Aproveita a musicoterapia na AMR para aprender a tocar. A m�e tamb�m o inscreveu na Orquestra Sinf�nica de Minas Gerais, onde ele espera ser chamado para aprender violoncelo e violino. V�tor veio ao mundo ser o companheiro do irm�o. Tem na palavra “Caio” uma de suas prediletas. V� o esfor�o do mais velho e, como mania de ca�ula, quer imit�-lo tamb�m a andar. Maria Jos� segue serena, com uma dignidade de impressionar. E na luta para conseguir comprar roupas para as crian�as e manter o estoque de fraldas em dia. Leoa cuidando da cria. Mulher que sabe de seus direitos e luta por eles. Batalhadora nata, com esperan�a � frente de tudo. (JO)
AMRA Associa��o Mineira de Reabilita��o (AMR) atua desde 1964 no acompanhamento de crian�as e adolescentes carentes com defici�ncia f�sica. � uma organiza��o filantr�pica, sem fins lucrativos, que atende atualmente cerca de 500 pacientes, com paralisia cerebral e outras s�ndromes. Ampara tamb�m os familiares, por meio de projetos de inclus�o escolar, esportiva e social. A AMR est� localizada na Rua Professor Ot�vio Coelho de Magalh�es, 111, no Bairro Mangabeiras.
