
“Ao entregar os inconfidentes � Coroa Portuguesa, com a qual estava em d�bito, Silv�rio dos Reis teve sua d�vida perdoada. Fez uma den�ncia por escrito e uma dela��o premiada, por que teve benef�cios e n�o pagou suas d�vidas � Fazenda Real. Assim, � um dos casos mais c�lebres de dela��o premiada no Brasil, embora n�o se possa dizer que foi o primeiro”, diz o professor de hist�ria Luiz Carlos Villalta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao longo dos s�culos, a rea��o da opini�o p�blica a delatores e delatados variou, mas a pr�tica da dela��o de antigos aliados em troca de benef�cios, inaugurada no Brasil Col�nia, avan�ou pela hist�ria e est� mais viva do que nunca no per�odo republicano.
Aquele que tornou conhecida a dela��o premiada era comandante do Regimento de Cavalaria Auxiliar de Borda do Campo, em Minas, fazendeiro, minerador e contratador de impostos (comprara em leil�o o direito de arrecadar certos tributos). Silv�rio dos Reis integrava inicialmente o grupo que se insurgiu contra a cobran�a do “quinto do ouro”, taxa em teoria de at� 20% sobre a produ��o. Vale lembrar que, se os mineradores n�o pagassem ao governo 100 arrobas de ouro anuais, a Coroa Portuguesa poderia decretar a derrama, obrigando as c�maras municipais a fazer o povo pagar o valor necess�rio para chegar �quele total.
“Silv�rio dos Reis sabia de todos os passos do movimento. Numa compara��o com a atualidade, seria como se o ministro da Fazenda no governo Lula, Antonio Palocci, que est� preso, ou Paulo Preto, ex-assessor do ex-governador de S�o Paulo (SP) Jos� Serra, soltassem a l�ngua e contassem tudo o que sabem”, ressalta o professor e autor do livro Brasil e a Crise no Antigo Regime Portugu�s (1788-1822). Guardadas as devidas propor��es de tempo, espa�o e valores envolvidos, Villalta afirma que o traidor dos conjurados mineiros e os executivos de empreiteiras como a Odebrecht t�m em comum e tiveram como alvo “a apropria��o privada do que � p�blico”.
“Com a dela��o, o portugu�s n�o pagou as d�vidas � Coroa. Ele era um contratador de impostos endividado e usou isso a seu favor”, observa. “J� os donos e diretores de grandes empreiteiras e antigos executivos da Petrobras, que � de capital misto, est�o envolvidos num sistema em que a coisa p�blica � apropriada para fins privados. Em ambas as situa��es, no s�culo 18 e 21, o interesse � o ganho il�cito.”
PRIS�O Para entender melhor a hist�ria da trai��o na Inconfid�ncia Mineira, � preciso fazer um exerc�cio de volta no tempo. Tiradentes estava no Rio de Janeiro quando a tentativa de levante foi esmagada pela Coroa Portuguesa. Sabendo de todos os meandros da quest�o, Silv�rio dos Reis foi ao encontro dele, a mando do vice-rei. Sem desconfiar de nada, embora espionado, o alferes decide voltar a Minas e antes se esconde na casa de um amigo na Rua dos Latoeiros, hoje Gon�alves Dias, no Centro da capital fluminense.
Em 10 de maio de 1789, o alferes foi preso com um bacamarte na m�o, explica o professor Villalta. Em tr�s interrogat�rios, negou tudo e, no quarto, em 18 de janeiro de 1790, confessou, assumindo sozinho toda a responsabilidade e eximindo os demais conspiradores de qualquer culpa.
E que fim levou Silv�rio dos Reis? O traidor dos inconfidentes terminou seus dias no Maranh�o, sofrendo hostilidades dos moradores da terra. J� o outro denunciante, Bas�lio de Brito Malheiros, falecido em 1806, registrou em seu testamento que todo “o povo de Minas, todo o Brasil, em verdade, alimenta um �dio implac�vel contra si depois da projetada inconfid�ncia de Minas”.
CORRUP��O Perto de lan�ar um livro sobre a situa��o no per�odo colonial – A corrup��o do corpo m�stico – Pr�ticas il�citas na governa��o do Brasil –, a professora de hist�ria da UFMG Adriana Romeiro destaca que as irregularidades praticadas nos s�culos 17 e 18 e as formas de atua��o comparadas com as de hoje s�o quase id�nticas. “Havia corrup��o, sim, suborno de autoridades, como ju�zes, e pagamento de propinas, que se conhecia muito bem”, conta. Um bom exemplo dessa situa��o de indigna��o, acrescenta, est� nas Cartas Chilenas, poemas escritos por Tom�s Ant�nio Gonzaga (1744-1810), no qual ele faz uma den�ncia do governador da Capitania de Minas (de 1783 a 1788), Lu�s da Cunha Menezes, a quem chama de “Fanfarr�o Min�sio”.
Adriana Romeiro diz que muitas den�ncias eram encaminhadas por escrito, pelos vassalos, � C�mara Municipal, ao governador e at� ao rei de Portugal. “Em alguns casos, o rei chamava os respons�veis; em outros, as den�ncias eram silenciadas. A Coroa era muito tolerante e leniente em rela��o aos abusos, embora rigorosa quanto ao desvio de dinheiro p�blico, no caso, o ouro”, explica.
A corrup��o existe no Brasil desde que Pedro �lvares Cabral chegou aqui, em 1500, resume a professora. E n�o foi diferente em Minas, no s�culo 18. “Os governadores que vinham de Portugal voltavam ricos para a Europa. O objetivo, como disse Tiradentes, era espoliar: ‘Os portugueses s�o a esponja a sugar a Terra’. E muitos deles estiveram envolvidos em negocia��es clandestinas.”
"Hoje, Tiradentes ainda se rebelaria"
Joaquim Jos� da Silva Xavier, o Tiradentes, tinha seus ideais de liberdade, de ver independentes as capitanias de Minas, do Rio de Janeiro e S�o Paulo – na �poca, os inconfidentes n�o tinham no��o exata do que era o Brasil e a palavra brasileiro quase n�o era usada – e de viver num pa�s republicano. “Mas � preciso entender que Tiradentes era um homem do seu tempo. E que n�o era nenhum santo”, diz o professor de hist�ria Luiz Carlos Villalta, da UFMG. “Era dono de escravos, tinha uma vida sexual ativa, enfim, vivia como algu�m da sua �poca. E havia inconfidentes metidos em contrabando de ouro e pedras preciosas”, acrescenta.
Afirmando que a corrup��o grassava no per�odo colonial e que a corte de dom Jo�o VI foi bastante corrupta, Villalta ressalta que “a diferen�a entre o Pal�cio de S�o Crist�v�o, sede da corte no Rio de Janeiro, e o Pal�cio do Planalto, em Bras�lia (DF), � s� uma quest�o de escala”. Pesquisador dos fatos hist�ricos e atento observador dos novos acontecimentos, o professor v� dois tra�os de uni�o entre os per�odos colonial e republicano: a continuidade da corrup��o e as den�ncias contra ela.
Se sa�sse das p�ginas dos livros de hist�ria para conhecer um pouco do Brasil de hoje, Tiradentes certamente denunciaria a espolia��o do capital nacional, acredita Villalta, que considera o m�rtir da Inconfid�ncia um her�i. “Ele se rebelaria contra tudo o que fosse a favor da explora��o, pois era muito cr�tico nesse aspecto. Na �poca da coloniza��o portuguesa em Minas, Tiradentes falava em alto e bom som que ‘Minas era rica e ficava pobre por causa do arrocho tribut�rio, do monop�lio comercial metropolitano e dos roubos dos governadores e seus protegidos’”.
Ouro e revolta nas ra�zes da conjura��o
Desde o s�culo 16, tanto em Portugal quanto no Brasil, os s�ditos acreditavam que o poder do rei tinha origem no consentimento deles. Assim, se o monarca se tornasse um tirano – desrespeitando leis e privil�gios de grupos e institui��es, al�m de afrontar a religi�o cat�lica –, poderia ser deposto. Os jesu�tas estiveram entre os grandes divulgadores dessa ideia e a disseminaram em suas escolas.
No s�culo 18, novos ventos sopram sobre o Ocidente, trazendo a filosofia de pensadores franceses que criticam o poder absoluto dos reis, a administra��o colonial, o monop�lio comercial, a intoler�ncia religiosa e o sistema de trabalho escravo. A Inconfid�ncia Mineira floresce no ambiente de efervesc�ncia intelectual e pol�tica, como ocorre na Europa e Am�ricas, em especial, com a independ�ncia das 13 col�nias que deram origem aos Estados Unidos (em 1776).
As novidades chegavam a Minas pelos livros, jornais, manuscritos e relatos orais de viajantes. Imbu�do desse esp�rito, Joaquim Jos� da Silva Xavier, o Tiradentes, denuncia que altos tributos e monop�lio comercial transformam Minas, uma capitania rica, em lugar de pobreza. Em 1788, o Visconde de Barbacena chega a Minas com ordem para decretar a derrama. A situa��o gera descontentamento na capitania, em especial entre as pessoas ligadas a grupos privilegiados – contratadores de impostos, cl�rigos, militares, contrabandistas etc. Um grupo come�a, ent�o, a articular uma conspira��o contra o governo, a chamada Inconfid�ncia ou Conjura��o Mineira.
Mas ela � sufocada ap�s a a��o de um delator: Joaquim Silv�rio dos Reis. O movimento � abortado em 1789 e Tiradentes, enforcado tr�s anos depois.