
Se o mundo tem conserto, � porque ainda existem pessoas como o jornaleiro Othon Godinho. Pode reparar: todas as segundas, quartas e sexta-feiras, pela manh�, esse homem de 88 anos est� humildemente ajoelhado, com sua melhor roupa, no piso de pedras portuguesas da Avenida Afonso Pena, esquina de Avenida Brasil, no Bairro Funcion�rios, na Regi�o Central de Belo Horizonte. S�cio da banca de jornais Tiradentes, ele se presta a ir tapando, sozinho, um a um, os buracos do cal�ad�o. Nos bra�os carrega o saco de cimento, a p� e o balde de pedras irregulares.
H� 15 anos, desde que a banca foi transferida para o ponto da Afonso Pena, Godinho faz esse trabalho. Nunca havia aceitado ser fotografado ou entrevistado. N�o d� muita import�ncia a sair nos jornais e revistas, comercializados por ele mesmo. S� se interessa em continuar o trabalho de cuidar, com capricho, do pr�prio “quintal”. Nem ouve coment�rios de pedestres, que dizem: “Tadinho, o balde deve estar pesado”, “Que gracinha!” “A alegria dele � consertar os buraquinhos em torno do quarteir�o. Se algu�m quiser ajudar, basta informar onde est�o as falhas no passeio. Depois, ele mesmo vai l� e resolve”, explica o t�cnico Wagner Soares Marques, de 33, frequentador habitual da banca.
Othon Godinho, o Guardi�o das Cal�adas
Godinho perdeu a conta da quantidade de pedras que j� assentou, dos in�meros acidentes que evitou, dos tombos e tornozelos torcidos presenciados em frente � banca de jornais. Mas n�o desiste do of�cio. � uma terapia ver o idoso em a��o. Sem pressa, primeiro, ele seleciona as pedras, que devem se encaixar no mosaico do ch�o. Separa o p� de cimento e a garrafa de �gua, respons�vel por dar a liga do concreto. Passo a passo, devagar, caminha pelo cal�amento at� identificar o novo obst�culo. Ent�o, se agacha com cuidado no ch�o e faz o servi�o bem feito, apesar da idade e das tr�s cirurgias pelas quais j� passou.
Perguntado pelo motivo que o leva a remendar os caminhos de BH, Godinho trope�a na justificativa: “A maioria destr�i, n�o �? N�o sei fazer o servi�o t�o bem, porque n�o � minha especialidade. Mas tento fazer isso todos os dias. � uma ajuda minha, sabe?” Ele conta que, h� cinco anos, costumava ser mais r�pido. “Sabe como �, o g�s vai acabando... Qualquer hora dessas vou para o belel�u”, sorri Godinho.
Ao ouvir falar em doen�a, Saulo Dantas, de 53 anos, retruca o amigo e parceiro de neg�cios. “Faz uns oito dias, ele pintou sozinho a banca. Subiu no alto da escada e n�o deixou ningu�m ajudar. � sempre assim: os outros picham e ele pinta”, conta, orgulhoso.
Antes de adquirir a banca por cerca de 10 mil cruzeiros, em 1973, Godinho era artes�o em uma f�brica de cal�ados. Antes ainda, foi menino criado na ro�a, de p� no ch�o, em Ub�, na Zona da Mata. Acostumado ao trabalho duro, decidiu seguir a profiss�o dos irm�os. Jovino Godinho, o Vivi, concession�rio da banca na Rua Guajajaras, no Centro. J� Ludovino Godinho, o Dudu, tinha licen�a para atuar na banca do Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, na Grande BH.
TUDO BEM “Gosto de ler jornal. � bom para saber sobre futebol e os crimes que acontecem na cidade. Hoje � tudo no bot�o (do computador). N�o tenho cabe�a para mexer com isso, mas meu neto sim”, compara Godinho, que tem um casal de filhos do primeiro casamento e e um rapaz do segundo, que j� lhe renderam netos e at� bisneto. Mora com a segunda mulher em uma “boa casa” no Bairro Fonte Nova, em Contagem, na Grande BH. A fam�lia, entretanto, sabe pouco sobre seu cotidiano. “Os filhos ligam perguntando sobre ele, que manda dizer que est� tudo bem. Detesta ser controlado. Tem de respeitar, por causa da idade”, explica o colega, que s� telefona quando Godinho falta ao servi�o.
Se pudesse pedir algo, Godinho iria pedir um refor�o do policiamento no quarteir�o onde trabalha, o que ajudaria, ao menos, a preservar os retoques na conserva��o daquele peda�o da cidade. Das pedras soltas, cuida ele. Tamb�m n�o esconde o olhar desolado para o canteiro atr�s da banca, que era protegido por grades. “Agora, acabou a �gua e a prefeitura arrancou as grades. As pessoas pisam no jardim. N�o tem mais jeito”, suspira um dos an�nimos benfeitores de BH. Todos os dias, Godinho continua carregando �gua no bico, fazendo a sua parte para enfeitar a cidade.