
Mariana – Os moradores de Bento Rodrigues, em Mariana, na Regi�o Central, j� conjugam a vida no passado. Os verbos no pret�rito saem da boca ainda um pouco desajeitados e quase sempre acompanhados de uma l�grima no canto do olho, um passar de m�os no rosto ou total perplexidade no semblante. No lugar de “minha terra � linda”, est� agora “era”; em vez de “l� em casa tem pimenta biquinho”, “tinha”; e “rezo sempre na Capela de S�o Bento”, “rezava”.
Desde o rompimento das barragens do Fund�o e Santar�m, da mineradora Samarco, na fat�dica tarde de quinta-feira passada, soterrando o vilarejo distante 23 quil�metros da sede municipal, romperam-se tamb�m os la�os com a hist�ria. Com o desaparecimento de casas seculares, da pracinha, da escola e dos pontos de conviv�ncia, sumiram tamb�m documentos, objetos pessoais, registros da unidade de ensino, pequenos guardados, enfim, a mem�ria de 650 pessoas.
N�o h� mais sinal de alma viva em Bento Rodrigues, nome em homenagem a um bandeirante paulista que chegou � regi�o das minas, no s�culo 18, tomado pela febre do ouro e disposto a encontrar o precioso metal. Achou, fundou um povoado e acabou batizando, com seu pr�prio nome, o subdistrito ligado ao distrito de Camargos.

Do alto, at� o ponto onde se consegue chegar, v�-se a lama poderosa que n�o respeitou uma casa de fam�lia, um cantinho para descansar, nem mesmo um canteiro de flores do jardim. Na �nsia de fugir da avalanche marrom, uma mulher correu com o que p�de: uma imagem de Nossa Senhora Aparecida nos bra�os. Para contar a hist�ria, ficou a Igreja de Nossa Senhora das Merc�s e tamb�m um templo evang�lico, j� que o estrago maior ficou na parte baixa do lugar, onde passa o Rio Gualaxo, integrante da Bacia do Rio Doce.
Para especialistas, os danos ambientais e para o patrim�nio cultural s�o os piores. A presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/MG), arquiteta e urbanista Rose Guedes, diz que � cedo para avalia��es t�cnicas, mas afirma: “Trata-se de um momento de reflex�o. No local, deveria ser erguido um monumento como forma de protesto, para esse epis�dio ficar registrado e ningu�m esquecer”.
O jovem Marlon C�lio Norberto Oliveira, de 19 anos, servente de pedreiro, conseguiu escapar com a camisa do time do cora��o, o Atl�tico. Na noite de quinta-feira, junto com os demais desabrigados, Marlon foi encaminhado para a Arena Mariana, o gin�sio poliesportivo municipal preparado para receber tamb�m moradores das comunidades de Paracatu de Baixo, Pedras, Bica e outros tragicamente atingidos pela onda de rejeitos.
Todas as lembran�as est�o agora apenas na cabe�a do rapaz, pois o notebook guardado no quarto est� sob toneladas de lama – que os t�cnicos da mineradora garantem n�o ser t�xica, mas que, para os sobreviventes, teve a for�a de matar o futuro. Com o rosto marcado pelo cansa�o, o jovem se referiu ao lugar onde nasceu e se criou o tempo todo, no passado. Quando o rep�rter observou esse fato, ele levantou o olhar: “Ainda � dif�cil, n�? Tivemos que largar tudo para tr�s, roupas, meu aparelho de som... N�o tem como voltar ao Bento, n�o tem descri��o para tudo que ocorreu.”
Os ex-moradores se referem com total intimidade ao vilarejo, como se falassem de um amigo, nomeando-o sempre Bento e nunca Bento Rodrigues. Marlon contou que a m�e e a irm� conseguiram emprego em Mariana exatamente no dia da trag�dia e por isso se mudaram do distrito. “Foi sorte. Agora vou ficar com elas”, falou baixinho, antes de seguir rumo � nova vida.
Na Arena Mariana, o trauma ainda � grande entre aqueles que recebem demonstra��es de solidariedade em forma de donativos.
"Foram-se os la�os de identidade"
A comunidade de Bento Rodrigues, com v�rios marcos do circuito da Estrada Real, � descrita pelos moradores, parentes, amigos e visitantes com muito afeto e sempre com uma palavra: uni�o. O professor de hist�ria Israel Quirino est� desolado com a situa��o desesperadora das v�timas e lamenta as perdas. “A popula��o ter� que voltar � rotina. Perdeu-se a mem�ria, foram-se os la�os da identidade. Um dos tra�os marcantes de Bento Rodrigues � a uni�o, todo mundo se conhece. Quem n�o � parente � amigo”, afirma Quirino.
A Igreja de S�o Bento, padroeiro local (do fim do s�culo 18 ou in�cio do 19), a Escola Municipal Bento Rodrigues, o bar e restaurante da Sandra, o point onde at� “o pessoal da Samarco almo�ava”, segundo os moradores, a paisagem que remonta aos prim�rdios de Minas, embora com a descaracteriza��o vinda com o tempo, tudo isso agora est� sob um mar de lama.
Quirino explica que havia um projeto tur�stico para a regi�o, dona de fazendas, cachoeiras, culin�ria bem t�pica, artesanato e outros tesouros que deixam saudade.
A uni�o dos moradores de Bento Rodrigues tamb�m � destacada pelo dono do hotel M�ller, de Mariana, Wanderley M�ller. Ele foi criado no lugar, estava sempre indo para l� nos fins de semana. As terras nas quais foi erguido o empreendimento da Samarco pertenceram ao seu pai, Orlando M�ller. “Bento Rodrigues sempre foi muito rico, tinha garimpo de ouro muito forte”, disse, lembrando que, na trajet�ria econ�mica da comunidade, destacava-se, no s�culo 19, uma f�brica de ferraduras de ingleses, a F�brica Nova.